Histórias de quem decidiu sair da cidade em busca de uma vida mais simples e tranquila em meio à natureza
PUBLICAO EM 3 DE SETEMBRO DE 2016
TEXTO
Siliane Vieira
siliane.vieira@pioneiro.com
Imagens
Jonas Ramos
jonas.ramos@pioneiro.com
INFOGRAFIA
Guilherme Ferrari
Lar é onde o coração está. A frase tão usada em quadros de decoração carrega sentidos múltiplos para cada um, mas em tempos de velocidade desenfreada em quase todas as relações, muitos têm decidido depositar seu coração em ambientes onde a desaceleração é um caminho possível. Não é que essas pessoas compartilhem algum desprezo pela urbanidade, já que muitas cresceram no asfalto, trabalham na cidade e até gostam de algumas comodidades do mundo moderno — difícil viver sem as facilidades da internet, por exemplo. A principal característica a unir esse grupo é mesmo a vontade de dormir e acordar envolto por mais verde do que cinza, ensaiando um encontro profundo consigo por meio da aproximação com a natureza. Mais ar puro, silêncio e simplicidade têm feito certos corações "plantados" fora das cidades florescerem muito mais.
O psiquiatra Caetano Fenner enxerga um acordo na percepção generalizada dos observadores de nossos dias, sejam eles antropólogos, filósofos, sociólogos ou psicanalistas e psiquiatras: todos apontam que estamos vivendo uma época de transformações violentas dentro do próprio espaço doméstico, antes tão protegido e privado.
— A avalanche de estímulos, filmes, narrativas variadas, tem criado uma sensação de "privação de privacidade". Parece um termo estranho mas super realista: quase não temos mais um tipo de refúgio, uma caverna que nos proteja do mundo excessivo que se impõe para dentro de nossas mentes — aponta.
A constante cobrança social para se estar presente em diversos ambientes, inclusive expostos nas redes sociais, também pode contribuir para uma vontade louca em buscar o privado. Fenner cita o livro The Private Life (ainda sem título em português), no qual o psiquiatra britânico Josh Cohen elenca acréscimos "existenciais" neste aparente decréscimo da existência pública:
— Precisamos de privacidade e sigilo para pensarmos e metabolizarmos com calma a vida e seus caminhos malucos, suas idiossincrasias e vicissitudes, tropeços e rearranjos. Precisamos de tempo e espaço amplos para nos refazermos a cada dia de renovados problemas. Todo dia precisamos de um refúgio em que a gente se esconda das redes e olhares sociais para encontrar o nosso verdadeiro eu, tão soterrado de exigências por aparências e funcionalidade.
É claro que abdicar da vida na cidade é uma decisão radical. É preciso cuidado tanto para não sucumbir perante o caos urbano quanto para não se afastar demais nos braços do isolamento.
— Perigoso é não oscilarmos entre uma coisa e outra, entre o aspecto urbano com seus hiper-estímulos e o aspecto reservado, bucólico com sua potencialidade de encontro consigo mesmo. Qualquer radicalismo é ruim, óbvio. O segredo do equilíbrio seria estarmos entre os dois mundos.
De qualquer forma, seja na ruralidade ou na urbe, tudo pede um pouco mais de calma:
— Tínhamos que redigir um manifesto "Em defesa de uma certa vagarosidade" para que nessa desaceleração voltássemos a contemplar a vida íntima, secreta e poética que alimenta genuinamente a alma.
Enquanto conversa, o garibaldense Damian Paulo Chiesa, 32 anos, chama a si mesmo de "guri de apartamento" várias vezes. Mas a verdade é que ter crescido numa área central rodeada por concreto — ainda que de uma cidade de interior — não definiu quais seriam suas escolhas. Ainda adolescente, o garoto já sentia crescer uma vontade de conexão com a terra.
— Tinha um terreno do lado da casa do meu amigo e a gente ia lá plantar laranja, bergamota, alface. Não sabíamos nada, dois guris de apartamento — repete ele, que hoje administra o Sítio Crescer, no interior de Garibaldi, ao lado da mulher, a jornalista Ana Cláudia Mutterle Chiesa, 23.
Os dois se conheceram por intermédio de grupos de jovens da Igreja Católica e ela acabou contagiada pelos interesses ecológicos do namorado. Depois do casamento, no ano passado, eles resolveram que era hora de fazer da vida saudável e do contato com a natureza um estilo de vida.
