Como se constrói, numa região interiorana e sem aeroporto próprio, um dos principais destinos turísticos do Brasil? Se hoje parece fácil elencar os elementos que fazem da Serra sinônimo de bem-estar pela sua temperatura e belas paisagens, aliadas ao aconchego proporcionado pela sua gastronomia, seus hotéis e sua gente, um olhar mais profundo mostra como o caminho foi árduo e exigiu criatividade e dinamismo. Não por acaso, características que se mostram necessárias diante dos desafios para se manter sustentável.
Para conhecer a origem da veia turística da Serra, o De Manta e Cuia foi até o Grande Hotel Canela, hospedaria com 102 anos de história cujo fundador, João Corrêa, é considerado responsável pelo surgimento do turismo na região. Entre os méritos do homem, que trabalhava na construção das primeiras linhas ferroviárias do Estado e se encantou pela Serra após uma visita feita a cavalo, o principal foi conseguir, em 1924, a extensão do trem até Canela, quando a linha findava na vizinha Taquara. A chegada da ferrovia alavancou o fluxo de veranistas, que reservavam dois ou três meses do ano para temporadas naquele destino recomendado para tratar da saúde, devido ao clima aprazível a quase 900 metros acima do nível do mar. A área era considerada um refúgio paradisíaco e hospitaleiro.
– Meu avô ouvia falar de Petrópolis, na serra do Rio de Janeiro, e vislumbrou a possibilidade de tornar este lugar igualmente atraente para o veraneio. Mas tudo naquela época era muito mais difícil. Imagina como era suprir a despensa de um hotel para 200 hóspedes sem a facilidade de fornecedores que existe hoje. A maior parte da alimentação era de produtos cultivados aqui mesmo e a mesa era sempre farta. O termo “café colonial” só surgiu depois – conta Régis Corrêa, 78 anos, neto do fundador e atual diretor do hotel, que em sua estrutura preserva grande parte do legado centenário.
É simples entender por que o turismo na Serra, tanto nas Hortênsias quanto no Vale dos Vinhedos, surge impulsionado pelo verão e não por aquele que é até hoje o seu principal chamariz, o frio. A primeira razão é logística. Até os anos 1960, por falta de estradas que levassem ao litoral, verão era sinônimo de escapar para a Serra, e não para o mar. A segunda é estrutural: não havia tecnologia disponível para oferecer à clientela as condições para suportar o frio.
– No inverno os hotéis ficavam fechados. Só quando começaram a surgir as primeiras empresas oferecendo condições de climatizar os ambientes é que houve o desenvolvimento do turismo do frio. As pessoas sempre gostaram de passar bem no inverno – destaca o diretor.
A guinada se dá de forma gradativa, após a decadência do sistema ferroviário no Brasil, o incremento das estradas rumo ao litoral e a industrialização de Caxias do Sul, que até os anos 1960 era o principal passeio dos veranistas porto-alegrenses. Para crescer, a Serra teve de se reinventar.
A partir da década de 1970, a Serra passa a viver uma fase de profissionalização do setor turístico, ainda sem o apelo do inverno. Em Bento Gonçalves, o Hotel Dall’Onder se consolida como um destino de veraneio, com algumas vinícolas do Vale dos Vinhedos surgindo como ofertas complementares de visitação. Nos anos 1980, estrutura-se o roteiro Caminhos de Pedra, incrementando a gastronomia e as vivências rurais como pontos fortes. Na Região das Hortênsias, Gramado tornava-se conhecida em todo o país pelo Festival de Cinema, criado em 1973, e pela Festa das Hortênsias, evento que gestou, em sua última edição (foi realizada entre 1958 e 1986), o primeiro Natal Luz.
Um personagem importante para o crescimento do turismo no Estado, especialmente na Serra, foi Geraldo Castelli, que no início dos anos 1970 retornava ao Estado após sete anos vivendo na Suíça. Ao ingressar na Secretaria Estadual de Turismo, em 1976, colocou em prática um plano inspirado no da União Europeia, com cidades vizinhas disponibilizando ofertas de turismo integradas e temáticas. Sempre que alguém repete o refrão que a Serra é a Europa brasileira, há nisso um pouco do legado de Castelli.
