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Onde o inverno dá
ESPETÁCULO

O frio da Serra define o modo de vida dos
seus habitantes  e encanta os turistas


Texto
Diego Adami
diego.adami@pioneiro.com
Flavia Noal
flavia.noal@rdgaucha.com.br
Marco Matos 
marco.matos@rbstv.com.br


Fotos
Diogo Sallaberry
diogo.sallaberry@pioneiro.com
Lucas Amorelli
lucas.amorelli@pioneiro.com
Felipe Nyland
felipe.nyland@pioneiro.com

São José dos Ausentes, julho de 2000. A imagem do copo com água congelada sobre a mesa ficou gravada na memória de Anápio Donizete Pereira. Era madrugada do dia 14 para o dia 15, e o frio rigoroso daquele sábado gelado fez com que o líquido deixado na cozinha se solidificasse, para surpresa de todos.

– Chegou a -9,8°C dentro de casa. Foi horrível. Nosso lago congelou. Foi uma das noites mais frias que enfrentei na minha vida – lembra o homem, hoje com 42 anos, representante da quinta geração de uma família de origem portuguesa que há 130 anos se instalou aos pés do Monte Negro, no ponto mais alto do Rio Grande do Sul.

Para ele, no entanto, morar em um dos lugares mais gelados do Estado, a aproximadamente 1,4 mil metros de altura em relação ao nível do mar, está longe de ser um sofrimento. A convivência com temperaturas tão baixas, principalmente nos meses de inverno, fez com que Anápio passasse a encarar o frio com outros olhos.

– A gente acaba curtindo. O topo da Serra é um paraíso e, com o frio, parece que o charme é diferente porque tu acabas ficando mais acomodado dentro de casa. Tu tomas um vinho, comes um pinhão, vais pra volta do fogão prosear, tomar um café com leite da fazenda. Se não está muito frio, tu não consegues reunir toda a família. O frio traz mais aconchego – reflete. 

Localizada a 43 quilômetros do Centro, a Fazenda Monte Negro abriu as portas para o turismo rural em abril de 1999. Desde então, a propriedade atrai turistas em busca de sossego, de contato com a natureza e, principalmente, de frio. Mas, conforme Anápio, Ausentes não tem um frio qualquer: 

– Este frio ausentino é um frio diferente. O frio aqui não entra na pele, entra no osso. Tem que ser morador nativo para aguentar o inverno todo. O turista vem, curte dois dias, vai embora. A gente não liga se vai amanhecer -8°C, -5°C. Não faz muita diferença. 

Na Monte Negro, cada um é responsável por uma tarefa. Enquanto Anápio cuida de receber os visitantes, um de seus irmãos, Francisco de Assis Pereira, 40, coordena a lida com os animais. Um trabalho que precisa ser realizado diariamente, faça chuva ou sol, frio ou calor. 

– O dia a dia da gente é acordar de manhã, fazer a ordenha, alimentar as vacas. No inverno, a temperatura é complicada. Tem que ter coragem mesmo. Já aconteceu de ter que descer para o estábulo para fazer a ordenha com -8°C. É um pouco dificultoso, mas a gente gosta. Frio é gostoso. O calor é bem pior do que o frio – garante Francisco.

Nessas horas, o calor dos animais e o camargo, como é conhecido o café com leite recém tirado, ajudam a aquecer o ambiente e o corpo.

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– A teta da vaca, o úbere, é quentinha. Vai te aquecendo com o próprio calor do leite, que sai quentinho do animal. É muito gostoso, tomamos todo dia de manhã – diz Francisco, mostrando o carinho pelos bichos ao chamá-los pelos nomes: Bugia, Búfala, Estrela, Abelha, Andorinha.
– Serviço é o que não falta, e a lida tem que acontecer igual. Se tu pensares duas vezes em sair da cama em dia de frio, tu não sais – completa Anápio. 
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Viração

Alexandre, 44, o primogênito dos irmãos Pereira, cuida do trabalho no campo, incluindo a condução de turistas em cavalgadas e trilhas. Não raro, a tarefa de recolher o gado no pasto é acompanhada por uma densa neblina, que surge inesperadamente durante a jornada. É a popular viração, caracterizada pelo choque térmico entre o ar quente vindo do oceano com as correntes frias do alto da Serra.

– Cai bastante a temperatura e tem de estar sempre com o ponchinho para aquecer. Tu podes sair lá da fazenda, a quatro quilômetros daqui, com sol quente, e chegas aqui na beira do cânion e já está fechado de neblina – reforça Alexandre.