Formado em Administração de Empresas, Damian era proprietário de uma loja de roupas e, em abril passado, vendeu o estabelecimento para investir tudo no sítio, que já havia adquirido há sete anos. Agora, o sustento vem da venda das hortaliças orgânicas que produz (alface, agrião, espinafre, salsa, cogumelos), além de temperos e frutas nativas da época.
— Eu sempre fui curioso para ter uma vida mais sustentável. Todo mundo achava estranho que eu ia nos cursos para produtores rurais mesmo antes de ter o sítio — aponta ele, sócio da cooperativa de produtores orgânicos desde 2011.
A falta de experiência o colocou em alguns apuros momentâneos, mas nunca diminuiu seu empenho em aprender:
— Foram muitas galinhas que fugiram. Também teve um verão em que passei citronela direto no braço para espantar os insetos. Eles não vieram, mas em compensação meu braço ficou horrível — diverte-se.
Assim como Damian, Ana também vivia num apartamento, só que num bairro populoso de Caxias do Sul. Para ela, a mudança para uma casa rodeada de plantas e animais foi ainda mais radical.
— Eu estava lá, universitária, trabalhando, fazendo TCC, demorando pelo menos 40 minutos para chegar de ônibus em qualquer lugar, chegava em casa sempre cansada. Hoje a vida é bem mais tranquila — diz Ana, que ajuda o marido a embalar hortaliças orgânicas para vender e aprendeu aos poucos a usar os alimentos do sítio para cozinhar em casa.
— No início tinha uma certa ansiedade por não saber como as coisas funcionavam, foi um beabá desde o início. Cheguei a colocar inço na comida pensando que era manjericão (risos) — conta.
A menina da cidade que nunca teve bicho de estimação, hoje caminha cheia de sorrisos enquanto brinca com o cão Max, com a gata Poderosa, ou ajuda a tratar das galinhas e das ovelhas.
— Agora esse estilo de vida já está incorporado — diz ela, que fez até mesmo cursos de pancs (plantas alimentícias não convencionais), e vez ou outra interrompe a caminhada pelo sítio para mostrar a quem está perto que "olha, esse trevinho dá para comer".
Uma das "exigências" de Ana para se mudar para a nova casa era ter acesso a internet, garantido apenas seis meses depois que o casal estava morando junto no sítio. Mais do que um conforto — e a possibilidade de se divertir com Netflix nas horas vagas —, a internet permite que Ana não se desconecte por completo de sua profissão, realizando assessoria de imprensa para alguns clientes e mergulhando no que ela gosta de chamar de "jornalismo de sítio".
— Eu abasteço as redes sociais do sítio. Minha última cobertura foi de uma produção de geleia que fizemos aqui com um grupo de jovens. Esses dias também fotografei um ratão do banhado nadando entre os patos e a Poderosa no trator — diz, feliz.
A casa de Ana e Damian e confortável e moderna, mas qualquer olhar mais atento já detecta sinais de sustentabilidade, como o uso de tijolos ecológicos, de telhas feitas com caixinhas de leite, e de madeira de reflorestamento. Embaixo da moradia, um refeitório tem espaço para cerca de 90 pessoas e já recebe encontros e retiros. Acima da moradia, um hostel com dormitórios para 60 pessoas deve ficar pronto nos próximos meses. A ideia dos administradores do Sítio Crescer é receber grupos interessados em aprender mais sobre a produção rural sem agrotóxicos e sobre a vida longe da cidade (ainda que a propriedade esteja a apenas 10 minutos de carro do Centro de Garibaldi). Entre as principais atividades que eles planejam oferecer está o tour guiado com dicas de educação ambiental e até um "colha e pague", no qual a pessoal faz a sua feirinha na horta e depois paga diretamente ao agricultor, no caso Damian e Ana.
— Queremos proporcionar a vida do sítio para os outros — sintetiza Damian.
A vontade de morar numa casa com quintal cheio de árvores e cachorro correndo na grama não é exclusividade de quem está começando a planejar a vida longe das asas dos pais. Pelo contrário, um ambiente mais saudável e tranquilo também está entre os anseios de muitos aposentados que passaram praticamente a vida inteira entre a paisagem urbana. Para o casal de descendentes de alemães Rugard Wentz, 67 anos, e Silonia Feilstricker Wentz, 60, a mudança de um apartamento no centro de Carlos Barbosa para a zona rural de São Pedro da Serra representou, ainda mais do que isso, um retorno às origens. A propriedade era da família de Seu Rugard, que ele deixou aos 21 anos para trabalhar na Tramontina, onde fez carreira até se aposentar. A ex-professora Silonia também tinha contato com a colônia, já que é natural do interior de Barão (cresceu num lugar chamado Linha Pimenta).
