Muro também é tela

Às vésperas do Dia do Grafite, celebrado na segunda, ampliamos debate que pautará encontro no Ordovás sobre "pixoartegrafite"

PUBLICADO EM 25 e 26 DE MARÇO DE 2017

TEXTO

Siliane Vieira

siliane.vieira@pioneiro.com


IMAGENS

Diogo Sallaberry

diogo.sallaberry@pioneiro.com

Marcelo Casagrande

marcelo.casagrande@pioneiro.com

Roni Rigon

roni.rigon@pioneiro.com


INFOGRAFIA

Andressa Oestreich

Pense numa cidade grande e plural nos dias de hoje: como você descreveria a estética do lugar? É bem provável que muros coloridos com grafite estejam inseridos nesse imaginário, já que a arte de rua compõe o que se entende por "a cara" das grandes metrópoles há um bom tempo. Recentemente, uma polêmica instalou-se em São Paulo, por conta da decisão da prefeitura de pintar de cinza alguns murais com grafites considerados velhos ou danificados. Caxias do Sul resolveu entrar na discussão, que ganhou rodas de conversa no Brasil inteiro, para ampliar o debate. Neste sábado, o Centro de Cultura Ordovás promove a primeira edição do projetos Diálogos com o tema "pixoartegrafite". Às vésperas do Dia Internacional do Grafite, segunda-feira, a secretaria da Cultura convida grafiteiros, pichadores e comunidade para tentar responder a perguntas complexas como "o que é arte?".

— Eu tenho 10 de experiência com curadoria, então as pessoas vinham perguntar minha opinião sobre essa polêmica que estava acontecendo em São Paulo e eu percebi que sempre acabava me contradizendo em algumas coisas, senti que precisava saber mais, precisava de mais amadurecimento no discurso. A arte contemporânea nos deixa muitas pulgas atrás da orelha — comenta Mona Carvalho, diretora da Unidade de Artes Visuais, que propôs a iniciativa.

A ideia é reunir tanto "o pessoal da academia", como personalidades ligadas à área de patrimônio histórico e os próprios protagonistas da arte de rua, que transformam técnicas como o grafite, o pixo, o stencil, a colagem, etc.. numa porta sempre aberta para a expressão, fazendo da área urbana da cidade suas próprias galerias de arte. 

Ligados à arte de rua desde moleques, Vinicius Marcon, 29 anos, Guilherme Cavion, 25, e Vitor Hugo Dell Osbel, 21, estarão no encontro de sábado para fazer uma live painting e discutir o documentário Pixo (2009). Todos já fizeram algo relacionado ao tema em algum momento, mas acabaram levando as técnicas para outros patamares naturalmente.

— Todo mundo já fez pixo e está onde está hoje por causa disso, a gente começou ali também — diz Osbel, o Stang, que já está ganhando dinheiro com trabalhos em colagem, tinha acrílica, spray e rolinho.

Mesmo produzindo obras sob encomenda, o artista comenta que o maior prazer da criação reside mesmo no "rolê de rua".

— Tá na essência — justifica ele, que defende a pichação como arte: — Curadores da Europa vêm ao Brasil para ver isso, os caras que fazem estudam muito as tipografias. A pichação de São Paulo é arte, só existe lá, é arte total.

O trio de amigos costuma sair para grafitar muros durante o dia, contrariando a imagem da contravenção noturna que muitas pessoas têm. Geralmente, eles escolhem tapumes de obras ou muros de lugares abandonados para colocar seus trabalhos.

— Eu nunca pego frente de casa — diz Cavion, autor de trabalhos em colagem, nanquim e tinta.

Mesmo trabalhando de dia, e algumas vezes com autorização dos proprietários, os garotos contam que são constantemente xingados pelas pessoas que os enxergam em ação.

— É engraçado como as pessoas se apegam a um tapume, por exemplo. "Vai trabalhar" é o que o cara mais escuta —revela Marcon, que dedica-se ao estilo de grafite denominado bomb (letras com formas gordas feitas com mais de uma cor e que, geralmente, identificam uma tag, apelido do grafiteiro; ou crew, grupo de grafiteiros).

