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ADOÇÃO, VIDAS QUE SE TRANSFORMAM

No Dia da Criança, o Pioneiro começa a contar as histórias de crianças e adolescentes que tiveram suas vidas transformadas após passarem pelo sistema de acolhimento institucional de Caxias do Sul

Quando foram acolhidas, há mais de dois anos, Beatriz tinha três anos e Angélica, um. Os pais delas eram (ou são) usuários de drogas, contexto cada vez mais comum entre os casos de crianças destinadas a adoção. As meninas acabavam ficando na casa de uma das avós. Certa noite, enquanto a idosa dormia, a mais velha saiu da residência e perambulou pela rua até ser encontrada pela Brigada Militar, que acionou o Conselho Tutelar. Como perguntava muito pela irmã, a equipe foi em busca da outra criança. Então, a bebê também foi retirada da família de origem. As meninas ficaram três meses em um abrigo, depois, passaram a morar em uma casa lar.

O caso das irmãs é semelhante ao de muitas crianças que chegam todos os dias ao sistema de acolhimento de Caxias do Sul. São de recém-nascidos a adolescentes que se veem, na fase mais frágil da vida, submetidos a situações de negligência, abandono, maus-tratos, abusos por parte dos próprios familiares. O passado dos acolhidos nos abrigos e nas casas lares é dos mais tristes que se possa imaginar. Mas também é nesses locais que muitos futuros são reescritos, ganham novas expectativas, novos sonhos e se tornam realidades bem diferentes. É para contar como se desenvolveram algumas dessas histórias que o Pioneiro publica, em cinco capítulos, a série Adoção, Vidas que se Transformam. Os nomes nas reportagens são fictícios, em respeito ao que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e para preservar as crianças.

Transformação. É isso o que está acontecendo com Beatriz e com Angélica. Há dois meses, no dia 10 de agosto, as irmãs foram passar o final de semana com Eduarda e Marcos. Era mais uma etapa da fase de aproximação — período em que as crianças e adolescentes aptos a serem adotados começam a conviver com seus possíveis pais adotivos.  

A notícia de que surgira duas meninas para a adoção veio seis anos depois da inclusão do casal no Cadastro Nacional de Adoção.

— Tem duas meninas, de cinco e três (anos), e queremos saber se vocês têm interesse — disse a psicóloga Cláudia Peixoto Huster, do Juizado da Infância e da Juventude (JIJ), em ligação à Eduarda, na tarde de 30 de julho.

— Nossa. Minhas pernas ficaram moles. Sentei e disse: a gente quer, sim. É uma sensação como se tivesse pegado o resultado de que estava grávida — lembra a mãe adotiva.

Dali em diante, foram cinco dias de ansiedade até que Marcos voltasse da viagem em que estava a trabalho e juntos pudessem conhecer as meninas. Foi o primeiro encontro. Depois, transcorreu mais uma semana de idas à casa lar para visitas às irmãs. Até que, finalmente, chegou a hora de elas conhecerem o novo lar.

É assim no processo de adoção: é preciso vencer as etapas, uma a uma. As irmãs foram passar o final de semana com o casal e estão até hoje por meio de guarda provisória.

— Felicidade de ser pai e dar educação, dar as condições necessárias delas crescerem, se tornarem adultas, corretas... Lá na frente a gente vai ver o resultado — comenta Marcelo.

Durante a conversa, Beatriz mostra desenhos em um caderno. Quando perguntada sobre uma figura em uma das páginas, ela dispara:

— É a mamãe Eduarda.

Antes de serem encaminhadas à adoção, a equipe da casa lar onde estavam Beatriz e Angélica fez um trabalho com os pais biológicos na tentativa de que se estruturassem para que as irmãs pudessem voltar para a casa. Esse trabalho durou cerca de um ano. Mas não teve sucesso. Essa é uma das etapas, prevista em lei, que pode demorar dias, semanas, meses e até anos, o que contribui para que muitas crianças fiquem por longos períodos no sistema de acolhimento. E é nessa fase, também, que o judiciário ainda aguarda que alguém da família extensa (tios, avós) demonstre interesse em ter a guarda das crianças. Mais do que isso, é preciso comprovar ter condições para cuidar deles. O que, no caso das irmãs, não ocorreu. Aliás, esse é o desfecho mais comum.

