Dia 25 de agosto de 1943: inauguração do Marco em Memória às Moças Operárias, obelisco que destaca as vítimas da explosão e no qual Anoema não consta
Anoema da Costa Lima não figura entre as sete operárias homenageadas com uma placa de bronze e um obelisco no pátio da antiga Indústria Metalúrgica Gazola. Não morreu na hora da grande explosão de 22 de julho de 1943, como as colegas Graciema Formolo, Olívia Gomes, Júlia Gomes e Maria Bohn. Nem uma semana depois, como Tereza Morais e Irma Zago, acamadas no Hospital Pompéia devido aos graves ferimentos. Tampouco viveu com a terrível marca da tragédia pelos 60 anos seguintes, caso de Odila Gubert, a jovem que teve a perna amputada em 1943, aos 20, e faleceu em 2003, aos 80.
Anoema da Costa Lima foi a última a sucumbir naqueles tempos de guerra, quando a Gazola Travi & Cia foi encampada pelo Exército Nacional para produzir artefatos bélicos. Morreu em 14 de janeiro de 1945, exatamente um ano, cinco meses e 21 dias após a sequência de estampidos que destruiu a fábrica de munições, na BR-116. Anoema, porém, teve sua biografia totalmente ignorada pela história. Figurou nas páginas do jornal O Momento esporadicamente, entre 22 de julho de 1943, o fatídico dia da explosão, e as semanas subsequentes à morte, em 14 de janeiro de 1945. A partir daí, ficou brevemente conhecida como a vítima que foi abandonada pelos médicos e enterrada sem a família receber o atestado de óbito com a causa mortis.
Anoema da Costa Lima contava 17 anos em julho de 1943. Nascida em 19 de janeiro de 1926, a filha de Archemimo Ribeiro de Lima e Maria Rita da Costa Lima era a terceira de uma prole de nove irmãos: Ary, Adayl, Aracilda, Agenior, Alzira, Anoir, Nilza e Juvelina. Atuando havia apenas oito dias no pavilhão principal da fábrica, Anoema foi brutalmente atingida não apenas pelo teto que veio abaixo com os estouros. Conforme matérias publicadas pelo jornal O Momento, a jovem ficou 34 dias internada no Hospital Pompéia devido a grande quantidade de estilhaços de ferro e aço espalhados pelo corpo e pela cabeça.
Anoema da Costa Lima e sua trágica história chegaram a primeira página do jornal O Momento em 27 de janeiro de 1945, 13 dias após a morte. Foi quando o semanário alertou: "A vítima foi sepultada sem o necessário atestado da causa mortis". Logo na sequência, a matéria questionava: "Por que teriam os médicos se negado a atestar a causa da morte da operária Anoema? Quais as providências da Companhia Seguradora?" Depois de recontar a explosão de um ano e meio antes, o terceiro parágrafo do texto trazia informações mais objetivas: "... a infeliz operária foi sepultada graças à ordem expedida pelo sr. Delegado de Polícia, ao tomar conhecimento de que determinado médico ou o Posto de Higiene local, de quem fora solicitado o indispensável óbito, negaram-se a fornecê-lo. Até mesmo a Companhia Seguradora providência alguma tomou. Será que a referida companhia desinteressou-se da sorte de sua segurada, julgando extinta sua responsabilidade e pagando apenas mil e poucos cruzeiros do acidente propriamente dito? Voltaremos ao caso". Dito e feito.
Anoema da Costa Lima retornou às páginas de O Momento quando o pai resolveu trazer a público "a odisséia de uma operária", título estampado na primeira página da edição de 3 de fevereiro de 1945 (clique aqui e leia a matéria original) . Funcionário da antiga Estação Experimental de Caxias do Sul, seu Archemimo buscou a imprensa para denunciar a falta de assistência médica dispensada à filha. Conforme o relato, após mais de um mês internada no Hospital Pompéia, quando esteve sob os cuidados do médico Gastão Festugato, Anoema "recebeu alta" e foi mandada para casa. A gravidade dos ferimentos, porém, obrigava-a a visitar o consultório de Festugato quase que diariamente para fazer os curativos. Pouco tempo depois, no entanto, Festugato "por qualquer motivo, resolveu desinteressar-se pela sorte da doente, apesar do desvelo com que a tratou desde o início, chegando mesmo a operá-la em ambos os antebraços, extraindo os estilhaços de ferro e aço", relatou o pai.
