A infância em jogo

Para ler ouvindo:

Estudos revelam que a dependência em equipamentos eletrônicos tem afetado o desenvolvimento de crianças e adolescentes

PUBLICAÇÃO EM 7 DE OUTUBRO DE 2016

TEXTO

Diego Adami

diego.adami@pioneiro.com


Imagens

Felipe Nyland

felipe.nyland@pioneiro.com

Marcelo Casagrande

marcelo.casagrande@pioneiro.com

Luz Rojas Kardaras



INFOGRAFIA

Guilherme Ferrari

"Uma vez lá embaixo, eu podia ver um brilho estranho que emanava de um canto na escuridão. Apertando os olhos para ajustar-me à sala escura, era capaz de ver a fonte de luz: era a versão local e menos equipada de um cybercafé — dois velhos computadores Apple em uma pequena mesa num canto de um porão deprimente. Quando olhei mais perto, pude ver as silhuetas escuras de dois garotos americanos rechonchudos que jogavam videogames com seus rostos redondos iluminados por telas a apenas polegadas de distância de suas faces. Isso é estranho, pensei. Uma das mais belas paisagens, onde as crianças gregas brincavam do nascer ao pôr do sol a apenas alguns passos de distância, mas esses dois estavam escondidos na escuridão no meio de uma tarde ensolarada."


Presenciada em 2002, durante uma viagem ao vilarejo de Loutro, na Grécia, a cena permanece forte até hoje na memória de Nicholas Kardaras. Enquanto os moradores locais se divertiam em cenários paradisíacos ao ar livre, os dois adolescentes gastavam horas e mais horas em frente ao computador em uma sala escura localizada no caminho para os toiletes, no porão de um café... à beira-mar.


O episódio marcou tanto que foi parar na abertura do livro Glow Kids: How Screen Addiction is Hijacking Our Kids — and How to Break The Trance (Crianças Brilhantes: Como o Vício em Telas Está Sequestrando Nossas Crianças — e Como Quebrar o Transe, em tradução literal para o português), no qual o psicólogo norte-americano aborda como a dependência em equipamentos eletrônicos tem afetado o desenvolvimento de crianças e adolescentes e quais as consequências dessa exposição. Resultado da compilação de mais de 200 estudos envolvendo mais de 20 mil jovens nos últimos dois anos, a obra, disponível apenas em inglês na Amazon.com, mostra o impacto da tecnologia nos cérebros dos jovens e como os pais podem (e devem) lidar com isso. As descobertas foram surpreendentes.


— Alguns estudos de imagem do cérebro mostram que o córtex frontal, a parte que executa a função de controle dos impulsos, encolhe com o excesso de uso de telas exatamente como quando há o vício em drogas. Há muitas pesquisas clínicas que correlacionam as telas a distúrbios como déficit de atenção e hiperatividade, aumento de depressão, ansiedade e mesmo psicose — afirma Kardharas, em entrevista ao Almanaque.


Não é preciso, no entanto, ir ao Mediterrâneo para ter uma experiência como a do pesquisador. A cena se repete dia e noite em qualquer lugar ao redor do mundo em casa, nas escolas, em restaurantes ou mesmo na rua: jovens de cabeça baixa com os olhos vidrados, rostos iluminados por telas brilhantes, quase sem expressão. Na descrição de Kardharas, algo semelhante aos zumbis da série The Walking Dead.


Segundo o pós-doutor, que atuou como professor universitário por mais de 10 anos, a dependência em eletrônicos começou a tornar-se um problema a partir da última década, quando o acesso uma infinidade de equipamentos eletrônicos tornou-se cada vez mais comum.

— Um dos sintomas de um vício é que você se envolve em alguma coisa que começa a destruir ou afetar negativamente sua vida. Vemos jovens que já estão no Ensino Médio e que não têm amigos, não praticam esportes... Todas essas coisas se desenvolvem exatamente como quando uma pessoa tem problemas com drogas. Elas se isolam da vida, dos amigos, do trabalho, da escola — afirma.


Os efeitos da exposição a telas são mais nocivos nos mais novos, especialmente em crianças abaixo dos 10 anos de idade. Por estarem com o cérebro em desenvolvimento, acabam tendo habilidades como atenção e concentração mais impactadas:

— Não há uma pesquisa confiável que mostre que uma criança exposta à tecnologia mais cedo na vida tem melhores resultados educacionais do que uma criança livre de tecnologia. Não há qualquer pesquisa que mostre que eles se tornam melhores alunos.


