Tradição dos presépios remonta aos primeiros séculos do cristianismo
PUBLICADO EM 24 e 25 DE DEZEMBRO DE 2016
TEXTO
Maristela Scheuer Deves
maristela.deves@pioneiro.com
Imagens
Diogo Sallaberry
diogo.sallaberry@pioneiro.com
INFOGRAFIA
Guilherme Ferrari
O primeiro Natal de Maria Luiza, que completou um mês de vida na sexta-feira, será especial: neste sábado, na manjedoura montada na Igreja Imaculada Conceição (Capuchinhos), ela fará o papel de um menininho nascido há mais de 2 mil anos e que, até hoje, é lembrado e celebrado no mundo inteiro a cada 25 de dezembro.
— Essa é a essência do Natal, o símbolo maior de amor e união da família — emociona-se sua mãe, Fernanda Concatto, que representará Maria, enquanto o marido, Luiz Bayard Martins dos Santos, será José.
A participação da família no presépio vivo mostra a permanência de uma tradição cuja origem costuma ser atribuída a São Francisco de Assis. Embora o santo, que viveu no século 13, seja considerado por muitos o criador dos presépios, frei Celso Bordignon, doutor em Arqueologia Paleocristã, salienta que ele apenas retomou um costume então esquecido, mas que data dos primeiros séculos do cristianismo: a encenação do nascimento de Jesus.
— São Francisco resolveu celebrar o Natal num ambiente que lembrasse o lugar em que Jesus nasceu, e escolheu uma gruta num monte, em Greccio, na Itália. Colocou um boi, um burro e ovelhinhas de verdade, mas sem ninguém representando José, Maria e Jesus — conta o religioso, acrescentando que segundo a lenda o santo teria se inclinado sobre a manjedoura vazia, iluminada por uma luz, e os presentes o viram conversando como se houvesse mesmo um bebê ali.
Bem antes disso, representações do Natal aconteciam nas catedrais, para facilitar a transmissão da doutrina ao povo, uma vez que a maioria não sabia ler para ter contato com os relatos bíblicos. E, lembra Bordignon, até mesmo nas catacumbas aparecem pinturas mostrando o menino nascido em Belém — uma das mais antigas data do século 3, está nas catacumbas de Santa Priscila, em Roma, e mostra Maria, o bebê e um anjo apontando uma estrela, símbolo da chegada da luz divina.
Com o tempo, o presépio saiu do interior das igrejas e foi para as casas, da mesma forma que foram sendo agregados novos elementos. Alguns são citados no Evangelho, como os pastores e os Reis Magos, outros têm a ver com cada cultura. Inclusive muitas peças de presépio costumam ter as feições dos povos que os constroem, além de haver diferenças nas representações no Ocidente e no Oriente: enquanto aqui predominam os presépios feitos com pequenas estatuetas, lá geralmente são pinturas, ou ícones.
O mais importante, destaca frei Celso, não é o tamanho ou o tipo do presépio, se ele tem centenas de peças ou apenas Jesus, Maria e José: o seu valor é simbólico, independente de como é materializado.
— É sempre a memória do fato. Natal é a festa da vida, do reencontro da família. E isso é o mais bonito.
Segundo o Evangelho de Lucas, José e Maria, moradores de Nazaré, foram a Belém para participar de um recenseamento ordenado por César Augusto. Enquanto estavam ali, completaram-se os dias para o parto e Maria envolveu o filho em panos e colocou-o numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria, diz o texto.
É impossível falar em presépios, em Caxias do Sul, e não lembrar de Ana Rech. Afinal, não é à toa que o bairro é conhecido como Vila dos Presépios. A tradição começou há 25 anos, quando foi organizado o primeiro Encanto de Natal, com os moradores convidados a tirar as imagens de dentro das casas e montá-las no jardim. Aos poucos, as famílias começaram a se organizar e a montar presépios maiores, por rua, iluminados durante a noite e abertos à visitação. Chegaram a ser mais de 100, fazendo a alegria de turistas que os visitavam em passeios de dindinho.
— Na minha rua, começamos a fazer no segundo ano. Ficávamos até tarde da noite fazendo as peças, e a cada ano íamos acrescentando alguma coisa — lembra Mari Dalla Santa.
Hoje, a Rua Dom Timóteo, onde ela mora, é uma das poucas onde os moradores ainda montam presépios, apesar de neste ano a atividade estar bem reduzida. O dindinho também acabou. Isso porque, por volta de 2010, muitos moradores do bairro desistiram de participar, devido aos custos com a iluminação. A solução encontrada pela Associação Amigos de Ana Rech (Samar) foi organizar um espaço para abrigar essas representações, a Aldeia dos Presépios, situada junto à sede da entidade. Nesta edição, são 23 presépios na Aldeia, a maioria montada por empresas e entidades. Os materiais são os mais variados, de palha e madeira a lâmpadas usadas.
— Nos finais de semana, chegamos a receber 4 mil pessoas, principalmente à noite — conta o presidente da Samar, Alberto Sales.