– Nós dividimos o Estado em vários polos turísticos: Região da Uva e Vinho, das Missões, da Campanha, das Hortênsias. Nas Hortênsias, que congrega Canela, Gramado, Nova Petrópolis e São Francisco de Paula, o alicerce para o sucesso foi a queda das barreiras entre os municípios, algo que era havia muito forte entre Caxias e Bento Gonçalves, Pelotas e Rio Grande, cidades que não conversavam – destaca Castelli, atual diretor de uma escola superior de hotelaria em Canela que leva seu sobrenome.
A visibilidade nacional e a diversificação da oferta foram dois fatores que se retroalimentaram para transformar a Serra no fenômeno que atualmente recebe cerca de 10 milhões de visitantes por ano. Se, no início, a Região das Hortênsias oferecia poucos passeios como a Cascata do Caracol, em Canela, e o Vale do Quilombo, em Gramado, com o tempo novas paisagens também ganharam destaque, como o Lago São Bernardo, em São Francisco de Paula, forjado como atração turística durante a atuação de Geraldo Castelli na Secretaria de Turismo do município, no final dos anos 1980.
Também surgiram parques e passeios temáticos, na mesma proporção em que o calendário ganhava eventos de gastronomia, moda e cultura espalhados por todos os meses do ano. Em 1992, Bento Gonçalves passa a explorar para o turismo a Maria Fumaça, refazendo o trajeto do trem desde Carlos Barbosa. A Chocofest, em Canela e Gramado (atualmente em Nova Petrópolis) teve sua primeira edição durante a Páscoa de 1994, celebrando uma tradição que surge a partir das primeiras fábricas de chocolate artesanal instaladas na região.
Mas se a Chocofest e o Natal Luz alavancaram a visitação nos feriados de Páscoa e Natal, quando foi então que os meses de inverno se tornaram os mais concorridos para o turismo na Serra? A professora e pesquisadora do núcleo de Turismo e Hospitalidade da UCS, Susana Gastal, sugere dois fatores: a migração do Festival Internacional de Cinema de Gramado do verão para o inverno, nos anos 1990, e a popularização do enoturismo.
– Quando o festival passa a ser feito no inverno, isso dá uma mídia nacional para a Serra. Os atores vindo para cá encasacados e com gorro é algo que em nível nacional funciona muito bem. Ao mesmo tempo, se dá o crescimento do enoturismo e a popularização do vinho, que deixa de ser uma bebida apenas da elite. As rotas de enoturismo passam a se destacar em diversos cantos do mundo e a Serra Gaúcha não fica para trás – aponta.
Herdeiro do Canela Grande Hotel, Régis Corrêa acrescenta o fascínio da neve como outra razão importante, mesmo com a ocorrência tendo se tornado cada vez mais rara:
– As crianças veem nos filmes aquelas outras crianças brincando e fazendo bonecos de neve e ficam encantadas. Mesmo que hoje não neve como antigamente, os turistas gostam da atmosfera da cidade enfeitada, dos eventos.
Consolidada como um destino quase obrigatório para quem gosta de comer bem, apreciar belas paisagens e desfrutar do aconchego proporcionado por uma rede hoteleira que contempla desde o alto padrão até a experiência mais rústica/aventureira dos hostels e hospedagens oferecidas através de aplicativos, a Serra tem como desafio para um futuro próximo manter as suas características de lugar associado ao bem-estar mesmo em meio à procura crescene, tanto entre turistas quanto entre moradores. Para Geraldo Castelli, a especulação imobiliária é o maior inimigo.
– Todo esse crescimento, sob certos aspectos um pouco desordenado, pode fazer com que a região mate a sua galinha dos ovos de ouro. Devemos preservar e guardar com carinho a finalidade que faz as pessoas nos procurarem. Já há uma certa inquietude de chegar aqui e encontrar os mesmos problemas que se encontram nas megalópoles. Essa preocupação tem que estar muito presente no poder público e no setor privado. É preciso saber que região queremos ser – analisa.
Régis Corrêa sugere que uma saída é descentralizar a oferta de atrativos.
