A simbologia do pão 
ao longo da História

Maria Beatriz Dal Pont é estudiosa da gastronomia, chef e sócia da Amada Cozinha Buffet e Catering

O trigo, juntamente com a vinha e a oliveira, são os produtos sobre os quais a civilização humana foi construída. Cereal ancestral, o trigo foi das primeiras plantas a serem domesticadas pelo homem, num processo que até hoje é desconhecido. Está no surgimento da agricultura, quando o homem tornou-se gregário, abandonando o nomadismo, já que o plantio de cereais tornou possível o assentamento e a obtenção de colheitas que serviam para alimentar o povo. A fase de transição entre o homem que coletava na natureza e o homem que plantava, transformando a natureza, pode ser identificada como o surgimento da cultura.


A pilagem dos grãos feita à mão deu lugar à moagem em pedra; a farinha rústica que era transformada em mingau, passa a ser assada na pedra quente, surgindo um dos primeiros pães, de formato arredondado, muito parecidos com o pão árabe, o egípcio, o sírio. Este pão ancestral não era acompanhamento para os alimentos, era o alimento principal. Os pobres viviam praticamente de pão, acompanhado de alguns poucos legumes ou peixe.


O pão era unidade de medida: a possessão de grande número de pães era sinônimo de riqueza e os fornos eram considerados como uma espécie de casa da moeda. O pão acabou se tornando meio de pagamento. Os sacerdotes eram pagos em pães, cerveja e bolos cozidos. O pão fermentado foi uma descoberta química. Nada mais do que uma massa feita de farinha, que é aglutinada e fermentada por leveduras ou outro agente semelhante e cozida ao forno. Durante o cozimento, formam-se gases dentro da massa que procuram sair, mas os poros da massa vão se tornando mais rígidos pela ação do calor que não permite sua fuga. Neste processo, o pão cresce, forma-se uma casca que envolve o miolo. Só a massa feita com farinha de trigo e centeio é capaz de conter os gases, já que as suas propriedades proteicas assim o permitem. Este pão fermentado está diretamente ligado à civilização ocidental há mais de seis mil anos.


O pão dominou o mundo antigo de forma material e espiritual como nenhum outro alimento. Foram os egípcios que inventaram o pão fermentado há 4.000 a.C. e ao seu redor construíram um império. No Egito, fabricava-se a cerveja fermentada, por isso não surpreende que tenha sido o local da descoberta da fermentação do pão (levan); foram os judeus que revestiram o pão de significados religiosos e sociais não ingerindo pão fermentado; os gregos que criaram mitos e lendas para explicar a força e o sentido do pão para o homem, tendo desenvolvido a arte da panificação; os romanos que fizeram do pão seu instrumento de dominação política. Foi pelo pão que expandiram seu império e por ele o perderam. Juvenal, um poeta romano, dizia que os dois únicos interesses do povo de Roma eram "panem et circenses" (pão e circo). A verdade é que os romanos gostavam muito de pão, razão pela qual fundaram a primeira associação de padeiros e aperfeiçoaram as técnicas de moagem. Surgiram novas formas de preparo do pão, com a adição de ervas, sementes, frutas, azeites.


As novas técnicas de moagem incluíam o processo de refinação da farinha, o que a tornava muito branca e muito cara. Assim, os pães feitos com farinha branca eram acessíveis somente aos ricos e poderosos. O povo continuava consumindo pão escuro, feito com mistura de cerais integrais que são saudáveis, mas eram pouco considerados. A classe social a qual pertencia uma pessoa podia ser percebida pela cor do pão que comia. O pão branco só era ingerido pelos pobres em dias de festa, quando era distribuído pelos conventos. Os moinhos se multiplicavam e os padeiros acabaram sendo funcionários do Estado, sendo responsáveis pela moagem do trigo e pela fabricação do pão.


Uma politica agrária mal estabelecida terminou com os pequenos produtores e fez surgir grandes latifundiários que produziam em grande quantidade e custos baixos. Uma migração em massa destes camponeses para as cidades trouxe a fome e, com ela, a revolta, a doença e o enfraquecimento do estado.

Num mundo de carência e de fome, onde os políticos usavam o pão para fins políticos, fornecendo alimento para quem os apoiasse, com a religião que atendia aos aspectos mundanos mais que os espirituais, surge uma figura que traz o resgate e a salvação, apresentando-se como filho de Deus. Num momento de carência espiritual e física, Jesus Cristo transformou o pão, tornando-o símbolo do alimento espiritual, afirmando "Tomai e comei! Eu sou pão..."