Lúcia Chies, também integrante da Samar, ao lado de Sales e Mari, conta que neste ano tudo foi organizado em pouco mais de um mês. Para o próximo ano, a ideia é começar a mobilizar os moradores já em setembro.
— Esperamos que, em 2017, a comunidade fique mais motivada e volte a fazer (os presépios) nas casas também — diz, acrescentando que há planos de usar postes de iluminação solar, para reduzir os custos.
A Aldeia dos Presépios fica na esquina das ruas Pe. Jerônimo Rossi e Silvia Facciolli e pode ser visitada até 6 de janeiro com entrada gratuita.
Em Ana Rech, além da Aldeia dos Presépios, vale visitar o presépio permanente localizado na Praça Padavena, no centro.
Todo em metal e em tamanho natural,
foi idealizado em 2003 pelo
artista plástico Edmilson Duarte Almeida.
Sem Rolhas
Um dos mais tradicionais presépios de Ana Rech, o de rolhas, construído por Antonio Molin, foi transferido em fevereiro passado para a Cidade de Rolhas, nos pavilhões da Festa da Uva. Entretanto, segundo informações da Secretaria Municipal do Turismo, no momento a atração está fechada para manutenção, e não há previsão de reabertura.
Imagine São José de bombacha, cuia na mão, enquanto Maria, vestida de prenda, amamenta o menino Jesus. Ou as imagens da Sagrada Família confeccionadas com folha de bananeira, crochê, nó de pinho, dressa (palha trançada), ferro, papel, tecido, palito de fósforo, osso, favo de mel. Ou, ainda, presépios em tamanho reduzido dentro de um porongo, uma vela de sete dias, uma semente de manga, uma casca de fruta do conde e até mesmo uma casca de noz.
Essas e outras preciosidades são colecionadas há meio século pela professora aposentada Mari Joana Scherner, apaixonada por presépios desde a infância.
— Não é o material que importa, é a criatividade, a arte, e a mensagem de amor e de família — diz Mari, acrescentando que valoriza da mesma forma as imagens mais artesanais e simples e aquelas tradicionais, trazidas da Itália ou feitas em cristal tcheco.
É impossível não se encantar com as sete ou oito centenas de presépios, cada um com sua característica própria. Há inclusive um ícone pintado pelo frei Celso Bordignon, reproduzindo um quadro do italiano Giovanni Mezzalira (que, por sua vez, inspirou-se nos antigos ícones bizantinos), e peças das mais variadas partes do Brasil, da Bolívia, do México, da Alemanha, da Itália, etc.
Além de garimpar novos presépios em viagens e feiras de artesanato — há vários confeccionados por uma artesã caxiense, e alguns de artistas plásticos da região —, muitos amigos também costumam presenteá-la com esse mimo. No dia da visita do Pioneiro, por exemplo, um Menino Jesus presenteado por um padre da paróquia São Pelegrino integrou-se à coleção.
— A cidade já foi mais festiva.
A constatação é do artista plástico Valdir dos Santos,
que, por vários anos, respondeu pelos presépios da
Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Fã do Natal, ele lamenta a perda gradual do espírito natalino, que se traduz em casas menos iluminadas e em decoração parca das ruas.
— Situação política e crise não inibem a criatividade. O que está faltando é se desafiar, tem de ter mais doação. O espírito de Natal é um sentimento que precisa ser alimentado — avalia, acrescentando que isso vale para poder público e comunidade.
Santos lembra que uma de suas primeiras experiências com o tema foi ainda nos anos 1970, quando, pela UCS, ajudou a montar o presépio da catedral:
— Fizemos de última hora, e lembro que coloquei um anjo com a faixa em branco. O (bispo) Dom Paulo (Moretto) perguntou onde estava o "Paz na terra", e eu respondi, "no coração". Ficamos amigos.
Lá por 2010, foi desafiado pela universidade a montar um presépio em Ana Rech, pela instituição. Com poucas verbas, deixou a criatividade nata aflorar e, usando cortinas velhas que encontrou no almoxarifado, transformou-as em vestes para Maria, José e Jesus, feitos com manequins e montados numa casa em ruínas na entrada do bairro. Noutra ocasião, fotografou figuras minúsculas, ampliou-as, recortou e adesivou com elas placas de vidro, colocadas dentro da cascata da UCS. O custo foi baixo, e o efeito, excelente.
Em casa, o artista plástico optou por presépios em miniatura — tem um de prata, outro em cristal. Começou uma coleção em biscuit, mas não encontrou todas as peças. Nesta época, também não dispensa os pinheirinhos e a música natalina: tem cerca de 50 CDs temáticos, passando por nomes como Elvis Presley, Frank Sinatra e Ringo Starr.
O presépio montado na Igreja São Pelegrino
ganhou, neste ano, um toque extra: para lembrar os 300 anos
do encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida,
a gruta foi substituída pelo manto azul da padroeira do Brasil, com
a manjedoura e as outras imagens colocadas dentro dele. Já as bolas do pinheirinho formam um rosário.
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