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Da imaginação
ao pavor

Casos de crianças que testemunham aparições fantasmagóricas dentro de casa desafiam a compreensão dos pais


Texto
Adriano Duarte
adriano.duarte@pioneiro.com
Aline Ecker
aline.ecker@pioneiro.com

Fotos
Felipe Nyland
felipe.nyland@pioneiro.com

Que crédito você daria para os casos de crianças de dois, três anos que testemunham supostas aparições dentro de casa ou na rua e até mesmo conversam com amigos nas quais os adultos sabidos e descrentes não enxergam? Essas situações exploradas de forma espetacular em filmes de terror como o recente Hereditário, sucesso de bilheteria ao arrecadar R$ 105 milhões apenas nas primeiras semanas de exibição nos EUA, pela franquia Invocação do Mal ou no clássico O Iluminado encontram eco na vida real.

Na versão de homens e mulheres maduros, as narrativas sobre assombrações geralmente são moldadas pelo cenário da velha casa abandonada e pelo temor de uma porta entreaberta, algo muito parecido com o que cineastas tentam transmitir por meio de truques cinematográficos. As crianças, por sua vez, trazem outra perspectiva sobre a convivência com o desconhecido, o que é explicado de forma diferente por religiosos e psicanalistas — leia mais sobre isso abaixo. Se os céticos consideram essa situação como algo passageiro e normal para o crescimento da criança, há quem a encare como algo do sobrenatural. Famílias que preferiram não se identificar devido ao preconceito que cerca o tema contam histórias de arrepiar.

Distante das teorias de religiosos e psicanalistas, uma mãe de 33 anos prefere acreditar que a filha de quase dois anos passa por um momento de imaginação fértil. Ela afirma ter vivido, ao lado do marido, uma experiência assustadora desde que a pequena passou a enxergar um menino no apartamento da família. O que para muitos pode ser visto como bobagem ou amigo imaginário, para o casal se tornou quase um drama, pois a suposta aparição trouxe momentos de pavor.

— O medo ocorria quando ela olhava para a porta do nosso quarto, que estava aberta, mas não havia nada. Mesmo com a luz acesa, ela enxergava esse menino. Não explicava o que via, dizia apenas que era um menino — conta a mulher.

A tal aparição sempre se manifestava à noite, por volta das 20h30min. Na primeira vez, o casal assistia TV e menina apoiou-se no encosto do sofá, de onde visualizou o menino no sentido contrário da sala. Depois, a experiência se repetiu por 10 dias seguidos. O guri misterioso estava sempre posicionado na direção da porta do quarto do casal.

— Aconteceu uma vez de eu estar com ela na cama, e ela via o menino, mas eu não via nada. Eu ficava muita assustada e ela também. Meu marido nunca foi de sentir nada, mas também ficou com medo quando isso ocorreu. Ela dizia não para esse menino, e nós perguntávamos o que era, e ela respondia que era o menino.

O casal decidiu procurar o aconselhamento de uma amiga religiosa. A mulher recomendou que a menina fosse levada a um padre, encontro que ocorreu há poucos dias.

— Procuramos a igreja e fomos recebidos por dois padres, que nos aconselharam a mudar o foco para outras coisas sempre que ela mencionasse o amigo. Melhorou. Ela ainda fala no amigo, mas tentamos ignorar, cantar uma música. Não sei o que pode ter sido. Não sei é a imaginação dela, não sei se é algo a mais.

Na igreja, a mãe soube que muitas mães pedem a ajuda de padres por causa dessas visões dos filhos:

— Começamos a rezar todos os dias e as coisas acalmaram.





Rostos conhecidos e estranhos

Mobirise
Mobirise

Outra família passou por um momento um pouco diferente, mas também assustador. Nicole* embalava o filho Davi, de dois anos, para dormir. Em um certo momento, o menino começou a falar do avô materno, que havia morrido 18 meses antes. Ou seja: eles não se conheceram pessoalmente. A mulher achou estranho e perguntou: "qual vô?". O guri respondeu: "o vô Beto". Porém, o estranho é que ninguém da família havia falado para Davi que o pai de Nicole era conhecido como Beto:

— Falávamos sobre ele para o Davi, mas sempre chamando de "vô". Nunca falamos Beto, não sei como ele sabia.