Assim o pão torna-se sagrado, metáfora do alimento para a alma, a salvação pela fé, a adoção dos princípios éticos e morais prescritos por Cristo. O pão que mantém a vida física é também o alimento para a vida espiritual. Da junção dos dois, a salvação humana. A Bíblia traz inúmeras passagens onde o pão é protagonista: o maná, o pão do deserto, as bodas de Canaã, a multiplicação dos pães, a última ceia. Não só o pão espiritual, como o pão material que mata a fome. A observação da prece Pai Nosso, a oração que Jesus ensinou, mostra a importância concedida ao pão: "o pão nosso de cada dia nos dai hoje", ou seja, Jesus Cristo pedia a Deus diretamente que provesse o pão de cada dia, o alimento para a manutenção da vida, o sustento das famílias e dos homens, além de proteção e força espiritual.


O pão é como o fio condutor da história da civilização. Com ele surgiram impérios, pela falta dele caíram reis e imperadores. Na Idade Média, com o alto consumo do trigo, o pão volta a ser elaborado com uma mistura de cereais e legumes secos como a cevada, o milhete e a ervilha. O pão de farinha de trio refinada, o branco, é reservado apenas aos doentes e aos nobres. Um terceiro tipo de pão, feito á base de cevada ou aveia, serve aos pobres. Em todos os casos, o pão é consumido diariamente e em todas as refeições. Era considerado o alimento por excelência, o de mais valor e o mais comum.


Em 1572, dois autores franceses, C. Estienne e Jean Lièbaut escreveram:


"É certo que o pão está em primeiro lugar entre as coisas que devem alimentar o homem (...). A maioria dos outros alimentos, por mais agradáveis que sejam ao gosto, bem preparados e temperados com bons molhos, causam no mais das vezes enjoo e desdém; pão é o único que não desagrada nunca, seja na saúde ou na doença; na saúde é o primeiro e o último alimento no curso da refeição, prazeroso, agradável em qualquer tipo de refeição. Certamente o pão também é dotado, por uma dádiva da natureza, de todos os sabores, que particularmente tornam mais atraente e apetitosa qualquer comida (...) Os outros alimentos, por mais gostosos que sejam não poderiam ser agradáveis nem benéficos para a saúde, não fossem acompanhados de pão: isso porque o pão corrige os defeitos dos outros alimentos e acentua suas virtudes. É por isso que o provérbio popular diz que qualquer comida é boa e proveitosa quando acompanhada de pão".


Até o século XX, resiste a distinção entre o pão como alimento principal que nutre, devendo ser comido em quantidade e os complementos, os demais alimentos, vistos como temperos para acompanhar o pão. A sopa é o prato que assume maior importância como alimento complementar ao pão. Era essencial e único em praticamente todas as refeições feitas em casa e designava todos os tipos de refeição compostos por um caldo aromatizado com raízes e ervas, um pedaço de carne, um tipo de gordura, folhas e legumes frescos.


Se, na antiguidade, o pão branco era sinal de status e poder econômico; o pão escuro, feito de mistura de cereais, era considerado comida de pobre e de baixo estrato social, uma grande reviravolta marca a idade contemporânea. O pão branco, embora muito apreciado e consumido, perde adeptos para o pão de sementes, de farinhas integrais, pães de fermentação natural, reconhecidos como mais saudáveis, mais nutritivos e menos calóricos.


Comer pão de farinhas integrais e de fermentação natural demonstra preocupação com a saúde, com o peso, com a aparência. São mais caros que os pães brancos e vendidos como uma especialidade. Uma inversão complementada pela corrida contra as calorias, pela onda fitness, onde o pão é um dos vilões, cheio de carboidratos e gorduras, portanto listado como dispensável numa alimentação equilibrada. A farinha de trigo é protagonista de outro fenômeno contemporâneo: o da intolerância ao glúten. As pessoas com sensibilidade ao glúten ou portadoras da doença celíaca não conseguem ingerir produtos à base de farinha de trigo, como o pão, sob pena de ficarem doentes.


O surgimento do fermento em pó, no início dos anos 1900 do século passado, nos Estados Unidos, causou uma revolução na padaria. O uso do fermento natural caiu em desuso, o pão passou a ser preparado com rapidez e a arte da panificação ficou reduzida a misturas prontas para uso. O domínio da fermentação natural foi perdido, já que o pão não precisava mais de um processo longo e trabalhoso de fermentação, que exigia conhecimento e prática por parte dos padeiros.