— Queremos abordar isso no debate, porque a gente é tachado de marginal, mas estamos ali pintando e não com arma na mão. Só queremos pintar — acrescenta Stang.

Para mudar essa cultura, eles defendem a arte de rua como conteúdo a ser abordado nas escolas. 

— Meu intuito é banalizar o grafite, que a pessoa veja o cara pintando e só passe (sem parar para xingar), que seja normal. Um dia vai acontecer — sonha Marcon.

Além da rua

A tipografia do pixo de rua habitando outros ambientes é a provocação proposta pela designer brasileira Andrea Bandoni. Ela criou uma série de peças de mesa (porcelana, taças, toalhas) com bordados e decalques inspirados no pixo de São Paulo.

Como boa parte dos pichadores, ela também desenvolveu um alfabeto próprio e escolheu frases como "Revolte-se ainda hoje" e "Toda criação é antes de tudo um ato de destruição" para as inscrições em pratos, xícaras e outros.

— São uma mescla de escritos das ruas e ditos que abordam a relação conflituosa e polêmica entre as artes e o pixo, numa tentativa de contato com esta forma de expressão tão presente nas cidades brasileiras — revela a artista, no material de apresentação da série Pixo.

Em Caxias, o tatuador Don Sapo, 27, do estúdio Buena Onda Tattoo, leva a tipografia das ruas para a pele das pessoas. Claro que o caminho entre uma coisa e outra não foi curto, e permanece em construção. O profissional, que tatua somente letras, aponta que apaixonou-se pelo estilo presente no pixo e no grafite, e passou a dedicar-se ao estudo da caligrafia em seguida. Assim como a arte de rua, a tatuagem também carrega a rebeldia e o protesto em sua gênese. Hoje, ambas são mais aceitas pela sociedade. 

— Comecei pichando, no início fazia até umas assinaturas com Nugget, aquela tinta de sapato (risos), e depois fui para o grafite. A tattoo que eu faço tem a tipografia das ruas, junto com o estudo da caligrafia — explica ele, que desenvolve também tipografia para letreiros.

Entre os estilos que Sapo mais gosta de fazer está o chola, que tem muita relação com aquelas letras com pontas que podem ser vistas nos muros e, segundo o tatuador, "têm uma pegada mais gótica". A experiência com a caligrafia legou Sapo até mesmo a ministrar cursos sobre o assunto.

— A tipografia está relacionada a tudo, é uma comunicação muito forte, que gera muitas vertentes. Nas aulas que dou, os alunos costumam ser designers, tatuadores e pichadores — diz. 

Já o artista gráfico Guilherme Brandalise, 22, leva inspirações da street art para o papel na composição do zine Vomitório (criado por ele em parceria com outros amigos de Caxias que trabalham com textos, desenhos e colagens). A programação do Diálogos pixoartegrafite vai contar com a exposição Estranhas Entranhas: as zines Vomitório, mostrando as 11 edições da revista lançadas desde o fim de 2013. 

— Acho que o zine e a arte de rua têm em comum o fato de não serem mercadoria, são como uma contra-mercadoria, são oferecidas às pessoas sem cobrar. Nossa ideia é criar arte com o que muitos consideram sujeira —explica.

Registrando o grafite

As polêmicas envolvendo grafites apagados por camadas de tinta não habitam somente São Paulo.

O assunto também esteve no centro das rodas de discussões caxienses em 2013, quando um casarão localizado na esquina das ruas Feijó Junior com a Julio de Castilhos, foi totalmente pintado, cobrindo um grafite do artista Fábio Panone Lopes (que hoje ilustra as colunas de Tríssia Ordovás Sartori, na contracapa do Almanaque). Depois do muro pintado, alguém pichou a inscrição "arte para que(m)?" ali.

Hoje, o prédio exibe uma nova arte em grafite, mas aquele primeiro trabalho apagado foi o primeiro a chamar atenção do fotógrafo Daniel Bueno.


— Eu fotografei lá antes de ser apagado, daí surgiu a vontade de retratar também outros grafites pelas ruas da cidade. Lembro que, na época, o grafiteiro disse que sabia que o grafite era uma arte efêmera, achei então que era importante o registro — comenta ele.

