Na “terra do galeto”, opções sem carne têm aparecido com mais frequência nos cardápios
PUBLICADO EM 04 e 05 DE NOVEMBRO DE 2017
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Bruna Valtrik
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Felipe Nyland
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Eduarda Lenhardt, divulgação
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Guilherme Ferrari
Acarne sempre esteve presente na vida do caxiense. O ingrediente convive diariamente na mesa das pessoas, tanto em festividades como na rotina
Sem dividir tribos, o momento é importante para entender quais são as motivações do movimento e jogar luz às principais dúvidas daqueles que pensam em aderir a uma alimentação sem carne. No mês que comemora o Dia Internacional do Veganismo, o objetivo é esclarecer conceitos tão distantes da realidade de alguns e mostrar as opções deste tipo de alimentação em Caxias.
Segundo a nutricionista Gabriela Zago, especializada em alimentação vegana e vegetariana, o maior medo na hora de fazer a transição para esse tipo de alimentação é a suposta incapacidade de ingerir a quantidade de proteínas e nutrientes que o corpo necessita:
– As pessoas têm medo de não conseguir atingir a questão proteica, principalmente quando se tornam veganas. É natural quando a gente vira vegetariano substituir o bife pelo ovo, pelo queijo, etc. E quando viramos veganos nós ficamos perdidos.
Segundo ela, uma preocupação constante é como fazer as substituições. Em uma realidade em que muitas pessoas frequentam academia e praticam exercícios, é essencial uma alimentação rica em proteínas, que busca, principalmente, alimentos como o frango e o ovo. Nesse caso, como substituir a proteína animal no caso de um vegano?
– Eu costumo dizer para as pessoas vegetarianas que elas não devem pensar em substituir a carne somente. Não existe um alimento de origem vegetal que seja constituído basicamente por proteína, com baixo carboidrato e baixa gordura. Os alimentos de origem vegetal são muito mais completos, não existe um alimento que seja só proteína, como o caso da carne de um animal. Então temos que pensar em remodelar a alimentação de um dia todo. Introduzir os grãos, feijão, lentilha, ervilha, grão de bico, que são as principais fontes de proteína.
Motivação – Com um público aproximadamente 70% vegetariano (estrito ou não-estrito), Gabriela conta que a principal motivação em aderir a um novo tipo de alimentação é a questão ética:
– A maioria dos pacientes se sente desconfortável por consumir animais. Hoje, a maioria das pessoas tem um contato com gatos, cachorros, então fazem a conexão e se dão conta de que um porco, uma galinha ou uma vaca são iguais ao animal que elas têm em casa. Muitos pacientes também trazem questões espirituais, relacionadas à ioga, a uma vida de não-violência. Eles explicam que, para conseguir meditar e alcançar a conexão que precisa na ioga, o ideal é não consumir nada de derivados animais. A questão ambiental e de saúde é uma consequência.
Depois do vegetarianismo, um passo natural é o veganismo, conhecido também por vegetarianismo estrito, que procura um estilo de vida livre da exploração animal, não apenas na alimentação. Esse momento de transição, segundo a nutricionista, é importante e deve ser acompanhado de perto também por um profissional:
– Eu sempre peço qual a motivação do cliente. Se ele é motivado pela causa animal, eu vou tomar o cuidado de não forçar demais o consumo de outros derivados animais, por que a pessoa está tentando se desvencilhar disso. Por mais que ela faça relação só com a carne, o veganismo, por questões éticas, é uma consequência. É uma continuação do vegetarianismo, principalmente se você faz isso por questões animais e éticas. Então eu tomo o cuidado de já instruir a pessoa a conhecer outras fontes, como fazer uma panqueca sem ovo, coisas assim. Busco trazer outras possibilidades além do ovo e dos laticínios.
Suplementação – Uma das principais dúvidas em relação a uma dieta vegetariana são os nutrientes que podem ser ingeridos somente através de alimentos de origem animal. A vitamina B12, nesse sentido, é a mais comentada por médicos e críticos de uma alimentação sem carne, por não poder ser ingerida através de vegetais.
Apesar de o ser humano produzir a vitamina, produz uma quantidade inferior à que o corpo precisa absorver. Gabriela explica que, apesar de importante, essa carência não é restrita aos vegetarianos:
– A B12 é importante, mas sempre tomo cuidado de não dar tanto enfoque a isso. 50% da população apresentam deficiência ou insuficiência da B12. É uma suplementação que deveria ser feita por praticamente todas as pessoas. Quem é vegano, por não consumir as fontes animais, precisa suprir isso impreterivelmente, mas não só, os carnistas também.
