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Estreia do longa “O Filme da Minha Vida” evidencia participação da Serra por meio dos cenários e dos figurantes

PUBLICADO EM 5 e 6 DE AGOSTO DE 2017

TEXTO

Siliane Vieira

siliane.vieira@pioneiro.com


IMAGENS

Diogo Sallaberry

diogo.sallaberry@pioneiro.com

Felipe Nyland

felipe.nyland@pioneiro.com

Bananeira Filmes, divulgação


INFOGRAFIA

Guilherme Ferrari

Tu vai ver que tem bastante mato, pode entrar que é ali mesmo, no meio do mato – sentencia Diva De Bona Peroni, 55 anos, ao explicar o endereço da Casa De Bona para a reportagem. De fato, a propriedade, que fica na localidade de Vila Jansen, interior de Farroupilha, é envolta por muita vegetação. Mas poucos metros depois da entrada principal, a humilde definição dada pela proprietária logo cai por terra. Numa clareira em meio à natureza, surge uma imponente casa com porão de pedra e dois andares de madeira, levantados em 1888. É como se tivéssemos encontrado um cenário de filme de época ali no “meio do mato”. E essa não é só uma figura de linguagem.

A mesma Casa De Bona que fica ao acesso dos caxienses, distante cerca de 40 minutos de carro, também vai rodar o mundo nas telas de cinema, pois foi locação para O Filme da Minha Vida, estreia desta semana. A obra, dirigida por Selton Mello, foi gravada inteiramente na Serra, exaltando o potencial estético das nossas colônias. Além de Farroupilha, o filme usou cenários de Monte Belo do Sul, Garibaldi, Cotiporã, Santa Tereza, Bento Gonçalves e Veranópolis. 

No longa, a Casa De Bona se transformou na residência da família de Paco, personagem vivido por Selton. A indicação foi do porto-alegrense Glauco Urbim, que já trabalhou em diversas produções com locações na Serra. Foi também por intermédio dele que a edificação apareceu na série televisiva Decamerão, que foi ao ar em 2009.

– Foi aqui dessa janela que a Deborah Secco se jogou – conta Diva, entrando no mesmo quarto que uma vez foi de seus pais e onde ela mesma nasceu.

Se há oito anos a casa foi “frequentada” por Deborah, Lázaro Ramos, Drica Moraes e Tonico Pereira, desta vez foram Selton Mello e Johnny Massaro os principais astros a desfilar por lá. As gravações de O Filme da Minha Vida foram realizadas em 2015, mas o diretor já tinha visitado a localidade cerca de seis meses antes.

– Ele veio aqui e pediu para que a gente não roçasse mais o mato, ele queria assim, tipo abandonado – conta o marido de Diva, Claudio José Peroni, 60. 

É que, no filme, o universo do personagem Paco tem uma cara simples, tosca. O interior da casa ganhou muitas ferramentas penduradas e as paredes foram pintadas de um tom mais escuro, para dar impressão de sujeira. Mas nem assim a beleza da Casa De Bona passa despercebida aos olhos do espectador. Uma das cenas mais emblemáticas do filme é quando Tony (Johnny Massaro) vai procurar Paco numa noite de forte chuva. Apesar da tensão que envolve o momento da história, é impossível não reparar na bela fachada da moradia à luz noturna.

– Aquela água toda da chuva era de um caminhão do Samae, de Caxias, as filmagens foram até umas 4h30min da madrugada – conta Claudio.

Foram três dias de gravações por lá, usando muitos ângulos da propriedade, do interior da casa ao pátio (onde foi acrescentada a “carcaça” de um carro antigo e alguns entulhos). 

– Eles filmaram até lá no potreiro, com bosta de vaca e tudo – lembra Claudio, animado.

Até o velho rádio do pai de Diva foi usado em cena. O aparelho não funciona há anos, mas, na telona, é por meio dele que a família de Paco se diverte.

– Só colocaram uma luzinha dentro e parecia que estava funcionando, mas na verdade o som vinha de outro lugar – entrega Diva.

Os donos da casa não apareceram em cena, mas outro casal de moradores ficará imortalizado na telona. Desde a primeira vez que visitou a propriedade, Selton comentou que iria usar os dois porcos que a família tinha. Eles fazem parte de uma cena bem emblemática, contracenando com o próprio Paco. Seu Claudio e sua experiência na lida tiveram papel fundamental para fazer com que os animais ficassem de frente para a câmera, como o diretor queria. Hoje, no entanto, as estrelas de cinema suínas não estão mais lá.

