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Localizada no subsolo do casarão e da Ferragem Andreazza, adega particular abriga vinhos produzidos pelo fundador desde 1918, além de milhares de itens

Uma adega,
décadas de histórias

Espaço localizado na esquina das ruas Pinheiro Machado e Moreira César guarda parte das memórias da família Andreazza e da própria Caxias


Textos
Rodrigo Lopes*
  rodrigolopes33@gmail.com
*Especial

Fotos
Felipe Nyland
felipe.nyland@pioneiro.com
Rodrigo Lopes, divulgação

Existem lojas que costumam ficar eternizadas na memória afetiva de um bairro, de uma cidade, de um vilarejo. Talvez por serem, mais do que um estabelecimento comercial, um reduto informal de lembranças de infância e juventude. Entre várias espalhadas por Caxias até hoje, como a Casa Magnabosco, a Joalheria Beretta e a Óptica Martinatto, uma ganha destaque exatamente por estar prestes a celebrar 100 anos, gerida pela mesma família e localizada no mesmo endereço.

Falamos da Ferragem Andreazza, situada na esquina das ruas Pinheiro Machado e Moreira César desde 1919. Sim, não há consumidor de Caxias que não tenha passado por lá ao longo dos últimos 99 anos. Se não frequentou, provavelmente teve pai, mãe, avô, tio ou algum parente que comprou um moedor de carne, um ancinho, um conjunto de copos, uma borracha de cafeteira, uma caneca esmaltada, um filtro de água, uma cesta de vime, um tacho de cobre para chimia, uma mangueira, entre centenas de outros itens do dia a dia. Porém, é no subsolo da ferragem, longe dos olhos e do conhecimento do público, que outras saborosas lembranças repousam às vésperas desse aniversário.

Bem-vindo à antiga adega de Luiz Andreazza. 

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Luiz Andreazza nasceu em 25 de setembro de 1893. Filho de marceneiro, o jovem tinha pouco mais de 20 anos quando adquiriu uma loja “de tudo um pouco” do empresário Fioravante Zatti, seu patrão em uma madeireira. Surgia aí, em 1919, o Negócio de Luiz Andreazza & Cia Ltda”, em um amplo casarão de madeira no bairro São Pelegrino. Foi onde seu Luiz começou a dedicar-se a outra paixão: a produção de vinhos. Foi onde começou a nascer também a mítica adega, a qual nossa reportagem teve acesso, duas semanas atrás.

O refúgio subterrâneo, alheio ao caótico movimento da rua, impressiona pelos detalhes: um alçapão no vestíbulo da casa conduz ao subsolo, onde o visitante sente o odor da bebida aumentar a cada degrau em caracol. Pela cozinha, o conviva é “recebido” por Dante Alighieri. Esculpido em madeira, um trecho de A Divina Comédia, mais precisamente o que faz referência aos umbrais do inferno, dá o recado: “Lasciate ogni speranza voi che entrate” (abandonai toda a esperança vós que entrais).

No bar e no salão maior, as referências a Baco estão por toda a extensão do teto – os cachos de uva pintados pelo filho Júlio Cesar Andreazza – e pelas vigas, uma delas adornada pela indefectível in vino veritas, outra pela expressão “o vinho alegra o coração do homem bom”. Em uma das paredes, também pintada por Júlio, o poeta persa Omar Khayan profetiza: “Se és vivo, bebe, pois morto não mais voltarás”.

Mas são as galerias abarrotadas de garrafas que impactam o visitante, algumas delas datadas da época em que Luiz começava a erguer seu império. 


Tradição
Em 1961, Luiz Andreazza foi agraciado com um diploma de Honra ao Mérito pelo Sindicato do Comércio Varejista de Caxias do Sul. À época, seu Luiz era o comerciante mais antigo da cidade em atividade. O diploma consta até hoje na loja, comandada pelo neto André Andreazza. A ferragem também foi uma das pioneiras em oferecer uma infinidade de utensílios de cozinha para gourmets, como moedores de especiarias, grelhas, cafeteiras italianas, coadores especiais, etc. Tudo isso numa época em que esse nicho ainda engatinhava em Caxias. Assim como o próprio termo gourmet.
 

Buraco na parede

Em 31 de janeiro de 1920, aos 26 anos, Luiz Andreazza casou com a jovem Anaide Chiaradia, 19, com quem teve quatro filhos: Têmis, os gêmeos David e Ely e o caçula Júlio César. Da prole, apenas David e Júlio (ambos in memoriam) tiveram relação com a administração da ferragem. Principalmente seu David, que, permaneceu no negócio até falecer, em 2017 – ao lado do filho André e da nora Solange, os atuais proprietários da casa.  

A adega, bem embaixo da loja, faz jus à discrição e à tradição da família: é reservada a encontros íntimos, para pequenos grupos, realizados em datas especiais. Uma prática que teve seu auge entre os anos 1950 e 1970, quando “vô Luiz” e “vó Anaide” reuniam todos os filhos e netos para jantares, almoços, festas, natais e aniversários.

