Impor limites, mas combiná-los antes ao invés de expor que havia limites só após o problema acontecer. Essa filosofia tem servido para Gilvan, 45 anos, e Andréia Menegotto, 35, como forma de evitar que os filhos Pedro Henrique, seis anos, e Antônio, três, tenham reações inesperadas desde o supermercado até a casa da vovó. Da mesma forma, também funciona para evitar que a dupla exagere no tempo que passa em frente à televisão ou ao tablet, de olho em animações e programas infantis.
– A gente tem o que chama de “grilo”, que é o despertador do próprio tablet, que avisa quando passou os 15 ou 20 minutos que eles podem ficar no aparelho. Como já estava combinado que seria assim, eles aceitam numa boa e vão fazer outra coisa – explica a mãe.
O anseio do empresário e da arquiteta que vivem no bairro Bela Vista, em Caxias do Sul, é o mesmo que leva pais e mães a buscar auxílio de especialistas em educação e desenvolvimento infantil nas escolinhas e consultórios: existe infância longe da tecnologia? Se até pouco tempo atrás a apreensão era com a rápida inserção da gurizada no mundo da tecnologia, agora a saturação e as suas implicações parecem ter se tornado o incômodo mais presente. A divulgação, tanto na mídia quanto em publicações científicas, de que o uso excessivo das tecnologias digitais na infância acarreta problemas desde dificuldades de socialização e aprendizado até ansiedade e transtornos de sono e alimentação, faz desta questão uma urgência no mundo contemporâneo. Como destaca a psicóloga Jennifer Domingos, que atende numa clínica no bairro Cinquentenário, a maior busca por atendimento é para crianças cada vez mais novas, com quatro ou cinco anos.
– São diários os casos de pais que me procuram preocupados que seus filhos não saem da frente do tablet ou do celular. Como a inserção no mundo tecnológico ocorre cada vez mais cedo, cuidado e controle são ainda mais necessários e é preciso estar alerta aos sinais, como o desinteresse por outros brinquedos ou em dar atenção à família, além de alterações na alimentação e no sono. Criar regras e estabelecer horários, além de mostrar para as crianças que existem outras formas de se divertir, são um primeiro passo importante – explica a psicóloga.
Jennifer acrescenta que entre os prejuízos para a vida da criança que perde o contato com o mundo externo, além dos citados anteriormente, estão o sedentarismo, o desenvolvimento sexual precoce, a baixa autoestima e a irritação (que pode se manifestar em conduta antissocial e dificuldades em ser contrariada). Outro ponto importante é o exemplo dado pelos pais, que muitas vezes fazem uso excessivo da tecnologia em seu dia a dia, inclusive no ambiente doméstico:
– A criança aprende e copia comportamentos por observação, por isso é importante que os adultos também tomem alguns cuidados para não dar um exemplo negativo. Nos dias atuais é muito fácil perder a noção do tempo em meio aos compromissos com relatórios, mensagens e e-mails profissionais. Por isso mesmo entre os pais é preciso haver regras para o tempo conectado.
Dosar a extensão das atividades profissionais também faz parte das estratégias de Gilvan e Andréia para a criação de Antônio e Pedro Henrique. O pai, engenheiro que administra uma empresa de automação, avalia que os filhos valorizam muito mais um período de atenção total, mesmo que breve, a muitas horas de atenção dividida:
– Mesmo quando a gente chega em casa após trabalho, sempre sobra alguma questão pra resolver. E se tu tentar passar muito tempo junto estando com a cabeça em outras preocupações, as crianças sentem isso e te cobram, ficam bravas. O que a gente procura é ter pelo menos uma hora do dia que seja só para eles, de corpo e alma, pra brincar de lutinha ou colar figurinha no álbum. Basta um momento bem intenso e eles ganham o dia, não exigem mais do que isso.
Hora da brincadeira na escolinha da educadora Vânia Servelin
Quando Sophia estava com quatro anos e já se mostrava uma criança bastante ativa, Viviane Dambros e o marido decidiram que era hora de deixar o apartamento e procurar uma casa, para que a infância da filha não fosse privada do encanto da que ambos tiveram: brincar na rua após a escola, até os pais chamarem para dentro ao anoitecer. Na zona leste de Caxias, encontraram um condomínio que mais lembra uma rua como outra qualquer, porém fechada por um portão. Na casa para onde se mudaram há três anos, Sophia encontrou na vizinhança amigos com quem passa as melhores horas do dia e mal lembra do tablet ou da televisão: a turminha anda de bicicleta, brinca de pega-pega e esconde-esconde, como se fazia numa época cada vez mais distante cronológica e culturalmente.
– A gente sabe que o tablet e o computador também são importantes, mas pensamos principalmente em resgatar o que foi a nossa infância, com valores que consideramos muito importantes. Com essa convivência mais próxima, as crianças aprendem a cuidar umas das outras e passam menos tempo sozinhas. Quando não estão na rua, eles inventam alguma coisa para fazer dentro de casa e a gente está sempre de olho. No momento, a febre são as figurinhas da Copa – conta Viviane, pedagoga e professora da UCS.
Os pais também encontraram na arte uma forma de estimular a criatividade e a sensibilidade da filha, que sempre gostou de ver o pai tocar violão. O investimento, de tempo e financeiro, tem dado retorno. Há três anos frequentando as aulas de musicalização infantil, Sophia já sabe ler partitura e toca as primeiras músicas no teclado, na flauta e no violão.
Professora de Sophia e educadora musical há 20 anos, Esmeralda Frizzo ressalta que o ensino da música, de forma lúdica, é uma ferramenta que vai muito além do ensino da arte em si.
Para a pediatra Mara Ribeiro Mendes, que atende em São Pelegrino, os principais culpados por crianças expostas cada vez mais cedo à tecnologia são os pais e as mães. Na maioria dos casos, um dos dois do casal é responsável por estimular esse uso, o que muitas vezes resulta em discussões em pleno consultório. E o principal motivo é manter as crianças quietas enquanto resolvem seus próprios afazeres.
– Nos último cinco a oito anos, o problema ficou maior. A diferença é que, hoje em dia, são bebês que vêm para a consulta e não podem ser examinados se não tiverem vidrados na tela, assistindo a Galinha Pintadinha. Quanto mais cedo tu ofereces a tecnologia, mais a criança vai querer – diz a médica.
Mara conta que, em congressos recentes dos quais participou, alguns profissionais apontaram semelhanças entre crianças viciadas em tecnologia a autistas, que vivem em um mundo próprio. Quando percebe esta dificuldade de interação com a vida real, a pediatra encaminha tanto os pequenos quanto os adultos para terapeutas especializados, especialmente neuropsicólogos.
– A era digital faz a criança estar de corpo presente, mas com a mente ausente. Isso cedo ou tarde irá atrapalhá-la no convívio, no diálogo. São crianças que mais tarde irão resolver as diferenças como se faz no Facebook, deletando as pessoas ao invés de conversar – aponta.
A pediatra acrescenta que uma razão bastante comum para os pais oferecerem recursos eletrônicos é querer dar aos filhos aquilo que não tiveram na sua infância. Trata-se de outro equívoco.
– A educação é feita no ambiente familiar. Se tu queres dar para o teu filho tudo o que tu não tiveste, às vezes tu erras nisso e só vais ver lá na frente.
Os tópicos abaixo constam no manual “Saúde de Crianças e Adolescentes na Era Digital”, da Sociedade Brasileira de Pediatria, em capítulo voltado para os pais*. A íntegra do documento, onde também há recomendações para médicos e educadores, pode ser acessada em bit.ly/2x3acfK.
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