– Eles estavam velhos – introduz Diva.
– Viraram salame e morcilha – denuncia Claudio, aos risos.

Admiração e orgulho

Enquanto o simpático casal de agricultores Diva De Bona Peroni e Claudio José Peroni fala sobre as filmagens de O Filme da Minha Vida, a certeza mais evidente é que eles curtiram muito a experiência. Especialmente, porque se sentiram bem tratados. Seu Claudio elogia a limpeza e a organização do grupo. A mulher vai além:

– Tiveram muito respeito com a gente, não faziam nada sem pedir.

A simplicidade de pessoas que eles só conheciam pela tevê também impressionou. Algo que a família já tinha vivenciado com a presença do elenco de Decamerão se repetiu nas gravações do filme.

– Você não imagina como eles são legais, o Selton Mello é (se interrompe)... Meu Deus do Céu... Ele tava aqui, tirava fotos com todo mundo. São gente simples que tu nem imagina – enaltece Claudio. 

Além da antiga casa que a família mantém intacta ao tempo, a propriedade conta com outra residência, bem mais nova, na qual Claudio e Diva moram com os filhos Daniel Henrique Peroni, 30, e Carla Antônia Peroni, 19. Até mesmo esse espaço virou QG para o pessoal do filme trocar de roupa, retocar a maquiagem, etc. 

– Juntamos nossas coisas num quartinho e liberamos o resto para eles – conta Diva.

Numa breve conversa, fica nítido o empenho de toda a família em contribuir para que tudo corresse como o esperado pela equipe do longa. Como retorno, além de muitas memórias e histórias para contar, eles ganharam um presente ainda maior. A casa que o avô de Diva, o italiano Giovani De Bona, comprou no início do século passado, agora está imortalizada dentro de uma obra de arte, que a família, aliás, ainda não conseguiu assistir. 

– A gente conhece essa casa pelas histórias que a mãe nos conta, quando virmos no filme, estará em outra história, vai parecer até outro lugar – sugere Carla. 
– Independentemente de estar em muitas cenas ou em uma só, já me sinto com orgulho – aponta Daniel.

Nos trilhos do turismo

Depois de uma maratona intensa de gravações na Serra – foram quase dois meses por aqui, em abril e maio de 2015 –, numa logística que envolveu locações em sete cidades e participação de mais de 500 figurantes locais, o diretor e ator Selton Mello voltou ao interior gaúcho trazendo um novo olhar sobre a região. O Filme da Minha Vida estreou nos cinemas do Brasil inteiro nesta semana. 

– Nossa forma de agradecer é fazer um filme bonito. Vocês vão ficar orgulhosos de ver esta região filmada de uma forma especial. Esse filme não vai parar, ele vai para o mundo, quero que vocês saibam que este trem e todas as paisagens da Serra vão para o mundo todo – disse o diretor, na coletiva de imprensa que concedeu dentro da Maria Fumaça, no trajeto entre Carlos Barbosa e Bento. 

A Serra foi o último local a receber pré-estreia do longa, na última quarta. Selton voltou para cá emocionado, e na presença dos pais, Dalton e Selva Mello, a quem ele dedica o filme.

– Meus pais fizeram muitos sacrifícios por mim, na verdade, tudo que faço dedico aos meus pais. Agora, quis deixar cravado para a vida inteira, porque o cinema fica para sempre. 

Fica mesmo, e Selton faz questão de frisar que um dos objetivos de O Filme da Minha Vida é imortalizar a beleza dos cenários da Serra. Fato que, aliás, promete dar uma aquecida no turismo.

– A gente filma muito o Rio de Janeiro, favela, samba, sertão, mas pouquíssimo o Sul. Então estou muito feliz de poder ter o meu olhar sobre o Rio Grande do Sul, não sendo daqui, mas sendo um cara que gosta muito daqui. Passei por muitos lugares e as pessoas ficam encantadas com as locações desse filme, perguntam “que lugar é esse?”, acho que vai dar uma animada no turismo, de as pessoas quererem conhecer – prevê.