Anoema da Costa Lima deu sequência ao tratamento no Hospital São Francisco, em Porto Alegre, a mando da companhia seguradora. Ficou internada de 2 de novembro a 22 de dezembro de 1943, sem obter melhora alguma. De volta a Caxias, passou mais dois meses sob a assistência do médico José Brugger. O pai também resumiu esse dramático período no jornal: "Findo este tempo, o doutor Brugger declarou-me que era tal a quantidade de estilhaços disseminados pelo corpo de minha filha que nem mesmo intervenções cirúrgicas a poderiam salvar. Por isso, desistiu de continuar tratando-a".
Anoema da Costa Lima e a família testemunharam, a partir daí, uma série de episódios grotescos durante a busca por tratamento. Um deles teve como protagonista o senhor Angelo Costamilan, agente local da Companhia de Seguros Protetora, de Porto Alegre, responsável pelo atendimento às vítimas. Em março de 1944, conforme relato do jornal, o pai da jovem recorreu novamente a Costamilan devido ao estado de saúde de Anoema: "Queixava-se ela de dores atrozes na cabeça, em consequência de um estilhaço que fundamente lhe penetrara no aparelho auditivo direito. Desta feita, o senhor Costamilan gracejou comigo e com a própria doente dizendo: o remédio é cortar a cabeça fora".
Anoema da Costa Lima também foi vítima de outro mal: o preconceito. Em reportagem datada de 17 de fevereiro de 1945, o mesmo semanário aludia a um possível caso de racismo com os “não italianos” da cidade, visto que Archemimo era natural de São Francisco de Paula: “Entregue aos cuidados materiais da Companhia que a segurou contra acidentes, representada, aliás, por entes que um dia formaram as fileiras verdes do sigma (referência ao uniforme do movimento Ação Integralista Brasileira, de cunho fascista), portanto de mentalidade racista e totalitária, era natural que essa ‘brasileirinha’ fosse tratada com menosprezo e ironias”.
Anoema da Costa Lima faleceu em casa no dia 14 de janeiro de 1945, há exatos 73 anos. Após a família receber da seguradora míseros Cr$ 740,00 e a orientação de que a jovem deveria “procurar trabalho, pois não havia mais o que fazer”, Anoema passou a ser tratada na chácara da família, a base de remédios caseiros. Nos últimos meses de vida, recebeu a visita do médico José Bruno Gonçalves, “que, num esforço constante, tudo fez para minorar-lhe os sofrimentos. Vendo-se vencido, desistiu. Em outubro do ano passado (1944), visitou-nos pela última vez”, relatou o pai no jornal. Ao final do depoimento, Archemimo despede-se: “Em face da opinião desse dedicado profissional, de que o mal não tinha cura, eu, minha mulher e demais filhos entregamos o caso nas mãos da Divina Providência. Até que às 2h da tarde do dia 14 de janeiro, Anoema entregava sua alma a Deus, confortada pelos Santos Sacramentos da Igreja, que lhe foram ministrados pelo Revmo. Padre Franzoi”.
Anoema da Costa Lima divide o antigo livro de registro de sepultamentos do Cemitério Público Municipal não apenas com “anônimos” como ela. Naquele longínquo 14 de janeiro de 1945, os corpos de apenas duas pessoas deram entrada na necrópole municipal: o de uma mulher, operária, carente de assistência médica, enterrada sem atestado de óbito em uma cova simples no chão; e o de um homem, empresário de sucesso, talvez o mais rico e influente do século 20 em Caxias, sepultado com discurso, entre bronzes e mármores italianos. Anoema da Costa Lima e Abramo Eberle, um nome seguido do outro na folha de número 6 do catálogo 1944-1953, exemplificam à perfeição as ironias do destino. Até na hora da morte.