Dependendo da intensidade do fenômeno, o sol desaparece em questão de minutos e fica praticamente impossível enxergar a uma distância de cinco metros. Quando o céu está limpo, sem nuvens ou cerração, a vista do topo do cânion é deslumbrante.

Quem tiver disposição para acordar antes de o dia clarear, tem o privilégio de avistar, da borda da fenda, as luzes de cidades como Araranguá e Sombrio, em Santa Catarina, e Torres, no Rio Grande do Sul (foto). Não é exagero classificar como espetacular o amanhecer no Monte Negro.
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Na sede da propriedade, Maria da Silva Pereira, 63, a matriarca, comanda a cozinha. É sob sua batuta e seu olhar cuidadoso de mãe que são produzidas as delícias que enchem os olhos de quem senta para o café da manhã, o almoço ou o jantar. Pães, bolos, biscoitos, geleias e outros quitutes, como carne de panela e batatas salteadas, vão preenchendo a mesa. O carinho aparece na elaboração de cada prato. Popular na região dos Campos de Cima da Serra, a jila, fruto da família da melancia e do pepino, entra no preparo de um doce digno de repetição. 

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Calor humano

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Rodeada pela família, dona Maria faz um apanhado da história que construiu ao lado do marido, Domingos Pereira, morto em janeiro e carinhosamente apelidado de O Guardião do Monte Negro e O Senhor das Alturas. Atualmente, é praticamente impossível imaginar a vida dos Pereira e sua rotina campeira sem o frio.

– É difícil o ano que não neva. É um orgulho e uma graça, porque é um lugar muito tranquilo. E frio. Aqui é frio demais, mas, na medida do possível, a gente aquece com a lareira, o fogão a lenha. E calor humano também. Da família, dos hóspedes – afirma Maria.

Aos poucos, os mais jovens vão aprendendo o ofício passado de geração em geração. O sobrinho Pablo Domingos Vieira, 18, filho de Antônia Aparecida Pereira Vieira, 45, única filha mulher de Maria e Domingos, ajuda o tio Alexandre nas tarefas.

Embora admita que o frio o incomode, não pretende abandonar a vida no interior para morar em outro lugar.

– A gente gosta também da lida na fazenda, então isso influencia a ficar aqui. Às vezes penso em estudar, fazer uma faculdade, mas penso também que tem que dar sequência na fazenda, seguir a geração, porque, se eu sair daqui, vai que meus primos saiam também? A fazenda vai acabar, e isso não pode morrer – explica.

É um novo ciclo que se inicia e, com ele, a certeza de que o legado de Domingos e seus antepassados permanecerá vivo por muitos anos.







Economia aquecida

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Com aproximadamente 4 mil habitantes e 15 estabelecimentos, entre hotéis e pousadas nas áreas urbana e rural, num total de cerca de 550 leitos, São José dos Ausentes tem atraído cada vez mais visitantes que procuram a cidade por causa da fama de um dos lugares mais frios do Rio Grande do Sul.

– O frio dá uma aquecida no comércio, aquece os empreendimentos ligados ao turismo. Pousadas, hotéis e restaurantes acabam verificando incremento no movimento nos meses mais frios, muito por causa da expectativa de ver a neve. E, mesmo que não tenha uma previsão de neve, as reservas são feitas com muitos meses de antecedência – afirma a secretária de Turismo, Cultura e Meio Ambiente de Ausentes, Aline Maria Trindade Ramos.

Na carona das baixas temperaturas, empresários e empreendedores acabam aproveitando os atrativos de turismo de aventura, como rapel, montanhismo, escalada, trekking, ciclismo e caminhadas, além das belezas naturais, como cânions e formações geológicas.

Nos termômetros

  • O Instituto Nacional de Meteorologia possui uma Estação Meteorológica Automática em São José dos Ausentes, que entrou em operação em 26 de outubro de 2006.
  • A menor temperatura mínima já registrada pelo equipamento foi de -5,5°C em 7 de junho de 2012, entre as 7h e 8h.  
  • A maior temperatura máxima já verificada na estação de São José dos Ausentes foi de 31,3°C, em 8 de dezembro de 2014, entre as 15h e 16h.  
  • Em 2018, a menor temperatura mínima registrada foi de -2,7°C, em 16 de junho, entre as 7h e 8h.