A psicóloga Marivanda Ló diz que desde 2013, quando ajudou no processo de implantação das casas lares em Caxias, houve apenas um caso em que a retirada de uma criança da família de origem foi revertida, ou seja, que os pais biológicos se reestruturaram e a criança conseguiu voltar para casa. Casos de recolocação em família extensa ocorreram mais vezes na equipe da qual Marivanda faz parte, cerca de cinco nesses últimos cinco anos. Nos abrigos, o índice de retorno à família biológica é maior — atualmente, dos 87 acolhidos na modalidade 23 estão em experiência familiar, como é chamado este processo de retorno. 

A partir da decisão do juiz de que os pais e a avó não tinham condições de cuidar das meninas, teve o início processo de destituição do poder familiar. Outra fase que costuma demorar, porque nela entram períodos de contestação por parte dos pais.

É essa demora no andamento dos processos que quem está no outro lado (o candidato a pai e mãe adotivo) não entende e não aceita. Se são pouquíssimos os casos revertidos, por que leva tanto tempo do acolhimento até a destituição do poder familiar? No caso das irmãs, foram dois anos. A resposta de quem trabalha no sistema é de que não se pode deixar de tentar até esgotar todas as possibilidades, porque o desejo da criança sempre será a família de origem. Ao olhar dos pais adotivos, o questionamento é: até que ponto se pensa no bem-estar da criança quando ela é deixada por anos em um abrigo ou casa lar à espera de seguidas tentativas, que acabam quase sempre frustradas e que fatalmente levarão a uma destituição? Esse é o tema da próxima reportagem da série Adoção, vidas que se transformam.

o caminho

—  Ao receber uma denúncia, Conselho Tutelar verifica. Se confirmada situação de risco (negligência, abandono, abuso, maus-tratos), a criança é levada para um abrigo. Se existir previsão de restabelecimento de vínculos com a família de origem a curto prazo (a legislação não especifica quanto tempo), ela fica no abrigo.

— A equipe técnica do abrigo faz o estudo do caso daquela criança ou adolescente e da família; busca informações sobre o núcleo familiar _ pais e parentes mais próximos, como avós e tios.

— Quando, verificada toda a situação, a equipe chega à conclusão de que a solução para o caso não será a curto prazo, a criança ou adolescente passa a um perfil de longa permanência e é encaminhada a uma casa lar.

— Esgotadas todas as possibilidades de família extensa e quando não há desistência da guarda por parte dos pais biológicos, inicia o processo de destituição do poder familiar pela justiça.

— Concluída a destituição, a criança ou adolescente é inserida na lista de aptos a serem adotados no Cadastro Nacional de Adoção (CNA).

— O sistema cruza os dados das crianças com os de pretendentes habilitados à adoção que se inscreveram no mesmo cadastro no site do Conselho Nacional de Justiça (cnj.jus.br).

— Essa pessoa ou casal candidato passa por entrevistas com um profissional de psicologia do Juizado da Infância e Juventude (JIJ) e com equipe do abrigo ou da casa lar que acompanha o caso do acolhido.

— Caso os pareceres sejam favoráveis à adoção, tem início o processo de aproximação entre acolhido e pais adotivos.

— Quando as crianças são pequenas, o período de aproximação tende a ser menor, normalmente, após uma semana de visitas dos candidatos à casa lar, a criança passa o final de semana na casa dos interessados.

— Se tudo correr bem, é iniciado processo para a guarda provisória, que tem duração de um ano.

— Ao final do prazo, se tudo permanecer bem, é dada a guarda definitiva.

— A família é acompanhada pela equipe do JIJ por 90 dias. O prazo pode ser maior, em especial se forem crianças mais velhas, a pedido do próprio técnico, quando percebe que os vínculos não estão estáveis, podendo o juiz concordar ou não com isso. Nos locais em que não há equipe do JIJ, pode ser determinado que técnicos dos serviços de assistência do município ou Conselho Tutelar acompanhem.

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MODALIDADES DE ACOLHIMENTO

CASA LAR 

— Nas casas lares, as equipes tentam proporcionar aos acolhidos a estrutura mais próxima possível à de uma família, estabelecendo rotinas e se cercando dos mais diversos profissionais da rede, como os das unidades básicas de saúde e da rede pública de ensino, por exemplo. 

— As casas lares são locais de longa permanência — em Caxias são 15 —, para onde, via de regra, vão aqueles que já passaram pelos abrigos. 

— Cada uma tem capacidade para oito acolhidos, mas, atualmente, algumas têm seis porque atendem crianças ou adolescentes com deficiência ou patologia grave. A presença de bebês de zero a um ano também reduz a lotação. 

