Gabriel chegou a um abrigo de Caxias do Sul por meio de uma denúncia da unidade básica de saúde que atendia a família dele em um município da Serra. Tinha um ano e seis meses. O depoimento da equipe de acolhimento relata a lembrança do olhar doce e triste da criança, os inúmeros hematomas pelo corpo, unhas dos pés e das mãos esmagadas, além de queimaduras e mordidas. Mais tarde, a avaliação de peritos apontaria que as mordeduras eram de uma pessoa adulta, não de uma criança como alegavam a mãe e o padrasto.
Em seguida que ele chegou ao abrigo, as profissionais iniciaram as avaliações de familiares que poderiam cuidar do menino. Assim que um era descartado, outro se apresentava. Quatro se candidataram sucessivamente. Alguns passaram pelo período de aproximação, com visitas aos finais de semana. A cada nova tentativa, toda a série de etapas que devem ser respeitadas recomeçava.
— Dizer que têm desejo (em ficar com a criança), não quer dizer que tem condições — considera a psicóloga Ana Maria de Castilhos Homem, que acompanha o caso de Gabriel.
— Sabemos que está na legislação a prioridade à família extensa, mas também sabemos o quanto pode prejudicar o processo, porque a criança vai ficando, ficando e perde um tempo que é precioso na vinculação e no desenvolvimento emocional e social dela. Ele ficou dois anos institucionalizado. Todo esse tempo perdeu de se vincular a uma família. Quanto mais precoce (em idade) vai para família substituta, melhor a vinculação e mais chances de dar certo no futuro, de se sentir pertencente aquele núcleo familiar — opina a assistente social Marta Carrer Herpich, que trabalha no mesmo abrigo.
Ao final do processo, a justiça chegou à conclusão de que era o padrasto que agredia a criança e que a mãe se omitia diante dos atos. Ele foi destituído do poder familiar. A sentença em primeira instância ocorreu há duas semanas.
— Nos quatro anos que estou no abrigo, foi a criança mais machucada que recebemos aqui. Ele precisa de alguém que vá amá-lo muito e protegê-lo — avalia a assistente social.
O juiz Leoberto Brancher, do Juizado da Infância e da Juventude (JIJ), afirma que o caso de Gabriel era de difícil compreensão, já que para cada machucado a família tinha uma explicação e testemunhas que alegavam que ele era bem cuidado. Até a última terça-feira, o menino continuava no abrigo, mas, em breve, se não houver decisão contrária, irá figurar entre as crianças que esperam por um futuro de amor, cuidado e proteção em uma nova família.
Se existem tantas crianças e adolescentes nos abrigos e casas lares – em Caxias, são 181 – e se o índice de retorno às famílias de origem é tão baixo, por que os processos de destituição do poder familiar, necessários para o encaminhamento à adoção, demoram tanto? Por vezes, anos? Essa pergunta atormenta homens e mulheres que desejam ser pais adotivos e alongam a fila de espera no país.
No dia 9 deste mês, havia mais de 41 mil pessoas no Cadastro Nacional de Adoção. Em Caxias, são em torno de 300 habilitadas, enquanto a quantidade de crianças adotadas fica entre 25 a 30 por ano. Na última quarta-feira, das quase duas centenas de acolhidos, somente seis já estavam destituídos e aptos a enfrentarem o processo de adoção. Outros 48 têm processos de destituição ajuizados. Também existem 14 que já têm sentença, conforme a Fundação de Assistência Social (FAS).
Para o juiz Leoberto Brancher, essa conta não fecha porque ela não é simples matemática:
— Quando trabalhamos uma destituição, existe uma grande complexidade, porque estamos lidando com vidas e há um dever de profundo respeito pela vinculação biológica das pessoas. Uma coisa é a pessoa ter condição de cultura, de renda, de acesso à informação, outra coisa é trabalhar com uma família que tem um limite cultural, econômico e de compreensão. Então, até que se consiga compreender se esse quadro é reversível ou não, existe um tempo de maturação. A adoção é um transplante de um ser vivo, que tem a sua complexidade, por isso precisamos fazer isso com delicadeza.
Segundo o juiz Leoberto Brancher, em regra, nas situações de negligência, o problema é de falta de renda, de orientação e de capacidade da família de organizar a própria vida. O motivo preponderante é o da dependência química.
