A jornada da cabeça

Novo filme do diretor e escritor Tabajara Ruas usa cenários da Serra para revisitar o mito de Gumercindo Saraiva

PUBLICADO EM 28 E 29 DE OUTUBRO OUTUBRO DE 2017

TEXTO

Siliane Vieira

siliane.vieira@pioneiro.com


IMAGENS

Diogo Sallaberry
diogo.sallaberry@pioneiro.com

 Dulce Helfer, divulgação


INFOGRAFIA

Guilherme Ferrari

No interior do Rio Grande do Sul, uma tropa de gaúchos segue caminho a cavalo, carregando num saco a cabeça de um inimigo. Enquanto isso, outro grupo está justamente em busca da cabeça perdida para devolvê-la ao morto decapitado e garantir que ele possa descansar em paz. A cena pode parecer um pouco fantástica, coisa da literatura ou de filme. De fato, é exatamente disso que se trata, mas com a peculiaridade de ser uma história baseada em fatos reais e com as paisagens da Serra de pano de fundo.

A trama é narrada pelo escritor uruguaianense Tabajara Ruas no livro A Cabeça de Gumercindo Saraiva (lançado em 1997), e agora transformada por ele em filme. As gravações estão passando pela Serra, com cenários de São Francisco de Paula, Canela e Cambará do Sul. Pesquisador e cineasta dedicado a conferir novos olhares à história do Rio Grande do Sul, Tabajara (ou só Taba, como é chamado carinhosamente pelos amigos), tem inúmeros livros dedicados à temática, e assina 12 longas como roteirista e quatro como diretor, entre eles, Os Senhores da Guerra (filme de 2016 que também teve cenas captadas na Serra) e o clássico Netto Perde Sua Alma (2001), um dos mais premiados filmes gaúchos.

Desta vez, Taba flerta com uma certa carga de mistério ao tratar da saga de dois grupos de rivais (maragatos e chimangos), interagindo com a cabeça de Gumercindo Saraiva, um prêmio oferecido ao governador Júlio de Castilhos. O filme se passa no final da Revolução Federalista, em 1893.

– Todos sabem que o Gumercindo foi decapitado e que a cabeça dele foi mandada para o governador, que se recusou de receber. Depois disso, não se sabe exatamente o que aconteceu, tem várias versões. As versões circulam por aí e virou uma lenda, um mito gaúcho. Nós aqui estamos fazendo uma nova versão do mito Gumercindo, misturando um pouco de ficção com os aspectos que foram verdadeiros e que criaram essa história, essa lenda – contou Ruas, no set montado no Camping Querência Amada, a cerca de seis quilômetros do trevo que separa a RS-110 da RS-020, em São Chico. 

O elenco do núcleo republicano (chimangos) é liderado pelo Major Ramiro (Murilo Rosa) e tem ainda o vaqueano Caçapava (Marcos Verza), o coronel Firmino (Marcos Breda) e o tenente Lobo (Pedro de Oliveira). O lado rebelde ( maragatos) é liderado por Francisco Saraiva (Leonardo Machado), ao lado dos tenentes Rosário (Marcos Pitombo) e Teófilo (Allan Souza Lima), do sargento Caminito (Sirmar Antunes) e do cabo Latorre (Rodrigo Ruas). 

Murilo classifica A Cabeça de Gumercindo Saraiva como um faroeste brasileiro, ou melhor, um faroeste gaúcho. Fã de Tabajara Ruas desde que o conheceu no set do sucesso televisivo A Casa das Sete Mulheres (série que foi ao ar pela TV Globo em 2003), o ator comemora o fato de poder novamente contribuir para a rica narrativa histórica do Estado.

– É um personagem muito interessante. O filme se passa através do olhar do Ramiro. Aos poucos, ele vai descobrindo que não é nem de um lado, nem de outro. Ele é ele mesmo no meio dessa loucura, no meio dessa guerra, e tem uma missão muito difícil, que é levar a cabeça. É o tipo de filme que a gente não está acostumado a ver nos cinemas aqui no Brasil – disse o intérprete do protagonista. 

Na época da série global, o ator ficou mais de um mês rodando pelo Rio Grande Sul e confessa que se tornou um apaixonado pelo Estado. Quase 15 anos depois, ele volta a se impressionar positivamente com o Estado:   

– Gosto principalmente da educação do pessoal do Sul. São pessoas muito receptivas. É um povo que recebe a gente com muito carinho, muito calor, e isso é muito legal. Tudo bem, o país está em crise, está tudo difícil e complicado, mas acho que o Sul ainda é um exemplo de várias coisas que o Brasil deveria ser. O interior do Rio Grande do Sul é um exemplo de como deve ser uma cidade, como as pessoas se comportam. Eu falava isso na época de Casa das Sete Mulheres: o Sul é que o Brasil que deveria ter sido.