De fato, já existe um projeto de roteiro turístico guiado pelas
diversas obras audiovisuais filmadas na Serra
(Saneamento Básico e O Quatrilho, só para citar algumas).
A Maria Fumaça, certamente, vai integrar esse roteiro.
No último vagão, aliás, os bancos nos quais os
turistas viajam permanecem pintados de cor diferente,
como a equipe de O Filme da Minha Vida os deixou depois
das gravações do filme. O trem e o
maquinista (vivido pelo incrível Rolando Boldrin, foto)
têm um papel fundamental na história, misturando
a poesia visual da ferrovia com a poesia da
própria metáfora presente nos trilhos. 

– Eu sempre tive um sonho de trabalhar com Rolando Boldrin, além de ser um grande ator, cantor, compositor, ator, ele é um guardião da memória cultural brasileira, é um homem que preserva o cancioneiro popular, que preserva a riqueza do Brasil profundo. Ele é o maquinista desse trem que estamos andando e é um personagem lindo porque é mítico. É como se fosse, além do condutor do trem, o condutor do filme. Ele é o homem que tudo viu, que sabe de todos os segredos dessa trama, e ele sabe que tudo tem o tempo de acontecer. Se quiser atropelar as coisas, o trem sai dos trilhos, são palavras do personagem – resume Selton, enquanto o trem segue seu caminho.

Alma do filme

Antes de O Filme da Minha Vida tomar conta da telona do cinema Movie Arte de Bento Gonçalves, na quarta à noite, Selton Mello fez questão de identificar Gabriel Reginato em meio aos presentes. Levantou o braço do garoto e anunciou:

– Esse menino é a alma do filme. Boa sessão!

Gabriel tem 12 anos, mora em Bento e estuda na Escola Municipal Ernesto Dorneles. Há dois anos, ele resolveu fazer um teste para o filme porque “queria viver uma nova experiência”. 

– Sorte a minha – disse Selton.
– Sorte a minha – replicou Gabriel.

O garoto assistiu ao filme pela primeira vez na quarta. Na telona, ele vive a fase criança do protagonista Tony Terranova (Johnny Massaro). Depois da sessão, a mãe do guri, Adriana Reginato, entendeu por que o filho foi anunciado como a alma do longa:

– É que ele representa a memória do menino que cresceu.

De fato, Gabriel é a personificação – em flashbacks – do amor compartilhado entre Tony e o pai, Nicolas. Assim, Gabriel foi um dos que mais contracenou com o francês Vincent Cassel, que vive o pai desaparecido do protagonista.

– Ele foi bem legal, era divertido, ficava fazendo brincadeiras toda hora – contou o tímido garoto.

Enquanto Gabriel não decide se vai querer seguir a carreira de ator, pode curtir o momento de estrela. Nos próximos dias, a escola em que estuda deve organizar um passeio ao cinema para ver o aluno ilustre brilhar na telona.

A glória dos figurantes

Assim que chegou ao Movie Arte de Bento para a pré-estreia de O Filme da Minha Vida, na noite da última quarta, Selton Mello logo avistou os garotos Luan Leal, 14 anos, Breno Panazzol dos Santos, 14, e Pedro Gasparatto, 17. Ele celebrou o encontro do trio que, junto com o ator revelação João Pedro Prates (porto-alegrense que rouba a cena na pele de Augusto Madeira), forma o núcleo escolar do longa. 

– Teria de fazer um filme extra só com vocês – disse o diretor, animado com o reencontro.

Luan é de Bento, Breno é de Garibaldi e Pedro, de Lajeado. Nenhum deles tinha feito um filme antes.

– Foi muuuito legal – disse Luan, repetindo propositalmente sua única fala como ator de O Filme da Minha Vida.

Para Breno, a experiência foi ainda mais bacana porque as gravações ocorreram na escola na qual ele estuda em Garibaldi, a Santo Antônio.

– Acho que chamou atenção essa carinha vermelha dele – disse a mãe do estreante ator, Claudete Zimermann, cheia de expectativa antes de entrar na sessão.

Outros que viveram um momento especial na quarta foram Jéssica Fillipi Chiella e Marivan Bassani, pais dos gêmeos Miguel e Arthur. Os meninos de Bento se revezam no papel de um bebê bem importante na trama. Agora com três anos e quatro meses, eles não conseguiram dar uma opinião sobre o longa, claro. Já os pais...