O Monte Negro

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O ponto mais alto do Monte Negro (o pico) fica a 1.403 metros de altitude em relação ao nível do mar. 

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O Monte Negro em si tem 80 metros de altura em relação ao campo. 






Uma apaixonada pelo frio

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– Particularmente, me encanta o frio. Eu me sinto muito bem. Além de ser uma questão física, de tu respirares melhor, isso já vem arraigado da cultura dos nossos antepassados, de sentar todo mundo ao redor do fogão, fazer os planos para o dia seguinte. Uma manhã que amanhece branca de geada é linda. A viração da costa, a cerração, tem uma beleza encantadora, uma magia. Além das nossas belezas naturais, o frio é um detalhe a mais, a cereja do bolo.

A declaração é de Elenara Velho, que aos 42 anos é uma apaixonada pelo frio. Condutora de turismo rural em São José dos Ausentes, onde vive há cinco anos, a bonjesuense só vê aspectos positivos nas baixas temperaturas, mesmo que os dias e noites gelados determinem hábitos pouco prováveis em lugares de clima quente:

– Quando tu viajas para lugares quentes e tu vês todo mundo tarde da noite proseando em barzinhos abertos, a galera nas praças, a gente não tem muito isso. Entardeceu, todo mundo está na sua casa, aproveitando o fogão a lenha. O pessoal se reúne, mas a gente fica mais fechado. Não fica tanto ao ar livre. Nossas comidas são comidas fortes. É o puchero (espécie de cozido no qual são utilizadas carnes, legumes e temperos variados), o carreteiro, uma carne assada na brasa, que tu já estás ali aproveitando o calorzinho, um vinho pra acompanhar. Pra se vestir, acho que no inverno a gente é mais bonito.   

Assim, o fogão a lenha se transforma em um ponto de convívio e partilha:

– É uma coisa mágica. Tu fazes um fogo e já vem todo mundo, fica ao redor, abre um vinho, coloca um pinhão na chapa. Além de aquecer o ambiente de forma natural, aquece a alma, certamente. Nada melhor depois de um dia cansativo de trabalho.

Nem mesmo na hora de deixar o conforto de casa e sair para o trabalho naqueles dias de tempo ruim e temperatura próxima de 0°C ela reclama. Por trabalhar com grupos diferentes a cada dia, Elenara acaba não tendo rotina, o que faz com que esteja em um lugar diferente a cada dia. Além dos turistas, ela presta trabalho a fazendas da região. E o dever no campo não pode esperar. Chapéu na cabeça, faca na bota, encilha arrumada, um até logo ao gato Negão e aos cachorros Mandrake e Duke. É hora de partir para a lida no lombo da égua Candy.

– O que me faz morar em Ausentes é eu poder enxergar todos os dias a minha linha do horizonte verde e não ter rotina. Um dia estou num lugar, outro dia estou em outro. Trabalho com vários grupos, com passeios equestres e trilhas.
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e #doleitorpio.

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Estação de sabores

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Julieta, o filho Vicente e a nora Simone saboreiam o risoto preparado por ele
Quando se trata de gastronomia, a Serra é primorosa. Um cenário que se completa quando se acrescenta à receita o clima de inverno e o acolhimento familiar. Na casa dos Perini, no bairro Cruzeiro, em Caxias do Sul, as refeições ganham sabor especial no inverno. Na estação mais fria do ano, delícias típicas como o pinhão viram estrela de receitas como o risoto de pinhão com carne de sol (confira a receita abaixo), preparadas pelo chef Vicente Perini Filho, 52.

– Pinhão a gente fazia na chapa, mas agora ele deixou o prato mais chique. E ficou bom! – elogia a mãe, Julieta, 83, lembrando do tempo em que a família se reunia em volta do fogão a lenha para se aquecer e saborear a semente de araucária assada na chapa.

A receita pode ser mais incrementada, mas o aconchego continua o mesmo. O frio acalenta e propicia a união em torno da mesa. É época de pensar em pratos quentes, aquela comida que acolhe, abraça e aquece. Um prato de comida é um gesto de amor.

– Quando cozinho, eu sempre digo que, se tu não tiveres amor no que tu estás fazendo, tu não vais chegar no resultado que tu queres. Quando tu fazes uma comida, seja quem fizer e se fica boa ou ruim, está te trazendo um aconchego. Tu vais fazer aquele prato com carinho para outra pessoa comer – reflete Vicente.

