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A criança precisa querer ser adotada

O tempo que cada acolhido leva para se preparar para ter uma nova família deve ser respeitado

Aos 10 anos, e depois de viver por mais de dois em uma casa lar, Ana estava totalmente pronta para a adoção. Porém, a irmã, Regina, 11, não. Enquanto a caçula desejava estar com os pais adotivos, a mais velha os repelia. Foi então que a equipe da instituição de acolhimento se viu diante de um dilema.

– O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) preconiza que não podemos separar grupos de irmãos. Mas também não podemos impedir uma criança de ser feliz em detrimento da outra. A irmã mais velha passou a chantagear e pressionar a mais nova para não desejar a adoção. Então, ocorreu um sofrimento psíquico da mais nova e também da mais velha, porque ela não tinha esse desejo. Tivemos de trabalhar os medos dela – explica a psicóloga Marivanda Ló, que atuou no caso.

Para parte das crianças e adolescentes retirados das famílias de origem, o processo que leva até uma adoção envolve sentimentos como rejeição, medo, desconfiança e desamor e um trabalho de reconstrução de todos esses pilares. É que, antes de entrarem na lista de adoção, os acolhidos precisam estar prontos para terem uma nova família. E aí entram as características pessoais de cada um e as questões psicológicas a serem trabalhadas em cada situação. Segundo Bruna Moreira da Silva, assistente social de uma casa lar em Caxias, esse processo costuma ser lento e precisa ser respeitado.

– Nem sempre a criança está pronta para uma adoção. Quando esse processo não é respeitado, ocorrem as devoluções, porque essa criança, por mais que tenha sofrido vários tipos de negligências e violências, ela sempre vai querer retornar para a família (de origem). Então, até que ela entenda que este pai e esta mãe não conseguem ficar com ela nesse período das suas vidas, e para construir (dentro dela) que ela tem uma nova oportunidade, é um processo lento. São crianças que sofreram muito, elas precisam ter este período para que consigam entender que existe uma nova possibilidade e que, talvez, lá nos seus 18 anos, na maioridade, se quiserem, têm o direito de reencontrar a família de origem – pondera Bruna.

Cada criança e adolescente tem o seu próprio tempo para resolver internamente essas questões. Os pais candidatos à adoção também passam por um período de preparação.

O sofrimento de Ana e Regina passa por um histórico de negligência e violência. Quando as meninas nasceram, o pai estava preso. Depois, a mãe, fragilizada diante da drogadição do marido, deixou-as com ele ao abandonar o lar. A avó paterna morava perto, e ajudava a cuidar das meninas. Ocorre que a avó trabalhava o dia todo e as crianças ficavam apenas com o pai. Alcoolista e usuário de drogas, ele também submetia as crianças a assistirem relações sexuais que mantinha com prostitutas que levava para casa.

– A mais velha teve de tomar conta da casa. Quando ela chegou na casa lar, tivemos que desconstruir isso, resgatando a infância, porque ela queria tomar o lugar da mãe social e, inclusive, disciplinar a irmã – contou Marivanda.





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Abertas a uma nova família


Foram os vizinhos que denunciaram a situação das irmãs Ana e Regina. As meninas foram abrigadas, mas houve o entendimento de que a avó paterna poderia cuidar das netas. O problema é que a família tentou burlar a lei. A avó alugou uma casa vizinha à moradia do pai. No Judiciário, constavam como endereços diferentes, mas eram interligadas. Um dia, ao ver Regina com uma bituca de cigarro que ela havia juntado do chão e levado à boca, o pai, embriagado, tentou esganá-la. De novo, voltaram ao abrigo e passaram a ver a avó apenas aos finais de semana.  

A aproximação, porém, teve novo revés quando a equipe percebeu um problema ainda mais grave: Regina estava sendo vítima de abuso pelo companheiro da avó.

Depois disso, foram cessadas as tentativas de realocação com familiares biológicos, feito o processo de destituição (cerca de um ano) e elas foram encaminhadas à adoção. Os pais adotivos das irmãs vieram da região norte do país. Eles realizaram o processo de aproximação em Caxias. Foi o necessário para criar o vínculo entre casal e crianças. Regina decidiu tentar, mas a fase ainda é de adaptação. Agora pais e filhas vivem juntos. A família não quis conversar com a reportagem.

– Toda a criança adotada vai testar o amor dos pais adotivos no seu limite. Inconscientemente, a mensagem que elas estão passando aos pais adotivos é: "vamos ver se tu me amas mesmo ou se vais me devolver. Se eu não for aquela criança ou adolescente queridinho e comportadinho, será que vais me amar mesmo?" Daí, eles começam a aprontar na escola, com um vizinho... para testar até onde aquele pai e aquela mãe realmente os ama ou vai devolvê-los diante das dificuldades. Mas eles não fazem isso de forma consciente – explica Marivanda.

– É uma construção de vida, de amor. Normalmente, essas crianças vêm muito desesperançosas de amor. Temos que reconstruir isso e a confiança – disse Alda Lundgren, coordenadora de equipes de casa lar.

– Elas têm muito medo de terem uma nova perda, uma rejeição – completou Bruna.





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Nem toda a adoção dá certo...


Em 19 de julho deste ano, Carina, 11 anos, chegou a uma casa lar de Caxias do Sul. Dois irmãos dela, já adolescentes, também estão inseridos em outros estabelecimentos do sistema de acolhimento. A família vinha sendo acompanhada pela rede municipal há algum tempo. Passou por avaliação que constatou dependência química dos pais, situação de violência doméstica e abuso sexual. 