— Quando eu era novo, nunca gostava de roça, eu gostava era de ler. Hoje, eu não abriria mão disso aqui jamais — comenta Seu Rugard, sobre a propriedade que integra pomar, horta, açude e boa parte de mata fechada.
Quando jovem, Rugard mal falava português, mas se obstinou em vencer na vida. Não se contentou com a carreira que ia bem na principal empresa da cidade, mantinha ainda a função de baterista numa banda e trabalhava como fotógrafo em horários vagos. Em algum momento, sentiu que não daria conta de tudo, e acabou tendo de enfrentar uma depressão.
— Acho que eu quebrava a cabeça demais — sugere.
Depois do tratamento e com a aposentadoria se aproximando, Seu Rugard percebeu que havia um remédio muito poderoso para manter sua saúde. E ele estava disponível no mesmo lugar há décadas.
— Minha saúde depende da minha casa, da minha horta, dos meus tomatinhos... Não tenho nada hoje que me faça falta. Aqui tem macaquinhos, tatus, quatis em bandos. Amo o meio ambiente, isso dá para chamar de qualidade de vida. Não vendo nem por um milhão — sentencia, apontando para a grande área verde que enxerga da janela de casa.
Há mais de 10 anos, a propriedade que sempre serviu para passeios de fins de semana acabou virando residência fixa de Rugard, Silonia e do filho Icaro, hoje com 25 anos (a filha mais velha do casal, Kaila, 31, mora em Salvador do Sul). No espaço onde ficava a antiga casa dos pais, Rugard construiu um novo lar usando 90% de materiais que sobravam das reformas que fazia no apartamento da família, localizado na área central de Carlos Barbosa. No interior, o patriarca também abriu um minimercado, no qual o caçula trabalha.
— Aqui é muito tranquilo mesmo — diz o jovem, que costuma passar horas vagas jogando sinuca em casa ou vai até Salvador do Sul encontrar amigos.
Mesmo com toda essa ligação com São Pedro da Serra, a família mantém o apartamento em Barbosa, onde geralmente fica uns dois dias por semana. Icaro dorme lá quando tem aula do curso Administração de Empresas, que frequenta na Unisinos. Já o pai vai para a cidade descansar, por mais insólito que isso possa parecer. É que na propriedade rural ele está sempre consertando alguma coisa, ou plantando, ou colhendo, etc.
— Trabalho muito aqui, mas posso garantir que isso faz bem para minha saúde. Me orgulho muito de ter esse espaço — diz o patriarca.
Silonia é mais urbana que Rugard, reclama um pouco da poeira da área rural, mas abre um sorriso assim que começa a falar da rotina que leva no interior, enquanto brinca com a cachorrinha Lady.
— Temos muita liberdade aqui — resume ela.
Desde 2012, o engenheiro Giovani Ruffato, 28 anos, não sabe o que é pedir uma tele-entrega em casa. Na verdade, ele nunca tentou porque seria um pouco complicado explicar o caminho até a reclusa residência que divide com a mulher, Jéssica, num condomínio do bairro Monte Bérico, em Caxias. Eles abriram mão desse "conforto" sem hesitar, pois acreditam que ele é muito menor se comparado às inúmeras virtudes trazidas por um lar envolto por natureza.
— Acho que é uma grande preocupação das pessoas hoje em dia, sair do tumulto da cidade e buscar um lugar mais calmo. Sair do trabalho, vir para um lugar onde tu podes plantar e descansar sem preocupação. Quando decidimos construir, queríamos um lugar assim. Só não compramos mais longe por uma questão de logística — diz Ruffato, que leva diariamente, de carro, a mulher professora ao trabalho no bairro Belo Horizonte.
Na residência do casal, que ainda está em obras, a ideia sempre foi harmonizar a construção com as belas paisagens que a rodeiam. Valorizar a iluminação natural foi uma das principais preocupações no projeto. Um exemplo disso é o escritório de Ruffato, que está num mezanino da casa e tem a parede lateral praticamente toda de vidro.