Livro de registro de sepultamentos de 1945 traz Anoema seguida de Abramo Eberle
Túmulo de Anoema e da família no Cemitério Público Municipal
Anoema da Costa Lima, hoje, é apenas um nome aleatório em uma placa de mármore enegrecida na sepultura 1129 da fila 10-A, para onde seus restos mortais foram transladados. Divide o jazigo com o irmão, Anoyr, a mãe, Maria Rita da Costa Lima, o pai, Archemimo Ribeiro de Lima (1889-1972), e uma tia de criação, Maria Doralina da Costa (1928-1946). Os sobrenomes, aliás, provocam uma certa confusão. À época da confecção, o pai suprimiu o “Costa” e manteve apenas a inicial “R”, de Ribeiro. Daí a lápide trazer as denominações equivocadas “Anoemia R. de Lima (1926-1945)”, “Anoir R. de Lima (1922-1947)" e "Maria Rita Ribeiro (falecida em 1949)". Lá também está sepultada a segunda esposa de Archemimo, dona Aracy Maria do Amaral de Lima (1938-2015), ainda sem a fotografia e as letras de identificação. Foto de Anoema? Nenhuma.
Anoema da Costa Lima tem sua trajetória revista de forma bastante fragmentada. Assim como as companheiras que “tombaram como soldados pela Pátria” em 1943, ela também foi negligenciada e esquecida. Em uma cidade que enaltece um passado de lutas e glórias, heróis masculinos, sobrenomes de vulto, suores, labores e brasões, “apagar” pessoas comuns, principalmente mulheres, também é tradição.
Anoema da Costa Lima abre todos os parágrafos deste texto propositalmente. Para ninguém mais esquecer de seu nome e sua história.
Dona Aracilda (com a foto da irmã Anoema) e as filhas Elizete e Regina
José do Amaral de Lima nasceu em 1961, 16 anos após a morte de Anoema da Costa Lima, em 1945. Filho do segundo casamento de Archemimo Ribeiro de Lima, com Aracy Maria do Amaral de Lima, José pouco recorda da história da meia-irmã. Tinha apenas 10 anos quando o pai morreu, em 1972, mas lembra de seu Archemimo contando vagamente o episódio:
– Ele comentava apenas que uma irmã minha tinha morrido na explosão da Gazola, na época da guerra. Naquele tempo não se dava detalhes desses assuntos para as crianças. Era conversa de adulto.
Foi através de seu José, no entanto, que chegamos a duas personagens fundamentais na montagem de todo esse quebra-cabeça. Duas das três irmãs vivas de Anoema da Costa Lima, Alzira da Costa Lima Schiavo, 85 anos, e Aracilda da Costa Lima Piazza, 88, eram não mais que adolescentes em 1943 - Juvelina Bueno, 78 anos, a mais nova, tinha apenas quatro. Por vezes, são traídas pela memória, mas a lembrança do “horror” da Gazola ainda está lá, intacta. Principalmente para Aracilda.
Nascida em 1929, dona Aracilda tinha 14 anos quando a fábrica explodiu. Morava com os pais e irmãos em uma chácara na esquina das ruas Vinte de Setembro e Humberto de Campos, próximo ao Parque da Imprensa. Lembra que, após ouvirem o estrondo naquela manhã, os pais correram até a então recém-inaugurada BR-116 para saber de Anoema. A filha, porém, só foi identificada no Hospital Pompéia. A mãe, Maria Rita, reconheceu-a por um pedaço do casaco: o rosto estava tomado de fuligem e queimaduras.
– Rasparam a cabeça por causa dos ferimentos, daí ela passou a usar uma espécie de turbante. Os médicos tiravam os pedacinhos (estilhaços de ferro) da cabeça dela um por um – conta.
Dona Aracilda recebeu a reportagem na companhia dos filhos Luiz Eduardo Lima Piazza, Regina Lima Piazza e Elizete Piazza Adami. Todos, em algum momento da vida, ouviram da mãe a história da tia morta na explosão da Gazola. E alguns detalhes lembrados por dona Aracilda no último domingo jogaram ainda mais luzes sobre a saga de Anoema.
– Ela era noiva de um soldado chamado Eugênio. Foi ele quem conseguiu o emprego para ela na fábrica da Gazola. Depois do acidente, ele foi lutar na guerra e nunca mais se teve notícia. Deve ter morrido na Itália – revela.
Aracilda não foi ao enterro da irmã, em 14 de janeiro de 1945, no Cemitério Público Municipal. Mas confirma que o corpo de Anoema foi depositado na terra, antes de os restos mortais serem transferidos para o atual jazigo:
– Foi no chão mesmo, como um soldado.