— Se essa família tivesse acesso a um bom atendimento psicológico, assistencial, tivesse capacidade de renda, ela estaria perdendo esse filho? — questiona o juiz referindo-se à maioria das situações.
A diretora de Proteção Social Especial de Alta Complexidade da Fundação de Assistência Social (FAS), Eler Sandra de Oliveira, concorda que é preciso ajudar as famílias a se organizarem para não chegar ao ponto do acolhimento.
— Proteger nossas crianças e adolescentes é responsabilidade de todos nós, governo e sociedade civil. O governo, através de políticas públicas que promovam o desenvolvimento infantojuvenil, bem como o fortalecimento das famílias para cumprirem sua função protetiva. Para isso existe, por exemplo, na assistência social, os Cras, Creas, Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos; na saúde, a Estratégia Saúde da Família e intersetorialmente, o Primeira Infância Melhor, entre outras. A medida de acolhimento sempre deve ser a última alternativa para se proteger uma criança — enumera Eler.
Além desses programas, segundo a diretora, o município conta com uma rede de proteção à mulher, atendimento em saúde mental, projetos sociais financiados pelo Fundo Municipal da Criança e do Adolescente e ações de esporte e lazer.
Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus diretos fundamentais
Na outra ponta da pirâmide etária dos acolhidos em abrigos e convivendo no mesmo ambiente estão os adolescentes. Há os que aceitam e os que não aceitam o acolhimento. Em geral, os que não conseguem permanecer no abrigo têm perfil parecido: vêm tardiamente para o sistema, são originários de famílias com vínculo fragilizado por meio do abandono, têm baixa adesão escolar, saúde negligenciada, passagens por família extensa e sem alguém com quem tenham estabelecido vínculo real. Alguns casos, chegam a situação de rua e ao uso de drogas.
Já os que ficam, de forma geral, são os que enfrentaram problemas específicos na família. Esses conseguem estabelecer uma rotina no abrigo, frequentar a escola e se inserir no mercado de trabalho.
— Às vezes, é o meio influenciando mais, outras vezes são questões individuais como transtornos emocionais ou neurológicos que, em muitos, aparece pelo baixo controle de impulsos ou intolerância à frustração. Não podemos dizer todos, mas muitos têm todo o quadro para a formação de um transtorno: negligência afetiva, maus-tratos físicos, sexuais e psicológicos... tudo o que se pode imaginar que o meio possa contribuir para a formação de um transtorno mental — avalia a psicóloga Ana Maria de Castilhos Homem, que atua em abrigo da cidade.
Na instituição visitada pela reportagem, em agosto, havia duas adolescentes – uma de 17 e uma de 16. Ambas estavam evadidas (saíram e não retornaram) e com pouca expectativa de adoção. A relação da mais jovem, Roberta, com o sistema de acolhimento começou na infância. Os pais, dependentes químicos, morreram. O irmão, que à época era bebê, foi adotado por uma tia. Roberta, com seis anos, foi para um abrigo onde ficou até os nove. Ela até retornou para a família extensa, mas, ao chegar na adolescência, passou a adotar um comportamento com o qual os avós que têm a guarda não conseguiam lidar. Eles pediram ajuda ao Ministério Público e Roberta foi acolhida.
Conforme a equipe de acolhimento, por vezes, a colocação em família extensa também não funciona.
— Daí, o adolescente volta a ficar sob a responsabilidade do Estado. E os danos podem ser gigantescos. Não somos uma prisão. Não abrimos o portão para que saiam, mas eles pulam a cerca, vão para escola ou para uma consulta e não voltam. As evasões acontecem de diferentes formas. Daí, ficam fora da escola, colocam-se em situação de risco. É algo que vai para além das possibilidades do Estado — pondera a assistente social Marta Carrer Herpich.
Roberta não quis conversar com a reportagem.
As crianças que estão em abrigos têm mais viva a esperança da adoção. É uma sensação que tem como pano de fundo a temporalidade deste tipo de acolhimento. O abrigo é um local de passagem, para onde crianças e adolescentes que tiveram os direitos violados de alguma forma são levados. Dali, eles têm quatro destinos possíveis: retorno à família biológica, colocação em família extensa (parentes), adoção por família substituta ou encaminhamento a uma das casas lares do município.