A psicóloga Simone De Antoni Perini, a mulher do cozinheiro, brinca:

– Tenho uma fama com os amigos que meu apelido é Magali. Eu gosto de comer de tudo. No meio do período lá do trabalho, a gente já pensa: “Bah, tem que passar no mercado, o que que eu vou comprar?, o que que a gente vai jantar hoje?” É muito da nossa região também essa coisa de tu já programares o que tu vais jantar, ou tu estares almoçando e já programar o que vais jantar.

Risoto de pinhão com carne de sol 

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Serve 6 pessoas
Ingredientes:
  • 250g de pinhão cozido em água e descascado
  • 250g de carne de sol dessalgada, cozida e desfiada
  • 500g de arroz arbóreo
  • 1 taça (200 ml) de vinho branco seco
  • 2l de caldo de legumes
  • 120g de manteiga
  • 1 cebola média picada
  • queijo parmesão ralado a gosto
  • sal e pimenta a gosto
  • z salsa picada a gosto
  • z 1 alho poró para decorar
  • azeite de oliva

    Para o caldo: 
  • 1 alho poró
  • 2 cenouras
  • 1 dente de alho
  • 1 bouquet garni (amarrado de salsão, louro, tomilho e salsinha)
  • 1 cebola
  • 2l de água
  • sal a gosto
Modo de preparo:
  • Faça o caldo de legumes fervendo todos os ingredientes por cerca de 30 minutos. 
  • Para carne de sol, deixe-a de molho um dia antes para dessalgar. Durante o processo, troque a água a cada seis horas, aproximadamente. Cozinhe na panela de pressão por 30 minutos. Deixe esfriar um pouco e desfie.
  • Prepare o risoto. Em uma panela, aqueça metade da manteiga e um fio de azeite de oliva. Junte a cebola, deixe murchar e incorpore o arroz. Mexa bem e coloque o vinho. Continue mexendo em fogo alto, até que o vinho evapore quase por completo.
  • Acrescente a carne de sol. Com uma concha, adicione o caldo de legumes aos poucos, acrescentando mais à medida que o arroz for secando. Quando o arroz estiver quase no ponto (al dente), acrescente os pinhões, cozinhando até o arroz ficar no ponto. Desligue o fogo e incorpore o parmesão e o restante da manteiga. Adicione salsa picada.
  • Em uma frigideira com óleo bem quente, frite o alho poró cortado em rodelas para que fiquem crocantes. Salpique sobre o risoto e sirva bem quente.






Passatempo solidário

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Regina usa o tempo livre para fazer peças em tricô para a neta, Eduada, e para doação

Ainda que o frio desperte paixões, é certo que ele não é uma unanimidade. Mesmo assim, quem mora na Serra sabe: as temperaturas baixas chegam e é preciso estar preparado. A aposentada Regina Dalla Rosa, 63 anos, aproveita o tempo livre para tricotar.

A sala de casa dela, em Caxias, é quase toda ocupada pelo artesanato, e a tricoteira aproveita doação de fios para fazer mantas, gorros, polainas, blusas e até casacos.

O passatempo parece simples para quem aprendeu ainda na juventude a traçar pontos com o auxílio de duas agulhas e o que tivesse de fio em casa. As peças, que resultam do conhecimento adquirido com a mãe, em revistas especializadas e na TV, têm destinos diversos. 

Um deles é aquecer a neta da aposentada. Na manhã fria do último dia 15, quando o dia amanheceu com dois graus em Caxias, a pequena Eduarda dos Santos, de sete anos, usava colete e gorro feitos pela avó. Mas as peças de Regina não ficam apenas em família.

– Eu gosto de fazer tricô para as pessoas ficarem mais quentes, se protegerem de frio. Faço tocas, faço casaquinho para doar lá no asilo. Todo mundo fica quente.

É a solidariedade embelezando o inverno na Serra.






Lançamento

O grupo Yangos e os cantores Rafa Gubert e Paola Dellazzeri animaram o lançamento do De Manta e Cuia, na noite de quinta-feira, em Caxias do Sul. Eles são os protagonistas do clipe da música-tema do projeto, uma ode a tudo que é característico da estação, como a enogastronomia, a geada que pinta de branco a paisagem e o aconchego.

De Manta e Cuia é uma iniciativa multimídia dos veículos da RBS na Serra. Além do Pioneiro, participam a RBS TV Caxias e a Rádio Gaúcha Serra.

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