Antes do contato com dona Aracilda, porém, coube a outra irmã, dona Alzira, e aos filhos Vera e Paulo a missão de tentar encontrar uma fotografia de Anoema, uma “mulher sem rosto” desde que toda essa história começou a ser apurada, em novembro de 2017. Também intermediada por seu José, a visita à casa da família, no bairro Sagrada Família, rendeu bem mais do que um longo “tricô” na cozinha.
Primeira foto de Anoema foi encontrada na casa da irmã Alzira
Do interior de uma velha caixa de papelão foram surgindo imagens em preto e branco do casamento de dona Alzira com seu Bortolo Schiavo, em 1954, do pai, Archemimo, dos irmãos de Anoema, de Vera e Paulo na juventude, de pencas de parentes e amigos, registros de todos os formatos, de todos os tamanhos, de todas as épocas. De Anoema, nem sinal.
Uma hora e muitas fotos reviradas depois, a “surpresa”. Uma fotografia 3x4, amarelada pelo tempo, com rasuras e marcada por um carimbo da Delegacia de Polícia repousava fora da caixa, num canto do sofá – provavelmente caída quando da abertura do relicário. Reportagem e família depararam com uma jovem alva, cabelos castanhos e levemente crespos, de semblante belo e tranquilo.
– É a minha irmã, a que morreu na explosão da Gazola – antecipou-se Alzira.
Anoema da Costa Lima não era mais “a mulher sem rosto”.
Em 2018, quando a tragédia que enlutou Caxias do Sul durante a Segunda Guerra Mundial completa exatos 75 anos, a recordação da via-sacra de Anoema da Costa Lima para sobreviver chega recheada de dúvidas e suposições. As indagações feitas pelo jornal O Momento em 1945 repetem-se hoje: “Por que teriam os médicos se negado a atestar a causa da morte da operária Anoema?”
É a história acertando as contas com a própria história.
Inauguração do Marco em Memória às Moças Operárias, em 25 de agosto de 1943
Menos de um mês depois de ter voado pelos ares, em 22 de julho de 1943, o antigo pavilhão de munições da Gazola já estava praticamvente reconstruído. Era o período do esforço de guerra, daí a necessidade – e a obrigação – de retomar o acelerado ritmo de produção para o Exército o quanto antes.
Para dar sequência ao trabalho e “amenizar” a tragédia, em 25 de agosto de 1943 foi inaugurado o Marco em Memória às Moças Operárias, no pátio em frente ao prédio (à esquerda). Era lá que as jovens enchiam os cartuchos de pólvora quando ocorreu o acidente. Lembrando um obelisco, o monumento traz uma placa de bronze (foto à direita) com os seguintes dizeres:
“Às denodadas e infelizes companheiras de trabalho Odila Gubert, Graciema Formolo, Júlia Gomes, Olívia Gomes, Irma Zago, Maria Bohn e Tereza Morais, aqui vitimadas quando cumpriam seu dever pelo esforço de guerra do Brasil, na manhã lutuosa de 22 de julho último. Homenagem em continência da Firma Gazola, Travi & Cia. Caxias do Sul, 25 de agosto de 1943.”
Já em 26 de dezembro de 1959, 16 anos após a explosão, a Câmara de Vereadores de Caxias do Sul encaminhou um projeto de lei visando homenagear vultos históricos e outras personalidades com nomes de logradouros. Foram denominadas 239 ruas. Entre elas, seis com os nomes das operárias vítimas do acidente na Gazola.
Desde 1960, Graciema Formolo, Irma Zago, Tereza Morais, Olívia Gomes, Julia Gomes e Maria Bohn tem suas histórias cruzadas pelas esquinas do bairro Sagrada Família, a alguns metros da fábrica onde perderam a vida. Inexplicavelmente, o nome de Anoema da Costa Lima foi ignorado. Tanto no obelisco quanto nas ruas.
Em 30 de junho de 2003, 60 anos após a tragédia, o Marco em Memória às Moças Operárias e o pátio do antigo pavilhão, na BR-116, foram inscritos no Livro de Tombo do Município de Caxias do Sul, sendo garantida a sua proteção e preservação.
O monumento e o Memorial Gazola podem ser visitados às terças e quintas, das 14h às 17h. Visitas de grupos podem ser agendadas pelos fones (54) 3041.1511 ou (54) 98132.5438. O Memorial Gazola é mantido pela Marcenaria Sular.
Saiba mais: www.memorialgazola.com.br.
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