Outro fato que intriga a família é que o menino, hoje com cinco anos, tem o costume de comer só o miolo do pão e do bolo. Nicole conta que o pai dela fazia isso:

— Meu pai retirava as cascas e amassava os miolos, apertando com a mão. Davi fazia o mesmo quando tinha um aninho. Detalhe: ele nunca viu esse comportamento em nenhum de nós, porque a única pessoa da nossa família que tinha esse hábito era meu pai.

Uma outra jovem conta que na família dela há várias histórias que até hoje deixam todos arrepiados:

— Minha prima, na época com seis anos, contava que na sala de aula ninguém sentava atrás da dela, mas alguém sempre puxava seu cabelo. Quando ela olhava, via crianças que a chamavam pra brincar.

As aparições de crianças e vultos assustavam a menina e, por isso, a família procurou explicação com religiosos.

— Fomos criados frequentando a Igreja Católica. Ainda não sei se acredito em reencarnação e vida após a morte, mas sei que ela realmente via crianças que eu não conseguia ver. Por um bom tempo, ela não ficava em casa sozinha e, se ficasse, as luzes tinham que estar acessas. Levamos elas para a igreja, em centros espíritas. Não sei o que aconteceu, mas hoje ela não fala mais disso, não vê mais nada, apenas em sonhos — conta a parente da menina.


Casos não ocorrem somente com crianças 

Mobirise
Não são somente crianças que passam ou já passaram por casos envolvendo visões e percepções do desconhecido. Marina tem 22 anos e diz conviver com a mediunidade desde pequena. Na época, sempre ouviu que ela tinha amigos imaginários. Na adolescência, porém, as aparições ficaram mais apavorantes.

— Eu e amigos estávamos em uma casa e, de repente, comecei a me sentir mal. Estava sentada em um sofá e vi uma mancha preta no chão. Neste momento, vi um homem ajoelhado, queimado, com as mãos pra trás. Saí correndo e fui conversar com o dono da casa para tentar entender. Ele me disse, há um tempo, um fogo havia sido queimado ali — conta.

Mas não foi somente esta experiência que apavorou a jovem. Com medo, Marina evitava até mesmo se olhar no espelho:

— Pode parecer bobagem, mas odiava me olhar no espelho porque sempre via alguém passando atrás de mim. Teve uma época em que pensei que ia enlouquecer, mas consegui seguir em frente.

Sabrina, com 37 anos hoje, é outra mulher que convive com esse tipo de situação desde pequena. Ela segue a linha espírita na doutrina umbandista e, para ela, o espiritismo sempre lhe proporcionou as respostas que não encontrava no catolicismo ou na medicina. Ela afirma que sempre teve uma mediunidade muito aberta, principalmente na infância.

— As pessoas não estão acostumadas a ver espíritos. Vejo desde muito pequena, sempre aceitei muito bem. Claro que às vezes tu te assusta. Quando eu era criança, era mais aberta, porque acho que somos mais puros.
* os nomes completos dos entrevistados serão preservados.


Espírito, demônio, amigo imaginário ou alucinação?

Os casos que assustam — ou não — crianças e adultos têm explicações diversas (ou simplesmente não têm explicação!), seja pela religião, medicina ou física. Confira algumas do espiritismo, catolicismo e da psicanálise:

Espírita

Interpretadas por muitas pessoas como ilusão, mentira, coincidência, fantasia e até como esquizofrenia, os relatos de aparições também são explicados como mediunidade, que é a capacidade de ver e ouvir espíritos ou realizar fenômenos paranormais por meio de agentes externos. Há pessoas que acreditam que as crianças estejam mais abertas ao espiritual e, por isso, consigam ver quem já partiu.

