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Oito décadas
de projetos e afetos

Autor de “O Quatrilho”, José Clemente Pozenato chega
aos 80 anos como uma referência na literatura


Texto
Maristela Deves
maristela.deves@pioneiro.com

Fotos
Diogo Sallaberry
diogo.sallaberry@pioneiro.com
Porthus Junior
porthus.junior@pioneiro.com 
Roni Rigon

Era 1950 quando o menino José Clemente, então com 11 anos, chegou ao Seminário Aparecida, em Caxias do Sul. Apesar de carregar a ascendência italiana no sobrenome paterno, nascera e crescera em São Francisco de Paula e não falava uma palavra de talian. Alguns meses depois, ao ir para casa nas férias, o pai estranhou:

– Ele perguntou, “de onde você tirou esse sotaque?” – diverte-se o escritor José Clemente Pozenato, 80 anos recém-completados na última terça-feira.

Mesmo com essa aculturação (ou talvez justamente por ela), foi com o que considera “um olhar de fora” que, mais de três décadas e meia após esse episódio, ele escreveria O Quatrilho (1985), livro que rapidamente se tornou referência quando o assunto é a cultura trazida pelos imigrantes italianos. A transformação do romance em filme, uma década mais tarde, e a indicação do longa ao Oscar consolidaram ainda mais o nome de Pozenato, que, na época, já era estudado em diversas universidades Brasil afora.

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Professor

Doutor em Letras, José Clemente Pozenato também foi professor universitário por 45 anos, de 1966 a 2011. Em 2005 e 2006, atuou ainda como secretário municipal da Cultura.

De leitor a escritor

Essa história, porém, começa bem antes do romance mais famoso da região e mesmo da chegada a Caxias. Aos cinco anos, Pozenato aprendeu a ler, e o pai, professor primário, presenteou-o com o livro Histórias do Arco da Velha, encomendado via reembolso postal da Livraria Quaresma, no Rio de Janeiro.

– Começou aí o meu gosto pela leitura.

Depois das histórias de Grimm e Perrault, contidas no livro, vieram os sonetos de Olavo Bilac (“Ora, direis/ouvir estrelas”, recita) e outros poetas, que só aumentaram o prazer da leitura. Quando ingressou no seminário, maravilhou-se com a biblioteca do lugar e despertou para os autores brasileiros contemporâneos, como os poetas Manuel Bandeira e Murilo Mendes. Começou, então, a fazer poesia. Lá pelos 14 anos, veio a descoberta de Machado de Assis, que se tornou seu mestre e referência principal.

– Quando me tornei professor de literatura, fazia questão de dar um semestre inteiro sobre Machado – lembra.

Mas a transformação de leitor a professor de literatura e, posteriormente, a escritor, deu-se quase por acaso. Formado em Filosofia, ele lecionava teologia no mesmo seminário caxiense em que estudara. Usava os textos de Guimarães Rosa para falar de Deus e o Diabo, e abordava o silêncio de Deus em Erico Verissimo.

– Os alunos fizeram um abaixo-assinado para pedir que eu assumisse as aulas de literatura – conta.

Daí para a escrita foi um pulo. Dando uma sobre literatura rio-grandense, ele percebeu que Luiz Antônio de Assis Brasil já havia escrito sobre a imigração açoriana e Josué Guimarães, sobre a alemã. Mas, no que tocava à italiana, havia uma lacuna. Resolveu preenchê-la.

Realidade, não exaltação

Como na infância ele não havia tido contato com essa cultura – a mãe era descendente de portugueses e índios, e o pai, mesmo nascido em Farroupilha, cresceu em Osório –, o escritor conta que estranhou muito os costumes que encontrou ao chegar em Caxias do Sul, e não apenas no tocante ao dialeto.

– Vi coisas que as pessoas não se davam por conta, como a falta de consideração com a mulher e com os velhos – relembra.

Tudo isso foi parar em O Quatrilho e nos livros que completam a trilogia, A Cocanha (2000) e A Babilônia (2006):

– Não é uma literatura de exaltação dos heróis. É para mostrar a realidade. 

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Trilogia ganhou caixa especial nos 140 anos de imigração (2015)

Quando publicou o primeiro volume, acrescenta, teve receio de que as críticas sub-reptícias incomodassem. No entanto, as mulheres que leram lhe deram retorno dizendo que tinham gostado porque mostrava a real situação feminina na cultura da região.

– O que a (personagem) Tia Gema diz é o que muitas mulheres gostariam de dizer – garante.