A falta de esclarecimento dos pais em relação ao assunto foi a razão pela qual Kardharas escreveu Glow Kids, lançado em agosto. Segundo ele, alguns pais entendem, intuitivamente, que não pode ser bom para uma criança ficar sentada na frente de um iPad. No entanto, tem suas convicções confrontadas quando, por exemplo, as escolas incentivam o uso de tecnologia.


— As escolas estão dando a tecnologia às crianças em idades muito precoces. Então muitos pais pensam: "como pode ser ruim, se as escolas estão dando isso para meus filhos?" As escolas são parte do problema — salienta.

Glow Kids:
How Screen Addiction is Hijacking Our Kids — and How to Break The Trance

Autor:  Nicholas Kardaras (St. Martin's Press, 2016, 288 páginas)
Disponível:  Amazon.com por USD 13,12 (Kindle) ou USD 17,10 (hardcover) e na Amazon.com.br por R$ 42,12 (Kindle). Somente em inglês 

Detox digital

Atualmente, Kardharas administra uma clínica de reabilitação para viciados em drogas, em álcool e em tecnologia, na qual os pacientes são submetidos a um "detox digital" ou unplugging (desplugar, em português). Durante o processo, que dura entre quatro a seis semanas, o uso de eletroeletrônicos é cortado gradativamente até o ponto do não uso. Esse é o tempo que leva para o cérebro acalmar-se e voltar ao normal.

— O problema é que se você tem um jovem que é viciado, a pessoa fica agressiva, violenta (com a proibição). É como qualquer outro viciado em drogas. Se você retirar, eles ficam muito violentos às vezes.

A retirada gradual dos gadgets, explica o autor, é a chave para cortar a maioria dos produtos eletrônicos e substituí-la por algo natural, como exercícios, passatempos, esportes, criatividade ou qualquer outra coisa que não seja ficar sentado na sala fazendo nada.

Com uma rotina cada vez mais estressante, não é raro que muitos pais deleguem a smartphones, tablets e computadores a tarefa de entreter os filhos. Uma espécie de baby sitter virtual que embora pareça mais fácil, não seria o melhor caminho. 

Pai de gêmeos de nove anos, Nicholas Kardaras admite que a tarefa de manter os filhos longe de equipamentos eletrônicos não é das mais fáceis. Por telefone, de Nova York, onde mora, ele conversou com o Almanaque. Confira trechos da entrevista:

 

Almanaque: O subtítulo de seu livro Glow Kids diz que os eletrônicos estão "sequestrando nossas crianças". O que os pais podem oferecer em troca para resgatar os pequenos desse "sequestro"?

Nicholas Kardaras: Eu falo sobre a solução no meu livro. A propósito, qualquer vício sequestra uma pessoa. Qualquer pessoa que desenvolve um problema com droga ou um álcool torna-se sequestrado pela droga, pelo álcool ou pela tela. A solução é a prevenção. Não exponha o seu filho a uma tela quando eles são muito jovens. Espere até que eles tenham mais de 10 anos de idade. No livro, há uma carta que os pais podem entregar às escolas. Se a escola está usando iPads e Kindle na primeira série, na segunda série, a carta pede para não usar a tecnologia com as crianças. A solução é, primeiro de tudo, prevenção. Para corrigir o problema, uma vez que ele se desenvolve, é muito difícil de tratar porque as telas estão em todo os lugares. 


Almanaque: Parece que, muitas vezes, os equipamentos atuam como baby sitters...

Nicholas Kardaras: Eu entendo, porque tenho gêmeos de nove anos de idade, e isso pode ser um desafio. É difícil, estamos ocupados, somos pessoas que trabalham e às vezes é fácil dizer: "olha, sente-se em frente a este computador e você vai ficar quieto nas próximas duas horas". Infelizmente essa não é a melhor maneira. É fácil, mas não é o melhor caminho.

 

Almanaque: Em casa, como são as regras com seus filhos?

Nicholas Kardaras: Sem telefone, sem computador. Nós os deixamos assistir a um pouco de televisão, algum esporte, gostamos de assistir a filmes antigos. Muitos de seus amigos jogam videogames e eles me dizem: "Pai, nosso amigo começou a jogar Minecraft e agora ele é diferente. Ele não quer mais jogar basebol e quer apenas jogar Minecraft" Não foi tão duro quanto eu pensava que ia ser. Pensei que teria de lutar todos os dias (para afastá-los dos equipamentos eletrônicos). Eles gostam de ler livros e disseram "nós não queremos ser como essas outras crianças". Uma das coisas mais importantes que os pais podem fazer é ter uma conversa honesta com os seus filhos, mesmo quando eles são jovens, sobre os efeitos da tecnologia. Eu disse a meus filhos quando eles tinham seis anos por que não daria Minecraft ou videogames: "não é bom para você". E eles entendem.



