Caxias do Sul, 1973: os edifícios Dona Ercília (E), Guadalupe (D) e Parque do Sol (subindo, ao fundo), os três prédios mais famosos construídos pelo engenheiro Hugo Grazziotin, morador do último andar do Guadalupe.
Detalhe da foto: a sombra do Caixa de Fósforo no chafariz
Quando mudou-se para o Edifício Minghelli, na esquina das ruas Sinimbu e Marquês do Herval, a jornalista Rachel Zilio, 38 anos, buscava não apenas localização privilegiada e facilidades de transporte. Fã de prédios antigos, procurava um local que permitisse, mais do que viver, conviver. Desde 2005, ano em que passou a ocupar o apartamento 61, Rachel vai para o trabalho a pé, não depende de transporte na hora de ir ao mercado, banco, farmácia, lojas, restaurantes, cafés. Conhece vizinhos, taxistas e comerciantes do entorno, tem tudo praticamente na porta, além da Praça Dante Alighieri como “quintal”.
– Quando botei o pé no apartamento, disse: é aqui!
Maçanetas autênticas dos anos 1950, parquet, lajotas, pastilhas e azulejos genuínos, peças amplas, elevador original, com grade pantográfica e revestimento em madeira nobre, tudo deixa explícito a relevância histórica e arquitetônica do edifício inaugurado há exatos 60 anos, em 1958. Tudo que também seduziu Rachel na hora de locar o imóvel. Mas foi quando fez amizade com a antiga vizinha de porta, uma senhora de nome Jandira, que a jornalista conheceu mais sobre a origem do Minghelli:
– Foi ela que me contou sobre o incêndio – diz.
Era a manhã de 23 de novembro de 1952, um domingo, quando a missa da Catedral Diocesana era programa obrigatório na rotina das famílias e os flertes na praça, a diversão dos jovens pós-bênção final do padre. Há 65 anos, porém, nada disso ocorreu. O que se viu foram enormes labaredas, sirenes, caminhões de bombeiros, gritaria e gente pasma com o cenário, correndo de um lado para outro. Uma explosão nos fundos da antiga Ferragem Caxiense – localizada na Rua Sinimbu, defronte ao Eberle – consumiu parte do prédio de alvenaria, um casarão de dois pavimentos em madeira ao lado, onde funcionava o curso de desenho da metalúrgica, e a antiga Casa Minghelli, comércio de tecidos e fazendas situado na esquina com a Marquês.
Afora o pânico, o sinistro rendeu ainda uma das imagens mais conhecidas do fotógrafo Mauro De Blanco: “O Inferno de Dante”. Em meio ao caos, De Blanco (1924-2010) enquadrou o busto de Dante Alighieri em primeiro plano, como que a testemunhar o desespero da população e as chamas atingindo a Casa Minghelli.
A Praça Dante Alighieri em 1960, com os novíssimos edifícios Condominío Galeria Auto João Muratore (Caixa de Fósforo, à esquerda) e Minghelli (à direita)
Do velho casarão de madeira, nada sobrou, apenas um terreno vazio à espera de uma nova construção. Ela começou a tomar forma em 1956 e foi entregue dois anos depois, traduzindo-se no primeiro prédio de modernos apartamentos residenciais do entorno da praça – e levando, lógico, o sobrenome da família proprietária.
Por todas essas histórias, o Edifício Minghelli é um dos próximos a serem visitados pelos integrantes da comunidade virtual Prédios de Caxias do Sul, com perfis no Facebook e Instagram. Desde 27 de janeiro de 2017, quando a primeira postagem foi ao ar, a equipe formada pelas arquitetas Clarissa Zanatta e Taís Cervelin e pelo designer Tiago Fiamenghi, com a colaboração dos fotógrafos Gustavo Juber e William Cabral, tem ido a campo em busca do que se esconde por trás de uma Caxias cada vez mais vertical.
Além de resgatar as histórias, a engenharia e as peculiaridades típicas de cada edifício e sua época, todo esse trabalho dialoga com o que a reportagem das páginas seguintes quer mostrar: morar em um prédio é muito mais do que habitá-lo.
Do terraço do Edifício Solaris, na esquina da Rua Dr. Montaury com a Av. Júlio de Castilhos, seu Romeu Rossi, 87 anos, observa a cidade. Avista o Edifício Satélite, popularmente conhecido como o prédio do Banco do Brasil, do qual foi gerente ainda quando a primeira sede do BB localizava-se na esquina da Montaury com a Sinimbu (atual Palácio da Polícia).
