Não é apenas uma história sobre troca de casais. É muito mais do que isso. É sobre sonhos e como eles nos movem. Um enredo fortemente carregado de dilemas psicológico, de questões de identificação entre pessoas e sobre como o livre arbítrio pode produzir consequências talvez inimagináveis. A partir deste fim de semana, o público gaúcho poderá conferir a versão em ópera para O Quatrilho, o mais famoso livro lançado por um autor caxiense ou radicado em Caxias do Sul, como é o caso do são-francisquense José Clemente Pozenato. A montagem, que estreia sábado no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, poderá ser vista em Bento Gonçalves, no dia 15 de agosto, e em Caxias, no dia 18, como parte da turnê que também passará por outras cinco cidades do Estado (veja no quadro).
Lançado em 1985, o romance é ambientado em 1910, numa comunidade rural no Rio Grande do Sul habitada por imigrantes italianos. É lá onde dois casais muito amigos se unem para poder sobreviver e decidem morar na mesma casa. Mas o tempo faz com que Teresa, esposa de Ângelo Gardone, se interesse por Mássimo, marido de Pierina. Os dois amantes decidem fugir e recomeçar outra vida, deixando para trás seus parceiros, que viverão uma experiência dramática e constrangedora, sob o olhar desaprovador da sociedade conservadora da época e da Igreja.
A trama ganhou projeção internacional em 1996, quando o longa metragem baseado no livro de Pozenato concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro, com direção de Fábio Barreto e tendo como protagonistas os atores Gloria Pires, Patrícia Pillar, Bruno Campos e Alexandre Paternost. A ideia de produzir uma ópera começou a tomar forma há cerca de dois anos, a partir de um projeto dos produtores Vagner Cunha e Claudio Carrara, da Bell'Anima Produções Artísticas.
— Eu gostava muito do desfecho da história. Há mais ou menos um ano acabamos conhecendo o Pozenato e pedimos autorização para montar a ópera. Ele fez questão de fazer o libreto — lembra Cunha, autor das músicas que conduzem o espetáculo.
Do italiano libretto (pequeno livro), o libreto é o texto usado em apresentações como óperas, operetas, músicas, oratórios e cantatas. É nele onde estão contidas tanto as partes faladas quanto as cantadas. No caso d'O Quatrilho, Pozenato partiu da trama do romance, mas concentrou-se na questão afetiva dos casais, agora interpretados pelas sopranos Carla Maffioletti (Teresa) e Maíra Lautert (Pierina), pelo tenor Flávio Leite (Ângelo) e pelo barítono Daniel Germano (Mássimo). Também estão em cena a contralto Luciane Bottona, no papel de Tia Gema, o barítono Ricardo Barp, como Cósimo e, no baixo, Pedro Spohr como Rocco.
— Pozenato fez isso de uma forma magistral. Nas óperas, em geral, a fortuna de um casal ou um desfecho sempre se dá às custas de uma tragédia alheia, e essa é uma história em que todo mundo acaba bem. E tem o protagonismo das mulheres também — salienta Cunha.
Em dois atos, O Quatrilho terá recitativos em português e árias, duetos e coros cantados em italiano pelos sete cantores/atores, com trilha executada ao vivo por 12 músicos da Camerata OntoArte.
— Uma das coisas que me encanta nessa ópera é o poder de comunicação que ela tem, e esse poder de comunicação resulta de uma integração de texto e música. A história, o percurso dramático, é muito atrativo para o público, e o compositor foi muito feliz na sua criatividade, com sua imaginação, para caracterizar musicalmente cada momento, sempre conectados com o todo. A pessoa pode nunca ter assistido a uma ópera na vida, mas tenho certeza que vai se encantar — garante o maestro Antonio Carlos Borges-Cunha.
Com uma sólida carreira no gênero, incluindo um período de 12 anos trabalhando como o holandês André Rieu e passagens pela Ópera de Lucerna, na Suíça, a porto-alegrense Carla Maffioletti não esconde o entusiasmo em participar da produção gaúcha. Para dar vida a Teresa, a soprano releu a obra de Pozenato e identificou em si aspectos que a remetessem à personagem.
— Ela segue o coração, está sedenta de vida, por um amor, por ser ouvida, por ser vista. Tinha o sonho de que o casamento fosse resolver as ideias românticas, mas não resolveu. Mássimo e ela se acharam. Me identifico muito com esse sentimento de mudança porque há 20 anos me bateu muito forte essa decisão de largar tudo, minha família, meu país. Essa ideia de abandonar tudo para começar uma vida nova é muito latente na minha vida. Quando li o livro foi tão forte, me mobilizou muito, foram dois dias muito emocionada — conta Carla, atualmente morando na Holanda, onde produz os próprios espetáculos.
Sensação semelhante é descrita por Flávio Leite ao narrar o processo para criar o obstinado Ângelo Gardone:
— Ele é um homem absolutamente focado em construir um patrimônio, sair daquela pobreza, daquela situação super difícil que os imigrantes passaram. Só que ele deixa a vida um pouco de lado, por característica própria e por estar envolvido no trabalho. É uma história regional, mas, ao mesmo tempo, universal porque trata de conflitos que são inerentes ao ser humano, como superar preconceitos, imposições sociais. Pierina e Angelo não fizeram nada de errado, mas foram tratados como párias da sociedade por terem ficado juntos.
O barítono Daniel Germano, que vive Mássimo, completa:
— O bacana dos quatro protagonistas é que cada um tem uma identidade muito clara. O Ângelo é um cara que pensa muito no sucesso dos negócios, muito capitalista. Já o Mássimo é mais romântico. Ele bebe um pouco do anarquismo. Tem essa dicotomia muito clara. O Ângelo quer muito o dinheiro e o Mássimo quer muito o amor. E a Teresa, que era a mulher do Ângelo, também quer o amor. Por isso que eu me apaixono por ela. E a Pierina, que era minha mulher no começo da história, também é mais centrada, mais racional, mais parecida com o Ângelo. Então o que há, na verdade, é uma identificação, primeiro minha com a Teresa, e a gente resolve fugir.
Maíra, por sua vez, chama a atenção para a direção cênica de Luís Artur Nunes. Antes de partirem para os ensaios das músicas, o elenco passou por um trabalho de construção dos personagens a partir da leitura conjunta da obra de Pozenato.
Os figurinos da ópera O Quatrilho levam a assinatura da porto-alegrense Malu Rocha. Para criar as cerca de 30 peças usadas nas cenas, a profissional fez pesquisas no acervo de fotos Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela conta que buscou imagens de famílias de imigrantes italianos que viveram e trabalharam na área rural do Rio Grande do Sul no início no século 20:
— Procurei trabalhar com diferentes cores, tecidos e texturas.
Já a cenografia, responsabilidade de Rodrigo Lopes, também remete à época retratada no filme. Entre os objetos especiais que estarão em cena, destaque para um lambrequim com 14 metros de largura, que ocupará toda a extensão dos palcos onde a ópera será encenada.
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