— A partir de 2019, todas as casas terão oito acolhidos porque haverá mudança no modelo de licitação, com previsão de acréscimo de profissionais.

— Cada casa tem dois educadores sociais, sendo um deles residente (mãe social). A partir de 2019 serão três.

— Cada grupo de três casas é administrado por uma entidade e é atendida por um coordenador, um assistente social e um psicólogo. No ano que vem, passarão a ter ainda um agente administrativo.

— Existe ainda uma equipe de apoio com um educador para cobrir as folgas dos residentes, higienizadores e motoristas.


ABRIGO

— Os abrigos – no total de três na cidade – são os primeiros locais para onde crianças e adolescentes que tiveram direitos violados e, por isso, foram retirados da família de origem mediante medida protetiva são levados.

— As equipes são compostas por diretor, assistente social, psicólogo, educadores sociais, cozinheira, higienizadora, motorista, auxiliar administrativo e estagiário. O número de profissionais varia de um lugar para outro, entre 18 e 24. Uma nutricionista da Fundação de Assistência Social (FAS) orienta os cardápios.

— A lotação deve obedecer o que prevê a legislação, de até 20 acolhidos. Porém, os locais não deixam de receber ninguém mesmo excedida a lotação. No dia 10 de outubro, um deles tinha 22, outro 31 e o terceiro 34 acolhidos, somando 87.

— Porém, parte desse total (23) não está morando no local, apesar de estar vinculada ao serviço. Isso porque há crianças ou adolescentes em experiência familiar, como é chamada a tentativa de retorno à família biológica. Além disso, há nove evadidos (que saíram e não voltaram).

— O tempo de experiência familiar é de 90 dias, em que o acolhido volta para a casa da família de origem. Se tudo der certo, ele permanece. Se dentro desse período, algo der errado, ele retorna ao acolhimento.

— Tanto os abrigos quanto as casas lares são custeadas com recursos municipais.

PERFIL DE QUEM ADOTA E PERFIL DE QUEM É ADOTADO

Segundo a coordenadora de uma das casas lares de Caxias, Alda Lundgren, o perfil sinalizado pelas pessoas que se candidatam a serem pais adotivos está mudando. Até há algum tempo, a procura era por bebês ou crianças de no máximo cinco anos. Atualmente, os candidatos à adoção estão abertos a crianças com deficiência leve, negras e grupos pequenos de irmãos – em geral, entre dois a três.

Em 2017, essa mudança proporcionou que praticamente todos os acolhidos que estavam na casa lar que Alda coordenava fossem adotados – um grupo de três irmãos por uma mesma família; uma menina de 12 por um casal; e, ainda, uma adolescente com deficiência que completaria 18 anos. Algo raro e especial.

— São crianças que têm pouca expectativa de serem adotadas, porque a idade deles é um pouco mais elevada ou porque são grupos de irmãos — informa Alda.

a partir de quem quer adotar

No dia 9 de outubro, o número de candidatos disponíveis no Cadastro Nacional de Adoção era de 41.416. No site do Conselho Nacional de Justiça (cnj.jus.br), os pretendentes podem declarar preferências e, de certa forma, restrições, nos quesitos raça, sexo, idade, quantidade de irmãos e aceitabilidade ou não em relação a doença. 

A Região Sul é a segunda em número de pretendentes habilitados à adoção no país, com 11.585, atrás apenas do Sudeste, que tem 19.979. A classificação está diretamente relacionada a dois estados dessas regiões: São Paulo (9.923) e Rio Grande do Sul (5.612). Ou seja, os gaúchos são os segundos no ranking de pessoas que querem adotar no Brasil. 

Contudo, é no Sul que está a taxa mais alta de pedidos por crianças brancas (96,9%). A menor taxa é do Nordeste, com 84,26%. 

O pedido por crianças com até três anos é o de maior percentual no país, 19,21%. Fica na faixa acima de 10% até os cinco anos e, depois, começa a cair na medida em que a idade aumenta, com quedas de 45% entre os 6 e os 7 anos, de 50% entre os 7 e 8, e de quase 60% entre os 8 e 9. Sobe minimamente na faixa dos 10 anos quando o índice já é de 1,2% de interesse, e volta a descer ano após ano até chegar aos 0,06% para adolescentes com até 17 anos. Para adolescentes com até 17 anos e 11 meses, idade limite de acolhimento institucional, o índice volta a subir, para 0,3%.