Viu o gigante localizado do outro lado da praça subir, a partir de 1971, e ser inaugurado, em 7 de março de 1974. Com 17 pavimentos, incluindo subsolo, o Satélite passou a ser o mais alto do trecho da Rua Marquês do Herval, entre a Sinimbu e a Av. Júlio de Castilhos, posto ocupado até então pelo Edifício Minghelli.
Mas é do Solaris, ou melhor, do Condomínio Edifício do Banco Nacional do Comércio, que iremos falar.
– O nome era muito comprido. Então, numa reunião de condomínio, alguém sugeriu Solaris. É o nome fantasia, mas que acabou ficando – conta seu Romeu, que chegou ao prédio em 1973, um ano após a construção ficar pronta.
Na época, a família morava no Exposição, mas foi “obrigada” a ir para o Centro.
– Não era permitido alugar os apartamentos. Era só para proprietários, daí viemos. E ficamos.
Construído entre 1968 e 1972, o edifício pôs fim a uma das mais belas edificações lindeiras à Praça Dante. À época, a direção do Banco Nacional do Comércio optou pela demolição e construção de um prédio de 17 pavimentos, englobando térreo, sobreloja e 15 apartamentos, um por andar. A construtora Sulenge foi contratada, e um grupo de 10 investidores possibilitou a construção (cada um recebeu um apartamento). Após o término das obras, o banco ocupou o subsolo, térreo e sobreloja por cinco anos – atualmente, essas dependências pertencem a um particular.
Assim como a maioria dos edifícios mais antigos do Centro, o Solaris não tem vaga de garagem. Teria, mas o acesso de carros pela Júlio, conforme seu Romeu, não foi permitido pela prefeitura.
– Eles já tinham a ideia de avançar um calçadão pela avenida, 100 metros antes, 100 metros depois da praça. Daí sugeriram a opção de uma garagem pela Dr. Montaury, mas que permitiria vagas para apenas oito carros. Argumentamos: “ou é para todos, ou nenhum”.
Assim foi, e seu Romeu não vê problema algum em deixar o carro na Garagem Michelin, a poucos metros dali. As facilidades de ter tudo na porta de casa, aliás, é o que faz o aposentado e a esposa, dona Irma, nem cogitarem sair dali. Síndico do prédio há 20 anos, conhece tudo e todos, não só do condomínio, mas do Centro e de boa parte da cidade. Tanto que histórias não faltam.
Sob o pergolado de concreto do terraço e avistando a passarela que liga o prédio do Banco do Brasil ao Minghelli, recorda de um episódio dos anos 1970.
– Quando o prédio do Banco do Brasil subiu, autorizaram uma escada de emergência entre os dois, no caso de incêndio. Eu trabalhava no banco e o Ottoni Minghelli (empresário e ex-presidente da antiga Associação Comercial de Caxias do Sul) disse: “se acontecer alguma coisa no meu prédio, eu pulo pro teu”.
Falando em incêndios, Vera Vanin testemunhou dois, a partir das janelas do amplo apartamento localizado no 15° andar do Edifício Dona Ercília, na esquina em frente.
– “Peguei” o do Ópera (1994) e o da Câmara de Vereadores (junto à prefeitura, em 1992) – recorda a advogada e ex-primeira dama de Caxias do Sul.
Vera mora no apartamento há 40 anos, desde 1978, mas já frequentava-o desde o início dos anos 1970, quando o imóvel era habitado pela família do ex-prefeito Mário Bernardino Ramos – o marido de Vera, Mario David Vanin (in memoriam), foi o vice de Ramos entre 1971 e 1975.
Mas é o elevador de veículos que faz a fama do prédio e atiça a curiosidade de 99,9% dos caxienses. Entregue em 1967, o Dona Ercília foi o primeiro edifício residencial do Brasil a dispor do sistema, até hoje um marco da cidade, do Estado e do país. A ideia foi do engenheiro e construtor Hugo Grazziotin, 92 anos, responsável por alguns dos mais emblemáticos prédios de Caxias, como o Parque do Sol, a Garagem Alfa e a antiga sede da Brasdiesel. Impossibilitado de avançar no subsolo, devido ao terreno rochoso e a uma nascente, Grazziotin resolveu inverter o processo.
– Não dava para fazer um prédio daquele padrão sem vagas de garagem. Então, em vez de descer, nós fizemos os carros subirem– lembra, detalhando também alguns percalços da obra.