Já a troca de casais que ocorre na trama surgiu de um caso real, contado por um amigo quando ele falou do projeto do livro.

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Registro das gravações de “O Quatrilho”, quando o escritor fez uma “ponta” como o fotógrafo que aparece na cena final do longa

Matrícula

A estreia de Pozenato nas letras, a coletânea poética Matrícula completou meio século em 2017. No livro, ele está acompanhado de outros grandes nomes da literatura regional: Jayme Paviani, Oscar Bertholdo, Delmino Gritti e Ary Trentin.

Romancista depois dos 40

Embora já tivesse participado da antologia Matrícula, em 1967, e publicado livros de poesia, a transformação em romancista veio na maturidade – estava com 47 anos quando da publicação de O Quatrilho. A escrita do romance levou apenas três meses, e, quando terminou, sentiu uma sensação de vazio causada pela despedida dos personagens:

– Para preenchê-lo, resolvi escrever uma história policial sobre o que via por aí, sobre como a cultura urbana estava se infiltrando na colônia.

Nascia, assim, outra das obras mais conhecidas do autor, O Caso do Martelo – que, aliás, acabou saindo um pouco antes do romance. Como a editora à qual havia apresentado O Quatrilho não lhe dava resposta, Pozenato levou para outra casa editorial a obra policial. Gostaram, e, depois de publicá-la, editaram também o início da trilogia, ambos em 1985.

Seguiram-se vários outros livros, incluindo mais três policiais (estes, segundo o autor, escritos em duas semanas cada). Os mais recentes são uma tradução de Cancioneiro, de Petrarca, em 2015, e Despique, lançado ano passado em parceria com Leonor Bassani.

BACO DE DADOS

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Em 1996, escritor foi a Los Angeles com atores e diretores, para a cerimônia do Oscar




TV, cinema e Oscar

Ao lado de Machado de Assis, o gaúcho Erico Verissimo também sempre foi uma das referências para Pozenato, pelo que ele chama de narrativa cinematográfica. Assim, essa característica acabou se incorporando na sua própria obra, tanto que, na época da publicação de O Quatrilho, o escritor Charles Kiefer, então editor da Mercado Aberto, falou que o livro daria um filme.

Ele estava certo. Poucos meses após o lançamento, a atriz caxiense Ítala Nandi veio passar as férias na cidade, ganhou o romance de presente de um amigo e, após a leitura, bateu na porta de Pozenato (a quem não conhecia) com a sugestão de transformá-lo num longa. Foi ela que levou a obra até o diretor Fábio Barreto, e este procurou o escritor em 1986 com a proposta do filme, que se concretizaria em 1995 – nesse meio tempo, houve a crise do cinema brasileiro, e sua retomada.

Numa ida ao Rio de Janeiro para falar com Antonio Calmon, também envolvido no projeto, Pozenato levou junto dois dos seus romances policiais, O Caso do Martelo e O Caso do Loteamento Clandestino. O primeiro foi para nas mãos de Daniel Filho, que em poucos dias o procurou dizendo que queria adaptar a história para a TV. O telefilme, estrelado por Lima Duarte, foi gravado quase todo em Travessão Carvalho, no interior de Flores da Cunha, e foi ao ar em 1991, com direção de Paulo José.

Em 1996, o filme O Quatrilho – que havia estreado no ano anterior com sucesso estrondoso, traduzido em 300 mil espectadores na primeira semana – foi indicado ao Oscar de Melhor Filme estrangeiro. Não levou a estatueta, o que Pozenato credita ao pouco tempo de divulgação lá fora, mas mesmo assim foi uma grande conquista levar a literatura produzida na Serra para o mundo.

Novos projetos

Atualmente, Pozenato aguarda com expectativa a estreia, em julho, da ópera O Quatrilho, para a qual escreveu o libreto, e o desenrolar das tratativas para a transformação de A Cocanha em filme, anunciada ano passado pelo diretor Luiz Carlos Barreto, e de um outro possível filme nascido dessa parceria. Prefere não contar a quantas anda o projeto, mas garante que tem vários planos. Algum novo livro, talvez?

Ele responde que não gosta de falar do que está em gestação, mas conta que no domingo passado, durante um almoço para comemorar seu 80º aniversário, com a presença das três filhas, dos três netos, da esposa e de amigos, um convidado quis saber o segredo dessa longevidade:

– Eu disse que, se querem chegar aos 80, a receita é ter sempre projetos e afetos.

Receita que ele segue à risca.

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