As paisagens são outra característica importante do Rio Grande, e a Serra é privilegiada nesse aspecto. Seja nas paisagens bucólicas da colônia ou nos cenários épicos dos Campos de Cima da Serra, o Estado é constantemente procurado por produções audiovisuais. No caso do novo filme de Tabajara Ruas, São Chico, Canela e Cambará do Sul serão praticamente personagens desfilando em cena.

– Os Campos de Cima da Serra são uma paisagem única no planeta Terra. Isso só existe aqui pela questão da evolução, dos cataclismos que aqui aconteceram. E importante para o filme porque o cenário identifica bastante do drama que nós estamos contando, essas coisas grandiosas, esses abismos e precipícios e cascatas – justificou o diretor. 
– Sem esse visual todo aí a gente não tem esse filme. O filme é uma mistura de ficção com fatos reais, com certeza esses personagens passaram por esses lugares que a gente vai mostrar no filme – completou Murilo Rosa.

Confira os bastidores do filme e entrevistas com o elenco e diretor

A cidade se movimenta 

Elenco e equipe do filme A Cabeça de Gumercindo Saraiva ficaram cerca de duas semanas em São Francisco de Paula – foram embora na última quarta – e é claro que a cidade não ficou alheia ao fato. Murilo Rosa, por exemplo, foi uma das estrelas que criou até mesmo uma rotina de atividades por lá.

– Tô fazendo sempre um maratona: saio da gravação, dou uma malhadinha, tomo um cafezinho, depois faço uma massagem, volto para o hotel, tô criando uma rotina gostosa – disse ele à equipe do Almanaque, na última segunda-feira.

A livraria Miragem, com três andares dedicados à literatura bem no Centro de São Chico, foi um dos lugares que mais chamou a atenção do ator global. Ele chegou a postar vídeos em sua conta pessoal de Instagram exaltando o lugar.

– O Murilo esteve aqui no domingo, achou muito bonita a livraria e ficou nos perguntando sobre o prédio, há quanto tempo foi construído, essas coisas – conta Ísis Rech Rivarola, 29 anos, uma das atendentes da Miragem que atendeu o cliente famoso. Murilo, no entanto, não comprou nenhum livro, conforme ela. 

Falando sobre a receptividade do povo de São Francisco de Paula, Murilo logo cita a livraria Miragem espontaneamente:

– Aqui também tem uma livraria deliciosa, maravilhosa. Olha, parabéns para quem criou, porque realmente é deslumbrante. Se tivesse uma livraria dessa em todas as grandes cidades do país, o mundo estaria melhor – disse.

Além da livraria, do pub Taylor’s e do bistrô Capitão Chaves, outro endereço bem frequentado durante a permanência da equipe do filme em São Chico foi o Centro de Condicionamento Físico + Saúde. Por lá, os galãs Murilo Rosa, Marcos Pitombo (que esteve em novelas como Babilônia e Haja Coração) e Allan Souza Lima (que participou da novela Novo Mundo e do filme Aquarius). O trio frequentou a academia diariamente para se exercitar, dividindo o espaço e os equipamentos do espaço com os demais usuários.

– As pessoas até estranhara a simplicidade deles, chegaram aqui e foram muito educados, tratavam todos com muita atenção. Foram pessoas comuns aqui, eles estavam em casa, praticamente – comentou o instrutor Alfeu Everaldo Borges dos Santos, o Tião, 37.

Uma das alunas da academia, Ediana Lima Rodrigues, 32, deu um jeito de compartilhar um pouco mais de tempo com os astros. Ela foi uma das vencedoras de um concurso realizado pela prefeitura de São Francisco de Paula e pode acompanhar a movimentação no set de filmagens, na última segunda-feira.

– Foi uma experiência incrível, foi um dia perfeito pra ficar na memória. Tiramos muitas fotos com os atores, com o diretor, fomos muito bem recepcionadas. Estar tão próximos deles e ao mesmo tempo ver o que realmente acontece atrás das câmeras foi um incentivo muito grande – relatou. 

A visita também foi especial porque Ediana conseguiu entregar ao ator Marcos Pitombo uma carta de Alysson Pereira de Melo, garoto de 13 anos que é muito fã do ator.