Inicialmente, a empresa responsável argumentou que só poderia fazer o elevador se a caixa para o veículo fosse aumentada. O engenheiro não aceitou. Como a tecnologia não existia no Brasil, Grazziotin solicitou a Atlas Elevadores que buscasse a solução no Exterior: um sistema de roletes, com dois em cada roda, para fixar o carro – posteriormente substituído.
Toda essa modernidade ganhou holofotes em nível nacional em 1983, quando o estilista e então apresentador do TV Mulher Clodovil Hernandez passou pela cidade. Jurado do concurso que elegeria as soberanas da Festa da Uva de 1984, Clodovil foi convidado para almoçar no apartamento de Vera e Mario Vanin, então o presidente da festa.
– Ele ficou tão impressionado que, num dos programas de tevê, falou que tinha conhecido Caxias do Sul e andado numa coisa inacreditável: um elevador de carros que deixava as pessoas dentro do apartamento – recorda Vera.
O Edifício Dona Ercília foi um dos tantos percorridos também pela equipe da comunidade virtual Prédios de Caxias do Sul. A visita foi intermediada recentemente pelo filho de seu Hugo, Ricardo Grazziotin, que mora com a esposa, Isis, no outro apartamento do último andar.
Síndica Rosa Maria Pizzinato mora no “redondinho” há 30 anos
– Foi para disfarçar a parte das esquadrias, que ficavam um pouco para fora da parede por causa do formato redondo.
Outra curiosidade diz respeito a um antigo apelido, lembrado por ex-moradores, como o arquiteto Fernando Machado:
– Era o tubo de spray, pelo formato e pela “tampinha” no topo.
Apesar de já fazer parte do cenário urbano há mais de 40 anos, o Antares segue uma incógnita para muitas pessoas.
– Todo mundo tem curiosidade em entrar nesse prédio – conclui Rosa.
Entre tantos antigos curiosos, o autor desta reportagem, que mora lá desde 2010. Dica: se o elevador estiver em manutenção e você sofrer de labirintite, jamais desça as escadas em espiral correndo...
Síndico do Condomínio Galeria Auto João Muratore há quatro anos, o canadense Bryan Harms, 62, trabalha desde 2014 para que o famoso “Caixa de Fósforo” volte a ter fachada, acabamentos e instalações em harmonia com a história do prédio, dotado de 15 andares e inaugurado em 1962. Mas Bryan e a arquiteta Roberta Rech, que presta assessoria técnica e supervisiona as obras, querem muito mais. O primeiro arranha-céu da Av. Júlio no entorno da Praça Dante quer ser também uma referência para o projeto Paz na Cidade.
Trata-se de uma iniciativa que busca estreitar relações entre vizinhos, não apenas de porta ou andar, mas do Centro como um todo.
– O Centro é o nosso bairro, e a ideia é humanizar cada vez mais esse espaço, com parcerias de vários segmentos, lojistas e moradores – explica Bryan, educador com formação em Comunicação e Teologia.
A proximidade e o diálogo ele pôs em prática já com os vizinhos de andar. Foi o principal interlocutor com os moradores na hora de dar início às reformas do prédio. Na sequência, trouxe os pais, de 88 e 92 anos, para morarem em um apartamento do mesmo edifício, o que facilita locomoção e uma série de outras atividades. Tudo privilegiando a convivência no Centro, o andar a pé, o não depender de carro. A reforma segue esse espírito consciente, de visão a longo prazo e preocupação com o conjunto, o coletivo, por onde todos transitam. Foram eliminadas fissuras e fiações expostas, sanados problemas de infiltrações de décadas e usadas tintas de maior durabilidade e qualidade.
– O bom desse tipo de iniciativa, quando os moradores têm a consciência da história do prédio, é que podemos suprir as deficiências sem perder o espírito e a importância do edifício no contexto da evolução da cidade – explica Roberta.
Indiretamente, e talvez sem saber, Rachel, Vera, Romeu, Hugo, Rosa, Clarissa, Taís e os outros personagens desta reportagem estão inseridos nesse projeto de atitudes positivas. E que Bryan resumiu à perfeição:
– O edifício não é nosso, é da cidade.
Contar a história de Caxias através da arquitetura. Registrar prédios que possuam relevância arquitetônica, significado para a cidade e que nos emocionem. facebook.com/prediosdecaxiasdosul
Compartilhe