Onde encontrar
A vitamina B12 pode ser encontrada em farmácias, em forma de suplemento, pela internet, ou ser manipulada. Apesar de a dose indicada ser de 2 a 3 microgramas (ug) por dia, em uma pessoa adulta, é indicado procurar uma nutricionista que possa informar a melhor quantidade para cada caso.
No último dia 18, Caxias conheceu o primeiro pub noturno vegano. O Lechuga, empreendimento encabeçado pelos sócios e irmãos Rafael e Aline Sotoriva, é uma das diferentes manifestações que o comércio caxiense tem feito em prol de um público cada vez mais aparente. Segundo Aline, a ideia era trazer mais opções para a cidade:
– Eu trabalhei um tempo em Porto Alegre, em um restaurante vegano, e percebi que Caxias tinha pouca opção. Eu sou vegetariana, e inicialmente o pub ia ser vegetariano. Mas depois optamos por englobar todos os públicos e abrir um lugar totalmente vegano. A ideia é que seja um pub mais jovem, um lugar onde as pessoas possam vir e ficar sentadas, beber uma cerveja, conversar.
A aceitação do lugar tem também a ver com o cardápio diversificado. Com uma variada opção de hambúrgueres de feijões, ervilha, lentilha, seitan e moranga, os frequentadores podem provar petiscos como aipim frito, banana frita, bolinho de grão de bico, além de sorvetes, sucos, molhos e, claro, o tradicional chope (vegano). Aline conta que o medo de empreender em uma região com forte cultura do churrasco foi grande, mas não impediu os irmãos. Mas, apesar de bem aceito pelo público vegano, o lugar ainda sofre resistências.
– Rola um preconceito. As pessoas pedem queijo, pedem pela carne, etc. Mas recebemos muitos elogios também. O que mais escutamos é que o pub surpreende. As pessoas acham os lanches bem saborosos. Porque um hambúrguer de feijão não parece atraente mesmo, mas todo mundo que prova adora – relata.
O pub é um dos poucos com funcionamento noturno na cidade. Aberto até as 23h no final de semana, a ideia é proporcionar um espaço agradável, pouco acessível aos veganos pouco tempo atrás. Para Rafael, o retorno é positivo, até mesmo entre os não-veganos. Mesmo em terra de xis-bacon e churrasco, para ele, o receio é menor do que parece:
– Na verdade, são piadinhas só. O pessoal brinca, mas acaba sempre aderindo. Eu observo muitos casais em que o namorado come carne e a namorada é vegana, por exemplo, mas ele acaba provando e adora. Temos uma boa aceitação de todos os públicos.
Pelo que substituir?
Alguns alimentos não podem faltar em uma dieta vegetariana. Confira algumas fontes ricas em proteína:
Leguminosas: feijão, lentilha, ervilha, grão de bico, soja, etc.
Vegetais folhosos escuros: Alface, rúcula, espinafre, agrião, etc.
Frutas secas: Tâmara, nozes, damasco, ameixa, castanha do Pará, amêndoas, avelã, etc.
Outras fontes de proteína vegetal: leite de soja, leite de castanha, seitan, tofu, homus, arroz integral, brócolis cozidos, sementes de girassol, quinoa, abacate, linhaça e chia.
B12: necessário fazer a suplementação. Pode ser adquirida em farmácias ou manipulada.
Rejane Rech, professora universitária e coordenadora do curso de Engenharia Química da UCS, é o que podemos chamar de uma cliente das antigas: frequenta o Govinda há 17 anos.
– Venho aqui desde que virei vegetariana, aos 37 anos, 17 anos atrás. Resolvi parar de comer carne por uma questão de compaixão com os animais, primeiro parei com a carne vermelha, depois com a carne branca. Hoje também não tomo leite e não como ovos – comenta.
Ela lembra da dificuldade de encontrar opções vegetarianas na cidade há alguns anos:
– Além de ser difícil de encontrar lugares, era uma coisa muito estranha ser vegetariano na época. Então nós sofríamos uma resistência até de familiares, as pessoas faziam piadas, debochavam, porque era uma coisa muito fora do padrão. Hoje é muito mais fácil.
