A ansiedade da era digital chegou aos relacionamentos. Para quem faz do caos cotidiano uma arte, as relações são um prato cada vez mais cheio
PUBLICADO EM 08 e 09 DE ABRIL DE 2017
TEXTO
Andrei Andrade
andrei.andrade@pioneiro.com
IMAGENS
Felipe Nyland
felipe.nyland@pioneiro.com
Roni Rigon
roni.rigon@pioneiro.com
Willian Abreu, divulgação
INFOGRAFIA
Guilherme Ferrari
Amar nunca foi tão complicado. Para a geração que habita virtualmente as redes sociais, relacionar-se significa ter de conviver com perfis no Facebook, Instagram ou Twitter da pessoa amada. Os encontros com os amigos não se restringem mais ao bar, eles agora dividem a cama quando o parceiro está conectado no WhatsApp. Graças à gramática digital, o mesmo coração que serve para ilustrar o amor mais íntimo, serve também para elogiar a próxima selfie que surgir na linha do tempo, pertença a quem pertencer.
A intrusão das ferramentas digitais nas relações são um prato cheio para quem se alimenta do caos cotidiano para se comunicar e fazer arte.
Da mesma forma, atrai plateias que pagam para rir de suas próprias desventuras contadas
por um ator, humorista ou especialista.
O poeta, escritor e artista
multimídia Fabrício Carpinejar, que neste fim de semana apresentará em Caxias do Sul o
stand-up O Amor Não é Para os Fracos,
considera que a internet confundiu os códigos
de fidelidade e lealdade do casal,
além de supervalorizar o lado
fotogênico da relação.
Propõe que as pessoas deveriam
aderir às selfies das palavras,
como forma de assumir suas próprias
ciladas e emboscadas, voltando a
se tornar interessantes por
suas imperfeições verdadeiras.
— O amor se tornou mais complexo. Não basta mais ser fiel na vida real, tem que ser fiel na rede social. A vida virtual não atinge a fidelidade diretamente, mas atinge pela via da deslealdade. Tu podes estar ao lado da tua mulher ou do teu marido e flertando com outro pelo celular. Depois virá como papo de que não traiu porque não foi até as últimas consequências, só que flertar já é assumir as consequências! É preciso cuidar para quem tu mandas um rostinho com coraçõezinhos nos olhos, porque figura também é linguagem. A gente trata o emoji como decoração da fala, mas ele é a própria fala! O manual de etiqueta do amor virtual ainda não foi feito. E estamos aí para fazer no palco — explica.
Autor de mais de 40 livros de crônicas e poesias em que o amor e as relações surgem como temas capitais, produção que o alçou a comentarista onipresente dos afetos nos espaços mais nobres do rádio e da televisão, o Carpinejar teatral interpreta seus próprios textos num formato de contação de histórias. É diferente do que fez por alguns anos no consagrado Consultório Sentimental, em que instigava a plateia a participar do show numa espécie de divã coletivo. Em uma conversa por telefone logo cedo de uma manhã dessa semana, Carpinejar explicou bem a seu modo, encadeando ideias num fluxo que dá uma amostra de como a coisa se dá no espetáculo.
— É o stand-up sentimental. Uma contação de histórias sobre relacionamentos, separação, união... O quanto tu sofres para entender que a imperfeição emociona, porque te tornas muito mais disponível e humilde. Na dor nós somos humildes de uma forma que não somos na alegria. A gente sempre conta as tragédias da nossa vida, mas nunca as nossas alegrias. A gente tem uma grande incompetência em elogiar a relação para a família, porque falar bem é ficar refém. O amor cria uma defesa para se proteger do próprio amor, como se fosse perigoso. Passamos todo o relacionamento nos protegendo para não nos entregarmos inteiramente. E com isso perdemos o melhor do relacionamento, que é essa fragilidade. Na medida que tu te proteges do amor tu mentes, tu omites, tu exageras. Tu viras um inimigo íntimo de quem tu amas. Hoje em dia, as pessoas não falam para a parte interessada. Elas criam uma constelação de indiretas no Facebook. Ou marcando o outro numa postagem ambígua, postando uma frase... E isso cria uma paranoia extremamente prejudicial. Porque a sensação é que as outras pessoas sabem mais do teu relacionamento do que tu mesmo. Acaba sendo um portal de lamúrias, em que a confiança cai por terra — discorre.