Esta última ocorre quando as equipes identificam que os acolhidos passam a ter perfil de longa permanência. Outra diferença é que os abrigos são mais plurais. De recém nascidos a adolescentes, todos convivem em uma mesma estrutura. Quando a reportagem esteve no abrigo onde Gabriel estava acolhido, no final de agosto, havia três bebês. Muitos vêm direto do hospital. Isso acontece quando é constatada uma reunião de diversos fatores como negligência com o pré-natal associada a problemas mentais, uso de drogas, violência doméstica, vivência de rua e prostituição, por exemplo.
— Quando chega para dar à luz, o hospital vê se tem pré-natal. Se não teve, a criança não sai do hospital com essa mãe — comenta a assistente social Marta Carrer Herpich, que trabalha no sistema de acolhimento.
Em casos como este, o Juizado da Infância e Juventude é acionado. O juiz solicita um breve estudo social e a equipe do juizado verifica se existe algum familiar que possa se responsabilizar pela criança. Se não, ela é acolhida. A equipe trabalha com as crianças e adolescentes o estabelecimento de vínculos com os profissionais, mas também deixa claro que pode ser uma estadia provisória, que pode ter como destino o retorno para a família de origem ou uma casa lar.
— Eles vão vendo que não eram protegidos, que estavam em situação de risco, que o que acontecia com eles não é normal e não deve acontecer com uma criança. Vamos trabalhando com eles explicando que isso ocorria não porque a mãe ou o pai é ruim, mas porque têm dificuldades. Não precisamos arrancar essa família de dentro deles, para que eles também não morram por dentro — diz Marta.
Paralelamente à questão humanística, o processo judicial tem de considerar o aspecto legal de preservação da integridade física e psíquica da criança, dosando com o respeito aos direitos de preservação do vínculo biológico.
Além disso, existem os trâmites e prazos processuais que têm de ser respeitados, como a localização dos pais e, muitas vezes, comprovação de paternidade, produção de provas, perícias e etc. A partir da sentença que destitui o poder familiar, a criança ou adolescente é disponibilizado à adoção.
— É complexo isso. O trâmite que gera essa demora, realmente, é insuportável. Tem coisas que demoram um ano, outras um ano e meio. Se ficamos testando familiares então, avaliando em uma perspectiva favorável de retorno, leva ainda mais tempo. Há casos em que há inclinação prévia da impossibilidade e se consegue ver mais claramente desde logo. Agora, quando há ambiguidade, quando os técnicos não trazem pareceres conclusivos, quando há uma defesa com argumentos relevantes, temos de respeitar — pondera o juiz da Infância e da Juventude, Leoberto Brancher.
Mas antes de tudo, conforme o magistrado, é preciso esclarecer uma confusão que se formou a partir do tema da adoção:
— A fila (de pretendentes) realmente não anda porque o objetivo não é fazer a fila andar. Não somos um laboratório de fertilização jurídica. Estamos aqui para garantir direitos e o benefício da criança. A adoção não é uma maneira de conseguir uma criança para uma família, é uma forma de conseguir uma família para uma criança. Quando chegam aqui, (os adotantes) já têm uma grande frustração e uma grande esperança de conseguir uma criança porque não puderam ter. E não é para isso que serve a adoção.
AVALIAÇÕES
Nos últimos tempos, a legislação que trata do tema da destituição e da adoção sofreu modificações. Uma delas é que a situação de cada um dos acolhidos passou a ser avaliada de três em três meses.
— Aqui, em Caxias, não temos esse problema de esquecer criança em abrigo. Ninguém é esquecido — afirma Brancher.
Outra mudança na lei ocorrida neste ano diz que se os pais biológicos de uma criança ou adolescente retirado legalmente da família não o procurarem em 30 dias na instituição de acolhimento, ele já pode ser encaminhada à adoção. Como o processo da destituição ainda estará tramitando, porém, a medida pode ser revertida.
— A lei tem criado atalhos e temos usado esses atalhos, mas não é comum, porque as pessoas procuram as crianças, de forma irregular, ocasional e bagunçada, tal como é a vida deles, mas procuram — relata.
São medidas aplicáveis aos pais ou responsáveis em situações de violação de direitos das crianças e adolescentes: encaminhamento a programas de apoio e promoção da família; advertência; perda da guarda; suspensão ou destituição do poder familiar.
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