Lelis Marlon Scopel tem 55 anos, e frequenta o restaurante há 25 anos. Carnista e não adepto do vegetarianismo, ele explica que a motivação dele e dos dois filhos adolescentes, Larissa e Pietro, em frequentar o lugar, é a busca por uma alimentação saudável:
– Não sou vegetariano, mas viemos todos os dias porque o dono era Hare Krishna, então ele tem o amor em fazer a comida. A gente cultiva o bom hábito da comida natural.
– Venho aqui desde que estava na barriga da minha mãe, então já se tornou hábito. É como uma família – relata Larissa.
Consequências
Entre as consequências a longo prazo da carência da vitamina no organismo, estão a dificuldade de raciocínio, memória fraca, fadiga, vertigens, palpitações, náuseas, perda de peso, etc.
Um senhor simpático de moletom vermelho contrasta as cores claras e leves do restaurante Govinda, de Caxias do Sul. Ao lado de mais três pessoas, Guimarães Francisco da Silva, de 85 anos, realiza o ritual que cumpre diariamente há mais de 15 anos. Com pratos coloridos e uma conversa tranquila, Guimarães, Karina e um casal que pediu para não ser identificado, contam que se conheceram no restaurante, e hoje almoçam juntos e funcionam como família:
– A nossa intimidade está limitada à mesa que frequentamos. Não somos consanguíneos mas temos a mesma resposta: somos família – conta um deles.
Com uma dieta que se resume basicamente a frutas, legumes e verduras, um dos senhores relata que o atrativo do restaurante é, justamente, a simplicidade:
– A alimentação é ótima, sempre mantém o mesmo padrão, tudo que é servido é modificado todos os dias, mas não é abundante. É o suficiente para você ser muito bem atendido, e é saudável.
Além do interesse pela boa comida do local, uma coisa em comum une os quatro: todos comem carne. Questionados sobre os motivos de frequentar um ambiente vegetariano, a resposta é unânime:
– Porque a comida é saudável, e feita com amor. Nunca enche e nem enjoa. Comemos carne somente nos finais de semana – explica uma das mulheres.
A senhora mais velha da mesa tem 71 anos de idade, mas poderia ter 50. Com uma aparência extremamente saudável, ela procura o restaurante diariamente há cerca de dois anos, em busca de uma alimentação mais leve:
– Eu venho praticamente todo dia. E a gente se adaptou porque é uma comida saudabilíssima, ele (o dono) sabe preparar e entende o paladar da gente. Eu nem sinto falta de carne. Quando a gente decide mudar, ir em outro lugar, vai, mas não gosta. Acaba voltando.
– A comida não incha, não dá sede, tu fica satisfeito – complementa Karina.
Karina Salgado, 53, é patologista e a única vegetariana da mesa. Ela conta que segue o estilo de vida há 20 anos, e tem como motivação principal o sofrimento animal:
– Eu tinha 30 e poucos anos quando comecei, e venho aqui há cerca de 15 anos. Eu adoro animais, não posso comê-los.
Veganos x Vegetarianos
Veganos: Além de não consumirem nenhum tipo de carne, ovos, laticínios e quaisquer derivados de origem animal, inclusive o mel, os veganos não consomem produtos derivados de animais, como roupas, sapatos e acessórios feitos de couro, pele e lã animal, nem adquirem produtos de beleza, shampoos, cremes e maquiagem que foram previamente testados em animais.
Vegetariano (ou vegetariano estrito): Não consome nenhum tipo de carne. Isso quer dizer que, além do boi e do porco, também não são consumidas as carnes de frango, peixe, frutos do mar e embutidos, como salame, salsicha, presunto e mortadela. Essa dieta não consome nenhum produto que seja derivado da morte de algum animal.
Ovolactovegetariano: A premissa básica dessa dieta é não comer carne de nenhuma espécie. Porém, os adeptos consomem normalmente ovos, leite e seus derivados, pois entendem que os animais não tiveram que morrer para fornecer esse tipo de alimento.
Ovovegetarianismo: Consomem apenas alimentos de origem vegetal e ovos, excluindo do cardápio carne, leite e seus derivados.
Lactovegetarianismo: Consomem apenas alimentos de origem vegetal, leite e seus derivados, excluindo do cardápio carne e ovos. Essa é a dieta tradicional da população indiana.
Em busca do equilíbrio
Jorge Oscar de Matos, dono do Govinda, veio para Caxias em 1987, ao lado da esposa. O restaurante, que inicialmente ficava na Rua Júlio de Castilhos, mudou-se três anos depois para o endereço atual, onde se mantém há quase 30 anos.