– Nossa, foi emocionante – resumiu Marivan, com os olhos brilhando.

"Um jovem adulto à margem da própria história, envolto por um cenário que representa muito bem essa sensação de estar sempre sonhando acordado."

“Eu amei as paisagens”

O escritor chileno Antonio Skármeta é o autor do livro Um Pai de Cinema, que inspirou a história de O Filme da Minha Vida.

– Costumo dizer que, mais do que uma adaptação, o filme é uma resposta emocional ao livro. O livro me causou um grande encantamento e me emocionou, esse sentimento eu pus no roteiro e na filmagem – comentou Selton Mello, na coletiva que precedeu a pré-estreia do filme em Bento, na última quarta. 

Ver as histórias de seus livros adaptadas para o cinema já não é uma novidade para o escritor. Isso já aconteceu nos longas O Carteiro e o Poeta, No e A Dançarina e o Ladrão. Em O Filme da Minha Vida, porém, o escritor faz uma ponta como ator. Ele vive um dono de bordel que trava um diálogo cheio de significados (sobre imortalidade) com o personagem Paco.
A seguir, a entrevista que o escritor concedeu ao Almanaque sobre o filme:

Almanaque: Na edição brasileira mais recente do livro “Um Pai de Cinema”, Selton Mello escreveu no prefácio sobre o convite, vindo do senhor, para filmar a história. Ele disse que “Os sonhadores se reconhecem de longe”. Como o senhor percebeu que ele seria o diretor certo para levar essa história para o cinema?

Skármeta: Quando eu vi O Palhaço, avistei no Selton um talento especial para fazer filmes com sensibilidade artística e ao mesmo tempo muito comunicativos. Eu acho que o fato dele também ser um grande ator influencia muito em seu estilo de dirigir. Isso faz a história fluir naturalmente a partir dos personagens, e em Um Pai de Cinema o sentimento da criança que perde seu pai determina toda a atmosfera do romance.



O que achou da escolha das locações no interior gaúcho? Era o que estava no seu imaginário enquanto autor?

Eu amei as paisagens do sul do Brasil e fiquei satisfeito ao encontrar aldeias, estações ferroviárias, praças que são tão puras, como paradas no tempo. Preciso acrescentar que o vinho local é bom, e isso é um elogio considerável vindo de um chileno.


O senhor tem vários trabalhos adaptados para o cinema. Por que sua literatura se aproxima tanto da narrativa audiovisual? 

Porque na minha literatura há muitas imagens capazes de expressar emoções. Como romancista, eu tento construir minhas ficções com os critérios de um dramaturgo. O romance vai aonde os personagens o levam. Sim, é isso, sou um autor de personagens.


Como o senhor definiria o personagem Jacques (que, no filme, se transformou em Tony)? 

O jovem professor Jacques é um homem muito sensível, apenas maior do que os alunos a quem ensina, um sonhador que aprendeu muito com seu pai, a quem ama intensamente. Por isso, gosta tanto do poema francês citado uma vez: “Ah, pai meu, você se deu conta do quanto eu te amei e de como, através de você, aprendi a amar todas as coisas deste mundo?”.



Quais foram suas principais inspirações para escrever “Um Pai de Cinema”? 

Minha escrita move-se com espanto à existência, pela valorização da cultura universal que herdamos, pela relação entre a arte e as pessoas e pela felicidade de inventar situações e personagens que, mesmo sendo tão latino-americanos, têm encontrado leitores em outras línguas e outras culturas. Eu acho que minha inspiração é dupla. Por um lado, eu sou sempre muito interessado na relação entre tradição e inovação, como entre o grande poeta e o carteiro humilde. Em segundo lugar, senti um grande carinho por meu pai, que me apoiou muito quando decidi ser um escritor.

Qual é a sensação de ver uma obra de sua autoria se transformar em uma nova obra pelo olhar de um outro artista? 

Eu tenho muita sorte com os cineastas que adaptaram meus trabalhos ao cinema e sou grato a todos. Se gosto de um diretor e eu o respeito e admiro, quase sempre aceito a sua visão do meu trabalho. Esse também foi o caso com Selton Mello em O Filme da Minha Vida. Assistir a um filme recriando meu trabalho me dá grandes alegria. É um belo sentimento para um criador, saber que outro criador se sente estimulado por sua obra.


O Filme da Minha Vida (Trailer oficial)

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