Consumido nas mais diversas plataformas, Carpinejar parece ter gostado de descobrir que quem se interessa e paga por seus textos também irá ao seu encontro físico, no teatro. Diz achar bonito o encontro de sua solidão no palco com a solidão de cada pessoa na plateia no escuro do teatro. O formato stand-up, diz, deixa as pessoas mais à vontades, sem o receio de sofrerem uma de suas "interpelações frenéticas" que encabulá-las. Sobre a razão das pessoas pagarem para ouvi-lo falar de amor, teoriza que a identificação pelo riso coletivo conforta:
— O riso é transformador. Uma pessoa dolorida, séria, vai escutar apenas a sua própria angústia. Rindo, tu te abres. E com o riso ocorre uma conscientização de que os outros passam por situações parecidas. E isso faz com que tu não te sintas um exemplar da esquisitice. É bem importante isso, pois torna todas as questões mais fáceis de se resolver. Assim como também mostrar que o amor não é para os fracos. Quem nunca sofreu por amor sofre da pior doença, que é a indiferença.
Editor atento às necessidades e oportunidades do universo pop, Gustavo Guertler, da Belas Letras, compara o texto emotivo de Carpinejar a outro
autor da casa, Marcos Piangers, célebre pelo
best seller Papai é Pop.
Enquanto um escreve sobre relações afetivas, outro explora a relação pai e filho.
Mas ambos produzem
textos certeiros sobre o bom e velho amor.
— Vários escritores defendem que só existem dois temas: amor e morte. Tudo o que se inventa orbita em torno destes que são os dois assuntos realmente relevantes em nossas vidas. Quando alguém paga para ler um livro ou assistir a uma peça, não compra um bem material. Paga pela expectativa das sensações que quer viver, muitas vezes de forma impulsiva como são essas próprias emoções. E o amor é o sentimento que mais instiga, porque permite uma expansão de pontos de vista ilimitada. Nenhum texto sobre o amor é igual ao outro — pontua.
— Um evento como o do Carpinejar oferece a possibilidade de uma experiência orgânica. O ambiente digital ainda não reproduz emoções. Nele se discute muito e se vive pouco. Cria uma ansiedade por viver mais fora daquilo. Não é curioso? O Carpinejar está fazendo um stand-up para falar do amor na era digital, mas ele não está fazendo um live no Facebook. Porque talvez pra esse assunto não funcione. Tem que ter a presença. Se ele fosse dar um curso sobre como escrever bem nas redes sociais, provavelmente seria um curso online. Mas se ele vai falar sobre o amor, o público quer ver a pessoa de verdade. Pelo menos por enquanto — acredita.
Durante pouco mais de seis meses em 1949, leitores e principalmente as leitoras do jornal carioca Diário da Noite tiveram nas palavras de uma tal colunista Myrna espirituosos conselhos amorosos, muitos deles legados para a posteridade. "Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo", advertia. O público não sabia que Myrna, na verdade, era um alterego que o dramaturgo Nelson Rodrigues criou para responder a cartas que apaixonados e apaixonadas à deriva no mar dos sentimentos enviavam ao periódico, em busca do socorro pela palavra.
Transportada para os tempos atuais, a Myrna que o ator caxiense Everton Pradella estreia no palco neste fim de semana, com o espetáculo A Myrna Como Ela É, oferece à plateia uma visão de mundo ácida, e por vezes revoltada com o que considera a "virose" dos relacionamentos na era digital. Convidado pelo diretor Bob Bahlis, durante três anos Pradella mergulhou na personagem a ponto de escrever um diário de Myrna, de onde saiu parte dos textos que estão no roteiro. O resultado trouxe à luz uma personagem disposta a curar as pessoas das conexões rasas que substituíram a profundidade do olhar.