– A mobilidade já está bastante comprometida na região, principalmente nos feriados maiores. Uma saída é expandir os atrativos para outros pontos que não sejam na área central das cidades. Muitos parques temáticos já são mais afastados.
Na região de Caxias do Sul conhecida como 4ª Légua, nas proximidades de Galópolis, um jovem casal decidiu unir a tradição centenária da família da moça na produção de vinhos à experiência de 20 anos do rapaz como cozinheiro e depois chef de cozinha numa importante pizzaria da cidade. Ainda incipiente, a aposta da vinícola Don Severino em adentrar o ramo do enoturismo pode ser considerada um reflexo da redescoberta do interior caxiense como um destino de visitação rico em lindas paisagens, boa gastronomia e vivências memoráveis.
Neta do agricultor que dá nome à marca criada em 2012, Gabriela Isoton, 30 anos, comenta que há um movimento de empreendedores da região de Galópolis em criar uma rota turística, aproveitando o apelo do bairro que é considerado o mais charmoso de Caxias e as belezas naturais do entorno, onde estão instaladas diversas famílias que preservam o modo de vida colonial. Como negócio, abrir as portas para os visitantes é uma oportunidade de agregar valor aos vinhos finos e de mesa, que nas prateleiras físicas ou virtuais podem ser apenas mais um rótulo entre tantos.
– O mercado para venda de vinhos é muito competitivo, há uma oferta muito grande e variada. Sendo uma marca recente, é difícil agregar valor ao produto na ponta do mercado. Acredito que, trazendo as pessoas para consumir o vinho aqui, a gente tem a oportunidade de contar a história da vinícola, da região, da igrejinha do século 19 que está no rótulo. Com tudo isso, aliado ao aspecto visual e às pizzas, a gente consegue oferecer uma experiência bem rica – observa Gabriela.
Para estruturar a vinícola como ponto turístico, Gabriela ingressou num curso oferecido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) voltado para o enoturismo. Com a consultoria de uma historiadora e de um arquiteto oferecidos pela entidade, pôde trabalhar a questão histórica da propriedade como um atrativo presente em cada canto do pequeno ambiente da pizzaria, forjado no porão de pedra, além de projetar a construção de um deque para que os visitantes possam degustar o vinho contemplando a vista privilegiada, o que deve ser o carro-chefe dentro de alguns meses.
Diretora-executiva do Sindicato Empresarial de Gastronomia e Hotelaria, Marcia Ferronato cita algumas propostas já bem consolidadas, como o restaurante Château Lacave e a Cantina Tonet, e propostas recentes e promissoras de enoturismo como a vinícola Quinta Don Bonifácio e Petronius Beverages, que aposta em cervejas e cachaças artesanais.
– Caxias está despertando para o turismo de vivências e se adequando de acordo com o que o cliente pede. A gente percebe uma tendência a reinterpretações da nossa culinária tradicional. Ao mesmo tempo em que há as experiências tradicionais como o galeto, o bauru e o xis que as pessoas sabem que só comem aqui, há outras demandas que são o mercado quem determina. Um exemplo é o visível crescimento do número de cervejarias artesanais. Caxias nunca deixou de ter o que fazer, a questão é se mostrar um pouco mais – avalia.
Porão da construção rústica na 4ª Légua ganhou uma pequena pizzaria artesanal
Ex-secretária de Turismo de Bento Gonçalves e de Garibaldi, a consultora em turismo Ivane Fávero é otimista ao projetar o crescimento desse setor para os próximos anos. Ressalta que um dos fatores mais importantes é a diversificação das ofertas, que cada vez mais contemplam esportes de aventura, roteiros ecológicos e promoção de qualidade de vida. Com isso, mais do que nunca, a Serra mostra-se uma opção interessante para todas as idades e perfis de visitantes.
Segundo a especialista, o turista será cada vez mais uma pessoa que investe nas viagens a sua expectativa de alimentar a alma com experiências únicas, mesmo que muitas vezes isso se traduza principalmente em status. Abaixo, confira uma entrevista com a consultora:
A consultora em turismo Ivane Fávero
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