Bueno abre, nesta segunda-feira (dia do grafite), a exposição Grafite Arte de Rua no Sesc Caxias. Ao todo, o acervo dele tem mais de 100 fotografias, mas a mostra exibe 20 registros do trabalho de grafiteiros na cidade. Apaixonado pelas cores que o grafite proporciona à estética urbana, Bueno fica feliz em levar o grafite para uma galeria de arte, ambiente no qual esse tipo de arte não costuma habitar.

— Meu interesse é colocar o grafite no status que acho que ele merece.

"Grafite não é obra permanente"

Grafite e pichação estão em lados opostos para o doutor em História da Arte José Francisco Alves, professor de escultura do Atelier Livre de Porto Alegre. Grafite é uma expressão artística reconhecida e bem estabelecida mundialmente. Pichação é um problema sério, que afeta inclusive o grafite.

— Ela denigre o trabalho e o conjunto de outras obras, inclusive o patrimônio arquitetônico de uma cidade — afirma.

Para ele, é até compreensível que pichadores queiram demarcar território e tenham um quê de contestação, mas deveriam limitar-se a lugares abandonados, sem causar prejuízo à população _ como a necessidade de limpar monumentos ou repintar fachadas de prédios.

Alves lembra que o grafite chegou com força ao mercado nos anos 1980, com o nova-iorquino Jean-Michel Basquiat.

— Era pichador e grafiteiro e foi introduzido ao sistema mercadológico, do museu e da arte. Ele é o caso mais emblemático — analisa.

Atualmente, Banksy é o principal expoente, com obras vendidas por milhões de dólares em leilões — inclusive com a retirada física de muros e paredes onde estão pintadas. Curador da exposição A Fonte de Duchamp: 100 Anos da Arte Contemporânea, em exibição no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), Alves diz que o mercado para o grafite ainda é pequeno no Estado, assim como o de artistas vivos.

— Uma cidade tomada pelo grafite também ajuda a banalizar (essa expressão artística ) — diz. — O grafite não é obra permanente, também precisa se renovar — completa.

Profissão: grafiteiro

Além do apoio dos pais para profissionalizar-se como grafiteiro, o caxiense Henrique Padilha, mais conhecido como Agape, 26 , também contou com o incentivo do mentor Fábio Panone Lopes, de quem era fã.

— Eu sempre fica olhando aquele grafite dos Smurfs, ali perto da escola Santa Catarina. Um dia, o Panone (que fez parte da crew Smurfs, responsável pelo trabalho) chegou e sugeriu que eu comprasse umas revistas de grafite se quisesse aprender mais. Ele que me incentivou a começar a pintar, eu era um moleque. Agora, trabalho com ele num ateliê já há seis anos — relata.

Além de levar o grafite como um ganha-pão (um dos principais mercados é a decoração de casas e empresas), Agape também comemora conquistas como o convite para participar do Festival Connection, que celebra a cultura hip hop em Caxias neste domingo, na Rua Plácido de Castro. Ele estará por lá fazendo uma live painting (veja programação ao lado). 

O grafite está entre os quatro elementos básicos da cultura hip hop (que também integra o mc, o bboy e o DJ), mas para o rapper JL, organizador do festival deste domingo, cada um acabou andando com as próprias pernas ao longo do tempo.  

— Esse evento é para envolver o público numa valorização artística ao universo do hip hop. Queremos unir todos os elementos e lembrar que eles começaram juntos. A música acabou se destacando mais, hoje o hip hop é o estilo mais ouvido no mundo, mas queremos que se unam novamente, valorizando a essência — defende JL.  

União também é palavra que tem movido o grafiteiro Gustavo Gomes. A trajetória dele com os sprays começou em 2003 e, de lá para cá, conquistou reconhecimento como artista, fez exposições, criou ateliê, viajou, transformou-se em educador social (ensinando grafite) e agora planeja o lançamento de um coletivo dedicado aos artistas de rua. Trata-se do Casagrafia, que vai abrir as portas oficialmente no dia 20 de abril, na Sinimbu, e também funcionará como galeria de arte.