Ou seja, se considerarmos a adoção tardia, que inclui crianças acima dos sete anos, o número de pretendentes no país cai para 2.747 _ redução de mais de 93% em relação a lista inicial de candidatos.

Outro fator limitador da adoção é a preferência por crianças brancas. No momento em que optam por uma raça específica, por exemplo, os adotantes deixam de se candidatar a adoção de uma criança que tenha sido classificada com raça diferente daquela. 

Do total de pretendentes, a parcela de pessoas que restringe a adoção a somente uma raça é de 21,57%: branca (16,38%), negra (0,82%), amarela (0,1%), parda (4,21%) e indígena (0,06%). 

Os pretendentes que aceitam todas as raças somam 20.023 (48,35% do total). Existem ainda os que aceitam uma e outra, sobrepondo resultados, por isso, os percentuais atingem mais de 100%. 

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul informou que, ciente desses dados, está buscando estratégias a fim de flexibilizar o perfil dos pretendentes, dando-lhes uma nova perspectiva sobre adoção tardia, por meio do Projeto Busca-Se(R), lançado em 2016, e o Aplicativo Adoção - Deixe o amor te Surpreender, lançado em agosto deste ano.

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em busca de pretendentes

BUSCA-SE(R) 

 É um cadastro alimentado pela Coordenadoria da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul. O projeto dá acesso a dados básicos como nome, idade, sexo, raça, condições de saúde e situação jurídica das crianças e adolescentes aptos à adoção. 

— Os dados são de livre consulta pelo site do Juizado da Infância e da Juventude.


APLICATIVO ADOÇÃO - DEIXE O AMOR TE SURPREENDER 

— A ferramenta é uma iniciativa do Tribunal de Justiça, em parceria com o Ministério Público e a PUCRS. A ideia é que ocorra uma humanização da busca, com fotos, vídeos, cartas e desenhos, para despertar o interesse e a flexibilização do perfil desejado pelos candidatos. 

— O aplicativo está disponível nas versões android e iOS e pode ser baixada nas lojas (Google Play e Apple Store). Com o app, as famílias que estão no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) conhecerão detalhes das crianças e dos adolescentes em vídeos.

As preferências dos interessados:

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O Brasil tem hoje 4.954 crianças e adolescente em busca de uma família

Quanto à disponibilidade de crianças e adolescentes para adoção, a Região Sul também ocupa o segundo lugar do ranking no país, com 1.397 pessoas entre zero e 18 anos incompletos. Quase a metade – 45,5% – está no Rio Grande do Sul (635), mas o Estado é o terceiro no Brasil. A primeira colocação entre as regiões também é do Sudeste (2.202), e o Estado com mais casos é São Paulo (1.118). O segundo é Minas Gerais, com 643.

Se considerarmos os motivos pelos quais, na maioria dos casos, essas crianças e adolescentes são retirados de suas famílias de origem – negligência, abandono, maus-tratos, abusos – a posição dos gaúchos não é motivo de orgulho. Pelo contrário, expõe um problema sério e que precisa ser combatido: a crescente relação com o uso de drogas por parte dos pais.

Por outro lado, o número pode refletir o grau de comprometimento da população, ao denunciar as situações de risco e violência, e dos órgãos protetivos envolvidos no processo, ao retirarem as crianças dessas situações e encaminhá-las para adoção, mesmo que a demora ainda seja objeto de crítica.

— Acredito que exista um sistema mais eficiente de notificação e controle. Acho também que faltou suporte para que essas crianças permanecessem nas suas famílias — avalia o juiz da Infância e Juventude de Caxias do Sul, Leoberto Brancher.

Do total de 4.954 inscritos no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) no dia 9 de outubro, a maior fatia (50,57%) é classificada como parda. Lembrando que, por mais que o índice seja praticamente o mesmo do de pretendentes a adoção que aceitam todas as raças (48,35%), a quantidade de crianças é quase oito vezes menor do que a de possíveis pais.

São 2.505 crianças para 20.023 pessoas querendo adotar. O problema é que ao considerar outras variáveis e critérios assinalados pelos pretendentes, como idade, ter ou não irmãos e ter ou não doença, a quantidade de crianças vai reduzindo cada vez mais.

Quem são as crianças aptas à adoção

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expediente

Reportagem e imagens:

Lizie Antonello
lizie.antonello@pioneiro.com

Fotos e edição de vídeo:

Marcelo Casagrande
marcelo.casagrande@pioneiro.com