– Eu e a minha noiva saímos daqui de Caxias e fomos morar em Porto Alegre. Naquela época nós éramos monges, então seguíamos o principio do vegetarianismo. Era bem difícil, tinha muito preconceito. Tanto que eu não consegui morar na minha casa, tive que sair – conta Jorge.
Aos 15 anos, após participar de um curso de culinária gratuito, Jorge começou a desenvolver um dom. Com 18, após cumprir quartel, já era monge. Voltando para Caxias, descobriu que a sua comida podia agradar a diferentes gostos:
– Comecei a misturar a culinária italiana com a vegetariana. Então vim pra Caxias, abri um centro de integração de cultura védica, e para manter o centro abrimos um restaurante. No início era pequeno, as pessoas sentavam em mesinhas no chão. Depois começou a aumentar, até os clientes ajudaram. Teve um que nos doou as mesas.
Ele explica que apesar de buscar uma alimentação saudável grande parte de seus clientes comem carne.
– A maioria não está aqui por convicção vegetariana, por ter compaixão pelos animais. O pessoal mais velho vem por saúde. O legal é o equilíbrio. Já a pessoa que quer levar uma vida espiritual, para ter uma frequência boa, é difícil manter uma energia alta comendo produtos cárneos, embutidos, etc – diz.
Gaias: liberdade na escolha
Vinicius Pistor, 32 anos, é vegano. Doutor em Química Orgânica, ele decidiu largar a vida tecnológica e mudar de vida. Hoje reside em Caxias e é dono do Gaias, um dos pontos referências da culinária vegana na cidade:
– A grande parte dos nossos ingredientes são cultivados por nós, temos uma chácara. Então, o restaurante além de ser vegano, tem a proposta do orgânico. Mas é preciso ser comedido na fala, pois não existe possibilidade de um restaurante 100% orgânico. Eu digo que, hoje, somos 70% orgânico.
Quando questionado sobre o preconceito, ele opina que grande parte do preconceito vem dos próprios adeptos do movimento.
– O preconceito é culpa do próprio vegano. Eu sou vegano mas não acredito que exista rótulos. Quando a pessoa se auto intitula vegana ela está sendo hipócrita, porque não existe isso. O veganismo é uma filosofia de vida que parte do princípio que você tem que entrar em equilíbrio com o planeta, não só com o gato, com o cachorro, com a vaca – defende.
Vinícius prega que o veganismo é, antes de uma dieta, um equilíbrio de vida, e que o caminho do extremismo é perigoso tanto para carnistas quanto para veganos:
– É como se você não pudesse cometer nenhum erro. As pessoas não entendem que, ao comprar vegetal de um pequeno produtor, por exemplo, ele vai ter usado o boi para arar a terra. Veganismo é só uma filosofia, e eu sigo ela. Não sou perfeitamente vegano, ninguém é.
Mesmo com um cardápio que tenta se aproximar o máximo possível do veganismo, 80% da cartela de clientes do Gaias consome carne. Esses números apontam para uma tendência diferente, que pode coexistir com a da consciência animal, que é a busca por uma vida mais natural, orgânica e saudável.
– Veganismo é filosofia de vida, não afeta ninguém, qualquer um faz o que quer. Quase todos os nossos clientes comem carne, e não é nenhum problema. Para mim, vegano, é algo bom. A pessoa vai vir aqui, provar os pratos e enxergar o valor da nossa comida – diz Vinicius.
Veganismo e profissão
Cozinheira e ovo vegetariana há 24 anos, Karen Fogaça, de 39 anos, não come ovos, peixes, carne ou derivados. No Gaias, ela trabalha na cozinha, e usa sua base alimentar indiana para inventar pratos integrais e veganos.
– Eu sou Hare Krishna. Conheci a culinária vegetariana no Govinda, depois fui morar em um templo e fui para o lado da comida indiana. No início não tinha nada de opção em Caxias. A maionese de soja, por exemplo, que hoje chama de patê de soja, fui eu que comecei a fazer – orgulha-se.
Karen lembra que foi a primeira vegetariana da família em uma época em que o vegetarianismo não era nada comum. Apesar das adversidades, duas paixões foram o combustível para uma mudança de vida:
– Para mim foi bem natural parar de comer carne. Mesma coisa com as comidas que eu desenvolvo. Uniu a minha paixão por culinária com a minha vontade de seguir o movimento.
Confira alguns lugares com opções veganas e vegatarianas em Caxias:
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