A mãe começou um novo relacionamento e os irmãos acabaram ficando sob a guarda da nova sogra, que recebia um subsídio para cuidar das crianças – benefício concedido pela Justiça por até dois anos no valor de um salário mínimo nacional (R$ 954). Após esse período, a idosa disse que não podia mais ficar com os irmãos. Além disso, o padrasto tinha envolvimento com atos criminosos e os jovens conviviam com aquela realidade. O contexto resultou no acolhimento dos irmãos. A equipe técnica do abrigo entendeu que eles tinham perfil de longa permanência e que não havia perspectiva de retorno familiar. Então, eles foram encaminhados para a modalidade de casa lar. Todos foram destituídos do poder familiar e estão com plano de adoção em andamento. 

O universo que envolve as crianças e adolescentes acolhidos, porém, revela outro aspecto que precisa ser considerado: nem sempre a adoção é o melhor caminho. Carina foi encaminhada para uma família substituta, mas não se adaptou. 

– Começou-se perceber uma soma de erros. Com informações preliminares, ficamos sabendo que a avaliação dessa família que habilitou-a para adoção não foi feita da forma adequada. Foi um período curto de aproximação em finais de semana, quando não existe uma rotina e o convívio é mais agradável, divertido... e com esse pouco tempo de convivência, família e a Carina decidiram por iniciar o processo definitivo. Houve a assinatura do termo de guarda provisória, mas teve início uma série de situações... – analisa a psicóloga Cintia Pretto que acompanha o caso. 

A nova família de Carina tinha uma filha adotiva adolescente. Segundo a equipe da casa lar, no dia a dia foram surgindo problemas de convivência. Nas poucas palavras sobre o período em que morou com a nova família, Carina resumiu: 

– Foi mais ou menos. Eu ficava assistindo TV. Eu não estava me sentindo adequada... por causa da minha irmã.  

Associado às dificuldades de convivência, houve uma questão de saúde. Como praticamente todas as crianças e adolescentes acolhidos, Carina faz uso de medicação para ajudá-la a suportar o que passou. 

– Essa família não conseguiu dar conta de tudo isso. Foi uma adaptação difícil para ela. Sabemos que não é um processo fácil, porém, chegou em um ponto que desgastou de certa maneira que estava insustentável, tamanho o sofrimento da menina e para a própria família – avaliou a psicóloga.





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Carina preferiu voltar para casa lar

Conforme a psicóloga Cintia Pretto, o que em um primeiro momento estava adequado, de uma hora para outra mudou. Pouco mais de quatro meses depois, Carina retornou a casa lar, onde vive atualmente.  

– Ela começou a se retrair e se tornar agressiva, reativa. Ela estava muito estável na casa lar e, em pouco tempo, desestabilizou demais. O processo de vinculação dela, que se formos pensar, é a base das nossas relações, foi muito frágil (com a nova família). Houve falhas nesse processo desde a preparação dessa família, mas também da criança. Até que ponto ela estava preparada? Não é porque juridicamente ela estava apta para a adoção que, na prática, ela conseguia exercer isso – concluiu a Cintia.

Para Altair Vaiteroski de Lima, coordenador da casa lar, por vezes, a família que adota não tem o conhecimento adequado para perceber que aquele indivíduo não vai ser igual aos outros filhos.  

 Cada indivíduo é diferente. E a história dela é muito específica, muito sofrida para chegar em um nível de tranquilidade, de organização e de vinculação – pondera.  

– Tem uma busca por uma figura paterna protetiva que ela não teve, porque as principais marcas foram violentas – pondera a psicóloga.  

Carina foi separada do grupo de irmãos porque eles não conseguiam conviver, de fato. Se agrediam muito. Precisavam ficar separados para que conseguissem se organizar individualmente, respeitar os outros e interagir. O mais velho conseguiu trabalhar o que aconteceu e organizar a vida de maneira diferente. Hoje, tem perspectiva de emprego e, para a equipe, pode se tornar um pilar para os outros. O irmão do meio sentiu o retorno da irmã para casa lar porque ele também tinha expectativa de ser adotado. Atualmente, eles se encontram, sob observação, mas têm processos separados, inclusive no caso de adoção. Contudo, para a equipe essa não é uma opção a curto prazo.  

– É um processo muito inicial. Para uma criança, isso (uma nova adoção imediata) é reforçar a violência a qual ela foi submetida na primeira medida que não deu certo. Então, vamos ter de organizá-la de novo. O sofrimento está ali. No olhar dela, a gente percebe. Nos questionamos se vale a pena colocá-los para a adoção de novo. Daqui a pouco, eles só terão a eles mesmos, então, temos que fortalecê-los – analisa Cintia.  

Assistente social em outra casa lar, Bruna Moreira da Silva ressalta a importância de preparar a criança e a nova família:  

– Existem os pontos positivos da criança, lógico, que serão enaltecidos, mas também existem os pontos negativos. Para a adoção dar certo, não podemos omitir. Temos de falar a realidade, os altos e baixos da criança para que isso possa ser trabalhado entre a equipe. Também é fundamental preparar o casal para poder receber a criança. Porque nós já as conhecemos. Estamos acostumados com as manias, o casal, não. Eles precisam compreender essa criança.


Expediente:

Reportagem e imagens:
Lizie Antonello

Fotos e edição de vídeo:
Marcelo Casagrande

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