A padaria deixou de ser um estabelecimento de produção de pães, para se tornar uma espécie de loja de conveniência, com pão saindo do forno a toda a hora, e não apenas duas vezes por dia como no tempo da fermentação natural. Com a facilidade das misturas pré-prontas para panificação, os fornos elétricos ou a gás de tamanho reduzido, o pão passou a ser vendido em supermercados, fruteiras, lojas de conveniência, postos de gasolina, em lugares que o tornassem acessível à população em todas as horas do dia. Os pães congelados facilitaram ainda mais o processo, eliminando o padeiro e sua arte, transformando a padaria numa forneria, ou seja, o lugar onde apenas se assa o pão fornecido por terceiros.


Este processo faz com que os tipos de pães sejam padronizados em praticamente dois tipos: o pão francês, apresentado em porções de 50 e 25 gramas, com vida útil bem curta; o pão de forma ou industrializado, de longa durabilidade, produzido em grande escala em indústrias especializadas. Não importa o tipo e o peso do pão, ele sempre é fabricado com fermento químico, de rápida ação.


Tecnicamente, o conceito universal divide o pão em três tipos:

  1. Os pães crocantes: ciabatta, baguete, francês, italiano;
  2. Os pães suaves: hambúrguer, multicereais, croissant, forma, sonho.
  3. Os pães doces: brioche, panetone, pão doce, rosca, colomba, stolen.


A farinha de trigo está 100% presente em todos os tipos. O que vai variar na base é a quantidade de gordura, que vai de 0 a 25% e o açúcar, também de 0 a 25%. Assim, pão se faz com farinha, água, fermento e gordura, podendo haver adição de açúcar ou não dependendo do seu tipo.


Como o homem chegou a esta combinação perfeita? Há várias histórias, mas a que parece ser mais provável é a que conta que o pão surgiu por um acaso. Alguns grãos de trigo foram deixados expostos ao tempo por uma noite de chuva. Os grãos ficaram cheios de água, formando uma pasta uniforme. O homem primitivo experimentou e sentiu-se alimentado. A partir daí, o processo vai sendo repetido e aperfeiçoado, num contínuo que perdura até hoje, como o surgimento de novas técnicas a partir da descoberta do fermento químico.


A diferença entre os dois tipos de fermento pode ser explicada da seguinte maneira: o fermento biológico é composto por fungos microscópicos vivos, enquanto o químico (ou em pó) é feito à base de bicarbonato de potássio. A forma como eles agem é bastante distinta. Os fungos do fermento vivo se alimentam da glicose da farinha de trigo: sua digestão produz, entre outras substâncias, as bolhas de gás carbônico (ou dióxido de carbono) que fazem a massa crescer. Já no fermento químico, o mesmo gás é obtido em reações do bicarbonato de sódio com algum ácido. Na fabricação do fermento em pó, o bicarbonato é misturado a substâncias que se tornam ácidas ao entrar em contato com líquidos ou quando são aquecidas. O pó já começa a reagir na hora de bater o bolo e, na maioria das vezes, continua a fazê-lo enquanto o bolo está no forno. Já os fungos do fermento biológico demoram um pouco a fazer seu trabalho e morrem no calor do forno. Assim, em receitas com fermentação biológica, como pães e pizzas, é necessário esperar a massa crescer antes de começar a assá-la.


A gastronomia, através das mãos de chefs de renome internacional, inicia um movimento de recuperação das técnicas de fermentação natural a partir de passas de uva, batatas, cascas de frutas, mosto de uvas. Recuperam-se as receitas de massa madre, de levan, busca-se o domínio da fermentação, tipificam-se as farinhas, demanda-se por farinhas sem aditivos, reforçadores ou branqueadores tão populares nos anos 80 e 90 do século passado. Surgem novos padeiros usando fermentação ancestral e um renascimento de padarias artesanais, onde as palavras pré-mescla, fermento químico, pão congelado, conveniência são substituídas por alimentar o fermento, espelta, farinha francesa, baguete, campanha; as embalagens plásticas substituídas por papel pardo e o hábito de comprar pão todo o dia restabelecido.


O pão continua um alimento essencial ao homem, continua universal, portador de sentidos múltiplos, sagrado, indispensável, cultural, civilizado e, principalmente, gostoso. Tem razão Heinrich Eduard Jacob quando escreve em seu livro Seis mil anos de pão que "não há neste mundo um pedaço de pão que não tenha sido amassado também pela religião, pela política e pela técnica".



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