— Sou engenheiro, né, nosso trabalho costuma ser fechado dentro de uma sala. Quis aproveitar o máximo dessa natureza que tenho aqui — justifica ele, cujo hobby sempre foi "estar no meio do mato" praticando atividades como a escalda esportiva e o ciclismo.
O pedacinho de terra que Giovani e Jéssica mantêm em Monte Bérico não tem exatamente a aparência de uma propriedade rural, já que o terreno tem um tamanho tradicional como na cidade. Mas basta dar uma voltinha no rústico quintal atrás da casa para perceber a diferença que o ambiente ao redor faz.
— Olha o jacu lá — aponta o engenheiro, avistando um grande pássaro a sobrevoar árvores bem próximas.
No espaço, o casal tem um canil e até um totem confeccionado pelo próprio Ruffato. Também há uma horta farta com cenoura, alface, radicci, rúculas e muitos temperos. Entre as árvores plantadas por eles, e que devem dar frutos em breve, estão pés de pitanga, araçá, caqui, figo, pera, etc.
— É tudo no teste, não somos agricultores. Mas a sensação de comer algo que tu mesmo plantaste é a melhor possível, de poder ingerir algo que tu fizeste nascer com tuas próprias mãos — diz o engenheiro.
Ruffato cresceu em meio ao fervo do bairro São Pelegrino, em Caxias. Depois foi morar com Jéssica no acesso ao bairro Cidade Nova, onde o casal ficou até se mudar para Monte Bérico.
— Lá era ônibus, caminhão passando, sem falar nos carros com som a toda. Aqui, à noite faz um silêncio absoluto, acho que a qualidade de vida aumentou muito. Se o dia está bonito fico ali fora, vou mexer na horta.
— O resumo da civilização humana é um alarme tocando, sempre tem um alarme tocando — sentencia o designer gráfico Eduardo Mendes Duso, 50 anos.
— Às vezes começa no sábado e termina só na segunda. Isso sem falar nas buzinas — complementa o companheiro e colega de profissão, Marco Aurélio Spalding Verdi, 51.
Mas o silêncio não foi exatamente o primeiro "ingrediente" a fisgar o casal no bucólico bairro de Galópolis, em Caxias. Há cerca de sete anos, enquanto procurava um terreno para comprar, Eduardo ficou encantado com a vista disponível em uma rua localizada nas costas do famoso Morro da Cruz. Quando retomou o fôlego mirando o horizonte riscado pelo verde da vegetação e pelo azul do céu, notou uma pequena placa com a inscrição "vende-se" pintada a mão. O sonho da casa com vista de cinema deve se realizar até o fim do ano, previsão para a obra ficar pronta.
— Legal que depois que compramos aqui, uma amiga nossa nos mostrou uma foto antiga que estava guardada dentro de um livro e foi tirada por ela justamente nessa paisagem, que ela achou bonita. Foi muita coincidência, acho que era para ser — sorri Marco Aurélio.
Juntos desde 1985, já haviam experimentado a calmaria de um bairro afastado entre 1996 e 2003, período no qual morou numa cabana em Ana Rech.
— Quando a gente voltou para o Centro, me assustava a quantidade de rostos vindo em minha direção enquanto caminhava na rua (risos) — lembra Eduardo, que atualmente divide um apartamento com Marco Aurélio na Rua Os 18 do Forte, no movimentado Centro de Caxias.
— A vivência da gente em Ana Rech, um lugar pequeno acolhedor, nos cativou. Lá comprávamos doces direto de uma doceira, as frutas vinham direto do pomar, queremos retomar coisas assim — sugere Marco Aurélio.
Esse princípio começou a ser colocado em prática durante a obra — iniciada em setembro do ano passado —, que conta com maior parte da mão de obra contratada em Galópolis mesmo. Entre os conceitos da edificação em pedra está, claro, a valorização do ambiente ao redor.
— Queremos deixar o máximo de mato possível, queremos preservar muito esta vista — sugere Eduardo.
Os dois têm se envolvido em todos os detalhes da construção e, nesses meses da fase derradeira da obra, a ansiedade e um pouco de estresse são inevitáveis. Mas nada que uma olhadinha pela janela ou uma inspirada funda no ar puro que vem da morro forrado de mata faça aliviar. Ah, e eles ainda contam com uma fonte de água pura dentro do próprio quintal.
— Foi uma condição na hora de venda: que o ex-proprietário pudesse continuar buscando água daqui — conta Marco Aurélio.
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