– A carta falava sobre a admiração dele, sobre o sonho em ser ator e tinha um pedido especial: ser figurante do filme (não houve tempo hábil para tal). Pitombo gravou um vídeo para ele agradecendo pelo carinho e pela carta – contou Ediana.

Tabajara Ruas (C) coordena o set em São Francisco de Paula

Murilo Rosa e Leonardo Machado: protagonistas em lados opostos

Marcos Verza interpreta Caçapava

Louco decapitador

O grupo de atores gaúchos do longa A Cabeça de Gumercindo Saraiva inclui nomes como Leonardo Machado, Marcos Breda e Sirmar Antunes. A Serra também está representada no núcleo principal com a presença de Marcos Verza, ator natural de Vacaria que já fez vários trabalhos na televisão e cinema. No filme de Tabajara Ruas, ele vive o Vaqueano Caçapava, justamente a figura responsável por decapitar Gumercindo Saraiva.

– Ele é um psicopata, louco assim de guerra, decapitador – resumiu Verza, que atualmente tem se divido entre trabalhos com narração de publicidade e com dublagem de jogos de Playstation.

O ator comenta que foi apresentado ao roteiro do filme há três anos. Tabajara Ruas havia lhe oferecido uma participação maior do que a do personagem Caçapava, mas Verza escolheu ser o decapitador. Os motivos, conforme ele, vão além do desafio artístico de interpretar um vilão frio e cruel.

– Para mim, ele representa essa política também, né, em que muita cabeça está rolando e a gente quer tirar muita cabeça do poder. É um momento que a gente também pode expressar isso, mesmo que a história seja antiga, a política é a mesma, tem sempre alguém tirando o lugar de alguém e cortando a cabeça de alguém... ou desmoralizando, porque cortar uma cabeça não significa necessariamente você só tirar a cabeça fisicamente né, é isolar um pensamento, é tirar uma ideia de alguém, então isso também pesou na escolha da personagem – refletiu.

Verza enxerga Tabajara Ruas como um cineasta/escritor politizado e valoriza o fato de, como ator, poder fazer parte de uma obra que lança um olhar criativo sobre a história:

– Acho que todo o estado se tiver relatado um pouco de sua história vai sempre trazer mais subsídio e mais plataforma para o passado, para a gente saber onde pisou.  

Estrutura

A prefeitura de São Francisco de Paula contribuiu com a produção do filme construindo uma ponte de 13 metros de comprimento onde foi filmada uma cena de confronto.

No churras e na figuração

Responsáveis pelos churrascos saboreados pela equipe do filme no set montado no Camping Querência Amada, em São Francisco de Paula, Cassiano Marques, 35, e Dionatan Reis, 27, deram um jeitinho de participar do filme ainda mais de perto. A dupla participou como figurante em cenas gravadas na semana passada. Mesmo sem falas, os dois estavam muito felizes com a nova experiência e a possibilidade de brincar de astro do cinema.

– Já avisei aos amigos que agora tem que marcar horário para falar com nós – brincou Dionatan.

Acostumados com a movimentação de gente famosa – ambos trabalham no Paradouro Rota das Barragens e já conviveram com produções como a da novela A Vida da Gente e do filme Os Senhores da Guerra –, eles experimentaram pela primeira vez a experiência de estar em frente às câmeras. Ao mesmo tempo que riam ao contar que interpretaram figurantes mudos, os dois demonstram certo orgulho ao falar das cenas em que participaram.

– Estávamos no velório do Gumercindo e aí iam arrancar o túmulo – contou Cassiano, empolgado.
– Eu fui um dos que desenterrou o Gumercindo – acrescentou Dionatan. 

Sobre o filme

A Cabeça de Gumercindo Saraiva foi o único representante da região Sul entre os 22 longas contemplados pelo edital Prodecine 01 do Fundo Setorial do AudiovisualFSA/BRDE, entre 142 propostas apresentadas. O filme conta com o patrocínio master do Banrisul.

A realização é da Walper Ruas Produções, com direção e roteiro de Tabajara Ruas

Sinopse: no final da Revolução Federalista de 1893, o capitão rebelde Francisco Saraiva e cinco cavaleiros cruzam o Rio Grande numa exasperante caçada para resgatar a cabeça de Gumercindo Saraiva, cortada pelos legalistas e enviada para o governador Júlio de Castilhos, missão confiada ao major Ramiro de Oliveira.

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