Entre tantas lembranças e álbuns de fotografias, um episódio resume bem a mítica do lugar: a comemoração das bodas de ouro dos fundadores, em 31 de janeiro de 1970. Foi quando as garrafas depositadas em uma espécie de cripta – cimentada 25 anos antes, em 1945, nas bodas de prata – foram abertas, conforme combinado pelo casal.

A celebração teve ares de façanha. Seu Luiz quebrou a parede com uma marreta. Para retirar as bebidas, os netos André, Luiz e Vinícius entraram no pequeno compartimento – às netas meninas não foi permitido. Em meio à poeira acumulada do cubículo, cada um foi entregando uma garrafa aos avós. Tudo para o grande brinde dos 50 anos, conforme vemos na sequência abaixo.

– Todo mundo entrou lá – conta o neto André, um dos que “resgatou” as bebidas.

Já os vinhos produzidos e depositados em 1970 seriam retirados nas futuras bodas de diamante de Luiz e Anaide, em 1980, mas a ideia acabou não se concretizando.

Desde então, André é cobrado pelos amigos para abrir novamente a parede. Mas não tem essa intenção, pelo menos por enquanto:

– O pessoal é exigente, e os vinhos não estarão bons para beber, então é melhor deixar lá mesmo.

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Livro concentra frases e impressões do lugar

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Graspa produzida por Luiz em 1918

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Garrafas e souvenires, como o da Festuva 1954, integram acervo

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Os jovens Luiz Andreazza e Anaide no “Livro de Ouro”


Na imprensa
Em depoimento à extinta revista Manchete, em novembro de 1967, Luiz Andreazza afirmava: “na minha adega não tem nem água. O vinho tanto é melhor que atrai, quem bebe um copo quer repetir a dose”. A reportagem destacava o espaço caxiense como “a mais famosa adega particular do Brasil”.


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Amplo salão, com uvas pintadas no teto e lembranças forrando as paredes, costumava sediar as reuniões e festas da família até meados dos anos 1980

Vinhos e netos

A produção de vinhos para ocasiões especiais em família era uma constante de seu Luiz. Conforme André, o avô criava uma bebida para cada neto que viesse ao mundo. O vinho de André, no caso, foi produzido meses antes do nascimento, em 4 de março de 1959.

– Mas não lembro mais qual era – diz.

Filha de seu Ely Andreazza, a neta Fernanda Sanvitto Andreazza, 55 anos, também “recebeu” um exemplar.

– Era um frisante, mais doce e bem mais leve. Misturavam com água e açúcar. Eram coisas de uma outra época – conta.

Entre as lembranças de infância de Fernanda sobre o espaço, o presépio de Natal se destaca:

– Era enorme e ficava num canto do salão, feito com musgos vivos, rodas d´água movidas a pilha e laguinho. Meu avô era habilidoso para criar todas essas coisas.

A neta também recorda das visitas e reuniões que costumavam movimentar a adega, nos anos 1960.

– Tudo acontecia lá. Vinham presidentes, políticos, autoridades. E todos nós (crianças) estávamos no meio – conta.

Por volta dessa época, o espaço já estava abarrotado de souvenires sobre o universo do vinho: flâmulas, cálices, taças, garrafões, cestas, apetrechos de cutelaria, coroas de rolhas, certificados e cartazes originais da Festa Nacional da Uva desde 1950. Aliás, era exatamente durante as edições dos anos 1950 e 1960 que a adega “bombava” como ponto turístico – em função da originalidade do espaço e das histórias contadas por seu Luiz.

Passaram por lá nomes como os pintores Di Cavalcanti e Djanira, a colunista social Gilda Marinho, o político Carlos Lacerda, os ex-presidentes Ernesto Geisel e Arthur da Costa e Silva e, logicamente, o sobrinho Mário Andreazza (1918-1988), Ministro dos Transportes dos governos Costa e Silva e Médici.

Famosos ou anônimos, todos costumavam assinar e deixar suas impressões no famoso Livro de Ouro, preservado no subsolo até hoje. Está lá, por exemplo, o depoimento de Di Cavalcanti, de passagem pela cidade em 1967 para um encontro de artes plásticas: “Meu destino é descobrir. E abrem-se diante de meus olhos novos mundos. Nesta casa em que se apoiam os alicerces de uma adega maravilhosa, eu descubro uma lição de sabedoria”.

Outro grupo assíduo da adega era a chamada Turma dos Cem. Além de David e Gloria Andreazza, pais de André, a trupe era formada por amigos integrantes da antiga Aliança Francesa, como Hermínio Bassanesi (o Bassa, da vizinha Molduraria Caxiense), Ruben Festugatto, Ilse Morei, Gerda Bornheim, Zila Garcia, Branca Pezzi, Ivo Bento Alves, os casais Nilton e Rose Scotti e Raymundo e Ilsa Pezzi, e, mais recentemente, a caçula do time, Caroline Andreazza – filha de André e Solange, neta de David e bisneta de Luiz Andreazza.

