Angélica foi morar com a avó aos sete anos, depois que os pais se separaram. Apanhou da idosa com fio e outros objetos e viu os quatro irmãos serem agredidos. Aos 15 anos, engravidou. A partir de então, ela não era mais agredida fisicamente, mas sofria uma pressão psicológica que considerava ainda mais insuportável. A avó ameaçava ficar com o filho da adolescente. Assim que a criança nasceu, a idosa denunciou Angélica, dizendo que ela maltratava o menino. A adolescente acabou acolhida em uma casa de passagem e o bebê, de quatro meses, foi levado para uma casa lar. Mãe e filho viveram separados por cerca de 20 dias.
– Foi a pior fase da minha vida. Foi horrível. Eu levo a vida tranquila, mas esquecer a gente nunca mais esquece. Na frente dos outros, ela (avó) dizia que era a gente que incomodava, que eram as piores netas que ela tinha. As pessoas acabavam acreditando. E demorou tanto tempo para eles verem que o problema não era nós...
A equipe da casa lar em que estava o bebê constatou que as denúncias de negligência e maus-tratos não eram verdadeiras. Eles obtiveram uma autorização judicial e levavam a criança para amamentação três vezes ao dia. Logo, mãe e filho foram colocados em uma mesma casa lar e passaram a viver juntos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) trata dos direitos e da proteção integral a pessoas entre zero e 18 anos. É essa mesma lei que prevê o acolhimento institucional como medida provisória e excepcional para garantia desses direitos por um período de transição, para a reintegração familiar ou para colocação em família substituta. E quando nenhuma dessas coisas ocorre? O que acontece com os adolescentes que, ao completarem 18 anos (idade máxima para permanência em abrigos e casas lares), precisam deixar a instituição em que moram para viverem sozinhos?
Em Caxias do Sul, de janeiro de 2017 a 31 de setembro deste ano, foram 19 casos de adolescentes que permaneceram no abrigo até a maioridade. Outros quatro casos ficaram além dos 18 anos – três por motivo de saúde e um por determinação judicial. A Justiça prevê permanência até os 21 anos em situações excepcionais.
Sem possibilidade de retornar para a família de origem, aos poucos, a equipe da casa começou a preparar Angélica para seguir o próprio caminho. Enquanto ela voltou a cursar o Ensino Médio, o filho ficava sob os cuidados da equipe e em uma escolinha. Por meio da instituição, a adolescente fez um curso profissionalizante e começou a trabalhar. Optou por outra área de atividade para ficar perto da casa lar. Durante quase dois anos, conciliou emprego, estudos e o cuidado com o filho. Angélica deixou a casa lar há pouco mais de dois anos. À época, ela tinha 20 e o filho, quatro anos.
– Ele (filho) sofreu na hora de ir embora da casa lar. Era a casa dele, né? Morou dos quatro meses até os quatro anos. Ele sentia falta das crianças e de todo mundo. A casa lar foi o lugar onde eu mais me senti bem. Me senti à vontade. Era uma casa mesmo para mim, uma família. Não sentia falta de nada. Também sofri, mas tive de ir – contou Angélica sobre o momento de deixar a instituição.
A jovem e o pai do menino nunca oficializaram uma união, mas ele acompanha o crescimento da criança e se relacionam até hoje. A equipe do acolhimento ajudou Angélica a se estruturar. Ela se inscreveu e foi contemplada com um apartamento popular, pelo qual paga uma mensalidade de R$ 25. Os móveis, adquiriu com o dinheiro que conseguiu juntar quando ainda estava acolhida. Atualmente, ela trabalha o dia inteiro e o menino estuda em tempo integral. Mas sempre arruma um tempinho de passar pela casa lar para visitar os amigos e matar a saudade. Para ela, o acolhimento foi a chance de ter uma vida melhor.
– Eu não tinha nenhuma perspectiva de vida. Não tinha sonhos. Só existia, não vivia (quando morava com a avó).
Sobre a passagem pela casa lar, ela não tem dúvidas:
– Foi a melhor fase da minha vida. Ao mesmo tempo que eu tinha medo de sair da casa, tinha confiança. Eles (equipe da casa) sempre me incentivavam: "Vai dar certo, a gente sempre vai estar aqui". Até hoje, me orientam. Eu penso em, um dia, fazer uma faculdade. Gostaria de fazer Pedagogia – conta.
A Fundação de Assistência Social (FAS), responsável pelo serviço de acolhimento em Caxias do Sul, desenvolve parcerias com outras entidades, empresas e órgãos públicos para ofertar aos adolescentes acolhidos em abrigos e casas lares cursos profissionalizantes e capacitações que os habilitam a ingressar no mercado de trabalho. A ideia é prepará-los para uma vida autônoma após saírem do sistema, pois enfrentam dificuldades com figuras de autoridade, baixa escolaridade e adoecimento causado pelas vivencias de violência, abandono e negligências, o que dificulta sua inserção ou manutenção em atividades de qualificação ou laborativas. Esses desafios são superados com empenho das equipes de trabalho e a contribuição de entidades parcerias, tais como o Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Coordenadoria da Aprendizagem do Rio Grande do Sul, a Marcopolo S.A. e Serviço Nacional da Indústria (Senai) Nilo Peçanha.
Segundo a FAS, o programa se propõe a construir alternativas que signifiquem garantia de direitos e cidadania e, nas palavras das assistentes sociais da FAS, Eler Sandra de Oliveira, diretora de Proteção Social Especial de Alta Complexidade, e Viviane Folchini Costa, técnica responsável pelo Núcleo de Acolhimento Institucional (NAI), "apesar deste projeto constituir-se em enorme desafio, os atores envolvidos provam, no cotidiano, que é possível mudar trajetórias de vida e trajetórias institucionais."
Além de cursos, os adolescentes têm oportunidade de trabalho com geração de renda ao serem inseridos em vagas dos programas Jovem Aprendiz das empresas. A capacitação também é feita por meio de orientação. Na última quinta-feira, 38 adolescentes acolhidos, com idades entre 13 e 17 anos, participaram de uma palestra sobre o mundo do trabalho, no Salão da Igreja São Francisco, no bairro Kaiser.
A palestra, em clima motivacional, foi conduzida por Renato Menezes, representante da Dale Carnegie, empresa com 106 anos no mercado. Foram desenvolvidas dinâmicas de grupo para trabalhar integração, cooperação, confiança, raciocínio e reflexão sobre o tema. Segundo Menezes, o sentimento dele foi de gratidão pela oportunidade de falar aos adolescentes, como se estivesse contribuindo com alguns tijolos na construção do caráter deles.
Outro parceiro do município que atua junto aos acolhidos é o Instituto Filhos – ONG que capacita pais cadastrados para a adoção em Caxias. A entidade foi criada em 2007 e tem profissionais que dão o curso de capacitação nas áreas psicológica e jurídica aos pretendentes a adoção. Cerca de 800 pessoas já foram capacitadas desde 2009. Além disso, as psicólogas e o advogado fazem atendimentos individuais aos pretendentes a adoção, a filhos adotados e pais que já adotaram.
Expediente:
Reportagem e imagens:
Lizie Antonello
Fotos e edição de vídeo:
Marcelo Casagrande
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