Soluções para o vício digital, segundo o autor:


  1. Passe tempo de qualidade com seus filhos.
  2. Quando forem jantar, jante junto com a sua família. Não tenho o computador ligado, o telefone, o smartphone, tablets.Jantem e conversem.
  3. Envolva-os na vida real, em vez de experiências digitais. 
  4. Incentive seus filhos a jogar futebol, ouvir música, fazer coisas junto à natureza, natação, caminhar, andar de bicicleta. Essas são as soluções para o vício digital.

Aqui em casa é assim

A jornalista Patrícia Janczak, 36 anos, conhece bem os desafios que a educação dos filhos impõe. Uma tarefa que se torna ainda mais complexa em uma época em que os petizes estão expostos aos mais diversos estímulos e na qual as informações circulam em uma velocidade cada vez maior. Casada com o empresário Rodrigo Daniel Hamme, 40, e mãe de Rafaela, nove, e Laura, sete, Patrícia diz que estabelecer limites é o melhor caminho para garantir um desenvolvimento saudável às crianças.


Na casa deles tudo é controlado. O acesso a eletrônicos é limitado a uma vez por semana — e somente após as meninas cumprirem todos os deveres da escola. Rafaela e Laura não têm celular para levar à escola, apenas um aparelho usado, com acesso à internet apenas via rede wi fi e em casa. O contato com a televisão é mínimo e raramente ultrapassa uma hora diária.


— Procuro conversar bastante com elas e estimular para que não dependam disso. A maioria dos coleguinhas têm (celular ou tablet), mas mostramos que não é preciso estar toda hora conectadas. Mas claro que permitimos que usem de vez em quando para que não fiquem alheias à realidade — conta Patrícia.


Quando precisam pesquisar um assunto na internet para um trabalho escolar, a tarefa é acompanhada de perto pelos pais, que também procuram proporcionar às filhas atividades extraclasse, como o grupo de escoteiros, as aulas de violão e a ida à catequese para que as meninas tenham outros estímulos.


Há dois meses, Patrícia lançou no YouTube o canal Aqui em Casa É Assim, no qual relata experiências e opiniões a respeito da maternidade. Em vídeos semanais, gravados na sala de casa com o auxílio do marido, a jornalista reflete desde Pokémon GO e músicas com conteúdo impróprio para menores até alimentação saudável e animais de estimação.


— É legal porque antes de gravar, preciso fazer uma reflexão pessoal a respeito do assunto. E fazemos sempre juntos. Converso com as gurias, que muitas vezes ajudam a escolher o tema, e também com o Rodrigo. Muitas mães também acabam externando suas opiniões — comemora.


Opção para o jantar

Um serviço oferecido pela Pizzaria Giordani por meio de tablets e aparelhos de DVD portáteis permite que as crianças que frequentam as duas unidades do restaurante, em Caxias do Sul, se distraiam durante as refeições sem fugir do olhar de seus responsáveis. Há sete anos, o estabelecimento realizou uma pesquisa com os clientes, questionando-os se preferiam que os pequenos ficassem em um Espaço Kids, sob os cuidados de um recreacionista, ou à mesa, realizando algum passatempo próximo aos adultos. Conforme o empresário Marcos Giordani, mais de 70% dos consultados escolheram a segunda opção, por considerarem ser mais tranquilo ter os filhos por perto.


Maria Luísa Binsfeld, quatro anos, é cliente assídua da pizzaria. Na companhia dos pais e da irmã, Mayara, 12, a garota diverte-se entre uma garfada e outra assistindo no YouTube vídeos do Pica-Pau, seu personagem favorito.


— Acho melhor que ela fique perto do que em outro ambiente porque ao mesmo eu e meu marido conseguimos conversar com tranquilidade e também atendê-la, além de fazermos a refeição todos juntos — afirma a mãe, a auxiliar financeira Márcia Regina de Almeida, 32.

Além de interagir com os eletrônicos, Maria Luísa também gosta de passar o tempo no restaurante colorindo os desenhos do jogo americano que também é disponibilizado aos clientes. Já Mayara é adepta da leitura. O título mais recente que leu foi O Código Da Vinci, de Dan Brown.


Conforme o proprietário, a maioria dos entrevistados na pesquisa apontou que o Espaço Kids é pouco prático, uma vez que exige o deslocamento até outro ambiente, além da inconveniente correria dos pequenos pelo salão.


— Mesmo que ela coma pouco, pelo menos estamos por perto — avalia a mãe.


A capa

O menino da capa e da imagem ao lado é Bruno Mazzochi Duarte e participa apenas do ensaio fotográfico especial produzido para esta reportagem.

Compartilhe