A ideia é valorizar a arte de rua levando-a para uma galeria com a mesma essência que ela tem nos muros:

— Me tornei referência em ambientações internas, entrei muito no campo comercial, mas entendi que quero vender o que acredito, o que me divirto fazendo. Quero aculturar a cidade para que o grafiteiro possa fazer aquilo que ele curte fazer — aponta Gomes, também aluno de um curso de curadoria.

Para isso, a Casagrafia terá anatomia um pouco diferente de uma galeria de arte tradicional:

_ Será uma galeria de aplicações, não de quadros. Não é mais grafite quando está numa galeria, mas estamos valorizando a técnica de quem pinta na rua, portanto, valorizando esses artistas também.


Além da preocupação social que o move trabalhar com crianças do bairro Cânyon, por exemplo, Gomes quer poder apoiar outros artistas de rua que, ao contrário dele, ainda não conquistaram reconhecimento.

— Por que não proporcionar aos outros? É o meu mercado crescendo também...

A voz do muro

A reportagem encontrou muita dificuldade em conseguir falar com alguém que se assumisse como pichador. A maioria fugiu do contato, mesmo com a possibilidade de não ser identificado na matéria. Um morador de Caxias de 17 anos, no entanto, atendeu ao chamado. Ele picha há cerca de um ano e já conseguiu deixar sua marca — assina "cost" — em muitos espaços da cidade.

— Pichação é tipo um vício, quanto mais tu faz, mais tu quer fazer, quer subir mais alto. O medo de cair te faz querer repetir — diz ele, que já chegou a subir quatro andares para escrever o nome em prédios.

Ele explica que o pixo que realiza não tem exatamente uma explicação ou por que.

— O importante é fazer o nome. Quanto mais fizer, mais ganha respeito no meio dos pichadores. Na sociedade não.

Ele conta que costuma pichar à noite e gosta de usar prédios e caixas d'água como "tela" — não gosta de pichar residências. Apesar da animação ao falar do assunto, o adolescente é taxativo em dizer que não considera o que faz um tipo de arte:

— A pichação é feita para não agradar, a gente é odiado. Não acho que seja arte, é para estragar mesmo.

Uma das origens do pixo e da arte de rua é o protesto (lembra daquela foto clássica do pichador escrevendo Abaixo a ditadura, em 1968?). Claro que hoje o discurso se polarizou e não há nenhuma regra para os recados que estampam muros. Mas a revolta sempre persistirá se depender de grafiteiros como "Peso". Ele prefere não se identificar, mas tem 33 anos e criou junto com outros amigos a crew que leva esse nome, em Caxias: 

— O nome Peso é baseado numa reflexão, seria o peso da sociedade, uns com muito, outros com tão pouco. Acho que quem escreve no muro, é sempre contra alguma coisa — diz.

PROGRAME-SE

Neste sábado
Centro de Cultura Orodvás promove o encontro Diálogos sobre pixoartegrafite, das 13h30min às 22h, com entrada franca. 

13h30min: live painting com Vinicius Marcon, Guilherme Cavion, Vito Hugo Dell Osbel + Batalha da Estação

15h: exibição do documentário Pixo (2009), seguido de papo com Vinicius Marcon, Guilherme Cavion, Vito Hugo Dell Osbel, Gustavo Gomes e Thiago Quadros com mediação de Rafael Dambros.

17h: oficina de lambe lambe mediada pela Ana Bulhufas e oficina de zine com Lúcio (Vomitório)

18h30min: abertura da exposição Estranhas Entranhas: as zines Vomitório

21h: Nosso Nomes com Poetas Divilas

Neste domingo
Rua Plácido de Castro (em frente à Praça da Maesa) recebe Festival Connection, das 13h às 18h, com entrada franca. No palco, shows com Nitro Di(RS), e Ericon (SP).

Nos espaços de convivência, food trucks, bazar e grafite ao vivo com Agape.

Em caso de chuva, a programação será transferida para a sala de teatro Valentim Lazarotto, no Centro de Cultura Ordovás.

Na segunda-feira

Sesc Caxias abre a exposição Grafite Arte de Rua, do fotógrafo Daniel Bueno, às 20h.

A visitação pode ser feita até o dia 23 de abril, de segunda a sexta, das 8h às 20h, e sábado, das 9h às 14h. Entrada é franca


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