– Saíam muito para jantar e apreciar um vinho, além de se reunirem lá embaixo – revela Solange, mãe de Caroline.

Conforme André, atualmente cerca de 10 mil garrafas decoram as paredes e prateleiras da adega. As mais antigas datam de 1918, com os rótulos escritos à mão pelo próprio avô. São cachaças, aguardentes de cana, graspas, conhaques, licores, whiskies e vinhos produzidos com as antigas variedades Barbera e Bonarda.

– Meu avô não era um apreciador de vinhos tradicional, ele gostava mais de adocicados e espumantes – revela o neto.

Independentemente do gosto, porém, a produção caseira acompanhou o comerciante durante toda a vida.

– Ele fez vinho até morrer – conclui André.

Luiz Andreazza faleceu em 1980, aos 87 anos.


 

Um incêndio em 1948

Fundado em 1919, o estabelecimento sofreu seu principal revés há exatos 70 anos, em 29 de janeiro de 1948. Foi quando um violento incêndio destruiu a antiga casa da família e parte do então novo edifício em alvenaria. Conforme informações publicadas no jornal O Momento de 31 de janeiro daquele ano, “... dadas as proporções das labaredas, todos os esforços para abafá-las se tornaram inúteis. Não obstante, o fogo foi impedido de propagar-se aos prédios vizinhos e muita mercadoria foi salva”.

Ainda segundo o jornal, “... os prejuízos do Sr. Luiz Andreazza ainda são avaliados, uma vez que os prédios estavam seguros contra fogo por 400 mil cruzeiros, e o valor dos prédios e mercadorias sobe a mais de 2 milhões de cruzeiros”.

O sinistro deu fim também ao dinheiro dos agricultores, que tinham na loja uma espécie de instituição financeira, onde os valores eram aplicados a juros. Conforme informações prestadas pela família, as somas estavam guardadas nos cofres, mas não escaparam de serem consumidas pelo fogo. A família precisou, então, abrir mão das filiais abertas em Vila Oliva e Vacaria e de parte do patrimônio próprio. Tudo para sanar as dívidas e manter o nome já consagrado na praça – principalmente entre os consumidores da zona rural.

A reportagem de 1948 encerra destacando a atuação do padre Eugênio Giordani, pároco de São Pelegrino. Foi ele o responsável por comunicar o sinistro ao tenente do antigo 9º Batalhão de Caçadores (quartel), coronel Jerônimo Rodrigues, e ao inspetor de Polícia, Sr. Acosta, além de prestar auxílio à família no pós-incêndio.

Não por acaso, Giordani era um dos assíduos frequentadores da adega dos Andreazza, tendo celebrado a missa e abençoado os vinhos abertos durante as bodas de ouro de Luiz e Anaide, em 1970.


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Cartazes originais da Festa da Uva integram acervo

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Escadaria de ferro é um dos destaques do espaço

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Livro de Ouro e reportagens que destacaram o espaço compõem o vasto acervo

Um século de histórias

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O antigo casarão de madeira da ferragem, desenhado pelo filho Júlio César Andreazza

Às vésperas de completar 100 anos de atividades ininterruptas, em 2019, o Bazar e Ferragem Andreazza foi testemunha do desenvolvimento de Caxias nas esferas social, política e econômica. E não foram poucos os episódios que tiveram o velho casarão de madeira situado na esquina das ruas Pinheiro Machado e Moreira César como protagonista.

Em depoimento ao Banco de Memória do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami em 1990, Anaide Chiaradia Andreazza (in memoriam), esposa do comerciante Luiz Andreazza e nascida em 26 de outubro de 1900, recordou do comércio da família nos primórdios do século 20, quando o pó, o barro e os cavalos ainda dominavam as ruas.

(…) Os tropeiros vinham dos Campos de Cima da Serra e traziam queijo, açúcar mascavo, cachaça, charque. Nós comprávamos os produtos deles e eles levavam o açúcar, o sal, o arroz, a farinha… E tinham aqueles que traziam as boiadas para os matadouros. Vinham da Estrada Conselheiro Dantas e passavam na Pinheiro Machado. Nós tínhamos que fechar todas as portas. Um dia entrou um boi na loja. Foi aquela correria pro boi não derrubar a exposição dos tecidos que tinha e as louças… E pra segurar o boi foi um transtorno dentro da loja. Afinal de contas, se conseguiu botar pra rua e se fechou a porta até eles passarem.

Na foto acima, a antiga “Loja de Luiz Andreazza” eternizada por Júlio Andreazza, um dos quatro filhos do casal de fundadores. O desenho decora o escritório do mezanino, onde diversas outras reportagens e certificados enaltecem o pioneirismo da família. Exatamente na mesma esquina onde tudo começou.


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Pinturas de Júlio Andreazza alusivas ao vinho decoram a adega

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Espaço concentra milhares de garrafas, presentes e souvenires  

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