— A internet nos conecta ao mundo, mas derruba a conexão do olhar. É a era dos autistas. Cada um encerrado no seu Ipad ou Iphone, sem olhar para o outro. Quero que as pessoas parem e pensem: para onde estamos indo? A minha Myrna quer curar as pessoas desse vírus do "Fakebook". Até que ponto essa conexão realmente é verdadeira e aproxima as pessoas? Pra mim, como dramaturgo e ser humano, afasta e provoca solidão. O que é pior? Solidão ou câncer? A Myrna considera a solidão. Porque o câncer te mata, enquanto a solidão tu carrega a vida inteira e ela te consome aos poucos — diz Everton (ou Myrna).
Afeita ao trocadilho como recurso para destilar ironia e sarcasmo, a personagem de Pradella questiona: por que os psiquiatras receitam estabilizadores de humor, e não de amor? Diante da plateia, Myrna não apresenta um talk show convencional, mas sim um TOC Show, como se o amor fosse um transtorno obsessivo compulsivo. Além de responder a perguntas sobre relacionamentos feitas por atrizes que aparecem projetadas em uma tela, o espetáculo também tem interações com a plateia, convidada a mirar a protagonista nos olhos, como que para resgatar a verdadeira ligação entre humanos.
Despido de Myrna para responder o que atrai a plateia para um show sobre os desvarios do amor, o dramaturgo Pradella crê que as pessoas não querem apenas rir, mas também levar socos no estômago na forma de verdades que a vida real deixou de dizer.
— É tão clichê falar de amor. Mas qual o problema? Nós somos todos clichês, sem exceção. Sempre vai se falar de amor, não importa se no século 17 ou no 23, porque é algo que todo mundo sente. Quem não sente isso, seja por uma planta ou por um gato? O amor é a dor que aproxima as pessoas. Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo! Porque são sentimentos intensos demais — finaliza.
A psicóloga e sexóloga caxiense Paula Bisol revela que as redes sociais estão presentes nos relatos de 80% dos casais que procuram seu consultório para terapia. Além de ser a primeira porta para a traição, que pode ou não ser consumada fisicamente, as ferramentas digitais provocam uma série de insatisfações quanto ao comportamento do outro, desde a vigilância excessiva até a desatenção com a própria relação, que se afunda na falta de assunto enquanto os olhos fixam cada vez mais a tela do celular.
— As redes sociais contribuem muito para a falta de comunicação que afasta os casais. Quantas vezes a gente vê no shopping um casal imerso em seus celulares, sem conversar um com o outro. No consultório, eles respondem que não há mais o que conversar. Acabou o assunto e agora estão vivendo como amigos, apenas se suportando. Um casal que não troca mais afetos tem diante de si uma imensa porta aberta para uma terceira pessoa, e a internet oferece essa possibilidade de forma muito cômoda. Não precisa sequer sair de casa para recorrer ao sexo virtual ou ao flerte — explica Paula.
Paula chama a atenção no interesse que os casais demonstram em resgatar o relacionamento ao perceberem que as ferramentas digitais não preenchem o vazio do dia a dia e da rotina. Não oferecem nada além do que alívio rápido e passageiro. Para a terapeuta, o sucesso na retomada do casal deve muito à abordagem assertiva do problema. Nisso, ela elogia a forma descontraída e atraente como Fabrício Carpinejar trata das frustrações amorosas para o seu público:
— A gente tem que ser suave, para mostrar que aquele casal não é o único a ter aquele problema. Da forma como o Fabrício aborda em seus livros ou shows, fica menos pesado. A abordagem precisa ser assertiva. Assim se ouve melhor e se internaliza. Se eu for muito crítica, não vai dar resultado. Se o casal for a uma palestra muito didática, muito séria, fica mais difícil. Essa forma mais descontraída ajuda as pessoas a enxergar melhor e se abrir mais. Também ameniza a culpa, que é um sentimento muito forte, aliado à frustração de não está conseguindo manter uma relação.
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