—Até os sete anos de idade, o espírito encontra-se em fase de adaptação para a nova existência. Ainda não existe uma integração perfeita entre ele e a matéria orgânica, fato que lhe permite emancipar-se e, eventualmente, ver vultos desencarnados. Isso nos permite deduzir que os amigos imaginários da crianças só o são na aparência. Eles não são imaginários, mas apenas invisíveis
— diz o espírita Carlos Iberê Pozza, 62 anos, que ensina o que fazer em casos de visões estranhas por crianças:

—É possível que um espírito possa estar ligado à vida passada de uma criança. A criança que tem medo pode ter passado por isso em outra vida. Para ajudar, temos que orar muito e conversar. Devemos orientar e jamais criticar ou debochar.

Para Pozza, demônios ou espíritos que ainda carecem de evolução estão entre nós e podem ser vistos eventualmente por algumas pessoas.

— Quando falamos em possessão, por exemplo, logo pensamos em filmes como O Exorcista. Na realidade, a possessão existe e é comum, mas devemos eliminar Hollywood desta visão. No cotidiano, estamos cercados por pessoas boas e más, que nos influenciam positiva ou negativamente. A obsessão e possessão são isso: também estamos cercados por espíritos desencarnados que, de forma mais contundente, nos influenciam.

Católica

A doutrina católica acredita que quando as pessoas morrem, as suas almas deixam o mundo físico e vão para junto de Deus, no céu ou no purgatório, ou para longe, em um estado espiritual que chamamos de inferno.

— Céu, inferno e purgatório não são lugares fora desse mundo, são estados espirituais nos quais não existe espaço físico e nem tempo cronológico — explica o padre Eleandro Teles, pároco da igreja de Lourdes.

Para o sacerdote, as almas dos mortos estão separadas do mundo físico, estão em uma outra dimensão. Portanto, na doutrina cristã não existe a possibilidade de existir um contato direto com os espíritos das pessoas falecidas. Também não há possibilidade de ocorrer essas visões ou de ouvir ou falar com quem já morreu. O único contato com quem já partiu é por meio da oração.

— No caso de crianças, adolescentes ou adultos que relatam visões de vultos e/ou escutam vozes que acreditam ser espíritos, a igreja primeiro procura explicações científicas, por meio da psicologia ou da parapsicologia.

Acreditamos que esses fenômenos têm explicações físicas, nunca sobrenatural.

Teles explica que, geralmente, são casos de transtorno, trauma, medo ou ansiedade. Então, são situações que podem ser resolvidas com terapia e com acompanhamento psicológico ou psiquiátrico.

— A Igreja Católica acredita na existência de anjos e demônios. Precisamos deixar bem claro que eles não são espíritos de pessoas que já morreram. São espíritos criados por Deus, mas com uma natureza diferente da humana. A Bíblia relata que os anjos podem se manifestar aos homens de forma visível. Porém, em todos esses casos, os anjos só se manifestam quando trazem uma mensagem divina e não fazem isso com qualquer pessoa.

O religioso diz que também existem relatos de manifestações de demônios, geralmente descritos como aparições horrendas. No caso de possessão demoníaca, que seriam casos raríssimos, a igreja faz análise para comprovar que não se trata de uma causa física. Caso não tenha indícios de problemas mentais ou transtornos, uma comissão de teólogos e padres passa a analisar o conteúdo teológico para verificar se é realmente uma possessão demoníaca. Só então é aberto um ritual de exorcismo, que precisa de autorização do bispo local e só é feito por um padre especialista.

Psicanálise

Para Margareth Kuhn Martta, psicóloga e psicanalista, membro da Escola de Estudos Psicanalíticos e doutora em Educação, o amigo imaginário faz parte do processo da constituição psíquica da criança. Segundo ela, a criança pode fantasiar que tem um amigo para resolver muitas questões como, por exemplo, usá-lo para se contrapor aos pais.

— O amigo pode ser mal criado, bater no irmãozinho, pode dizer e fazer coisas sem que haja o risco de perder o amor dos pais. A criança pode, também, fantasiar um personagem assustador, como um monstro que ela possa temer, como suplência a um pai muito passivo, que não dá limites. Podendo, inclusive, fantasiar que os vê, não sendo isto uma mentira, algo sobrenatural e nem uma patologia.

Margareth afirma que isto faz parte do processo de construção da identidade da meninada.

— O amigo imaginário ocorre, geralmente, entre os três e seis anos. Precisamos nos preocupar quando a criança vive isto de forma tão intensa, quando atrapalha o seu cotidiano e inibe os seus relacionamentos. O brincar de faz de conta é saudável e necessário, ajuda a construir o pensamento simbólico.

A especialista vai mais além sobre as visões na infância:

— Sempre tendo a clareza de que cada criança tem a sua singularidade, uma hipótese possível seria uma criança com sintomas fóbicos (com medos) e tomada por muita ansiedade. Temos também a questão da sugestão, que pode acontecer com crianças maiores ou até adultos: um filme, uma história que impressiona, um colega que afirma existirem espíritos e já ter visto um.

Dependendo de como os pais reagem, a criança pode sim usar isto para chamar atenção, às vezes, inconscientemente.

Por outro lado, adultos que continuam tendo visões desde a infância evidencia que algo não está bem do ponto de vista psicopatológico.

— Essas são alterações das funções mentais: alucinação é uma alteração na senso percepção e o delírio é uma alteração do pensamento. Essas alterações podem indicar uma patologia mental — explica.


Arte para sentir medo

Será a vida real que inspira os filmes de terror ou os filmes de terror que inspiram a vida real? Cristian Verardi, ator, diretor e membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, vê o sobrenatural como parte da narrativa humana desde que o homem começou a refletir sobre sua existência.

— Fantasmas, demônios e outros seres fantásticos estão presentes desde o surgimento das primeiras narrativas orais, evoluindo para o teatro, a literatura, as novelas radiofônicas e, por fim, o cinema. Cada época explorou o tema conforme a linguagem artística em voga. Creio que o combustível desta fascinação seja o medo primordial do desconhecido, e quando esse medo floresce num ambiente familiar, numa situação cotidiana, ele é mais intenso pois gera a sensação de que poderia acontecer com qualquer um _ diz Verardi.

A criança que teme o fantasma embaixo da cama, por exemplo, é matéria-prima para o cinema, conforme o cineasta.

— Costumo dizer que encarar a morte é uma forma de se sentir vivo. Por meio do cinema de horror, o espectador consegue vivenciar situações limites, mas sentindo-se protegido, pois o horror se encontra do outro lado da tela. Sendo assim, acho que o fascínio pelo cinema de horror vem pela possibilidade do público lidar de forma saudável com o medo _ teoriza Verardi.

Confira filmes de assombrações baseados em casos supostamente verdadeiros.
Alguns estão disponíveis nos serviços de streaming:

O Exorcista (1973)

No filme, vemos uma adolescente possuída pelo demônio. Na vida real, a história foi baseada num livro sobre um guri de 14 anos atormentado pelo capeta e o processo de exorcismo liderado por um padre jesuíta em 1949. 

The Amityville Horror (1979)

Conta a história de uma família que enfrenta um pavor na residência em Amityville, em Nova Iorque. Anos antes, a casa havia sido palco de uma tragédia familiar: em novembro de 1974, Ronald DeFeo Jr matou toda a família a tiros. Na polícia, afirmou que ouvia vozes dentro da casa onde residia e por isso foi forçado a cometer os crimes. Tempos depois, a família mudou-se para a casa e relatou aparições de demônios e vozes malignas. 

Exorcismo de Emily Rose (2005)

Retrata o exorcismo de Anneliese Michel, que ocorreu em 1976 na Alemanha e levou a jovem à morte. Supostamente, Anneliese havia sido possuída por seis demônios.

Invocação do Mal (2013)

Ed e Lorraine Warren foram investigadores de fenômenos paranormais que se tornaram famosos no mundo. O filme mostra uma das apurações em que se eles se envolveram em 1970, quando decidiram decifrar os fenômenos que atormentavam uma família que recém havia se mudado para uma antiga fazenda nos EUA.

Annabelle (2014)

A boneca Annabelle existiu na vida real e pertencia a uma estudante de enfermagem. Os Warren investigaram o caso e constataram que o brinquedo seria possuído por um demônio. A boneca está até hoje guardada no museu do casal, que também reúne várias relíquias de assombrações.

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