Oblack power da filósofa Angela Davis, os dreads de Bob Marley, o corte “joãozinho” de Elis Regina, o lisão comprido de Pepeu Gomes, o raspado de Sinéad O’Connor... Os exemplos de tipos de cabelo são muitos e vêm de diferentes recortes no tempo, mas em comum carregam uma tremenda força política e social, literalmente “plantada” na cabeça. Além de assumir, com coragem, a responsabilidade pelo impacto visual causado quando os fios não são tão usuais, quem escolhe um corte de cabelo pode nem se dar conta, mas também opta por transportar mensagens que dizem muito sobre autonomia e identidade.
Cada período tem suas representações capilares marcadas na história – e as personalidades citadas acima são algumas delas. Em cada cabelo, vive uma importância, um discurso. Mas se já houve tempos em que o mais importante era chocar, hoje é o descobrir-se que parece mais urgente. Com o passar do tempo e a ebulição de informações a que hoje temos acesso, o cabelo tem conquistado status de protagonista num processo de naturalização e de busca por autoconhecimento. A tendência contemporânea do abandono da chapinha alinha-se justamente a esse aspecto.
Um dos exemplos mais conhecidos é o da atriz e influencer Kéfera Buchmann. Recentemente ela divulgou um vídeo no qual compartilha (com os mais de 11 milhões de inscritos de seu canal) detalhes sobre o processo de transição capilar ao qual vinha se submetendo desde o início do ano. Refém da chapinha desde criança e depois de pelo menos 10 anos fazendo escova progressiva (com formol), ela resolveu voltar aos fios naturais. Se na adolescência “todo mundo preferia e idolatrava as meninas de cabelo liso”, assumir a forma original do cabelo na vida adulta trouxe uma nova força: “desde os sete anos odiando meu cabelo, eu saber que aos 25 ia estar muito tranquila e pronta para aceitar ele do jeito que Deus mandou, é libertador”, resumiu Kéfera.
O fenômeno não é isolado, pelo contrário, tem se integrado a muitos ambientes diferentes. Um exemplo vai levando a outro e o discurso vai ganhando espaço na televisão, nas revistas, na internet, nas rodas de amigos e, claro, no mercado – hoje, é fácil encontrar produtos específicos para cabelos crespos e afros em qualquer farmácia. Pessoas que passaram uma adolescência inteira sendo invisíveis para o mundo dos produtos de beleza, hoje ocupam seu espaço. Um espaço do tamanho que seus cabelos merecem, sem adequações ou ajustes a padrões indesejáveis.
Muito do que a caxiense Cacá Weber, 33 anos, aplica em seu dia a dia como cabeleireira também está ligado a sua história pessoal. Ela foi uma adolescente ondulada numa época em que o padrão estético que praticamente todas as meninas tentavam seguir era o da capa da revista Capricho – geralmente habitada por rostos emoldurados por cabelos lisos e compridos.
– Percebo que minha geração, da faixa dos 30 anos, é a que mais sofreu esse bullying e que tem dificuldade de abandonar as progressivas. E que ainda fazem mecha loira platinada mesmo não sendo loira, mesmo não combinando bem com sua pele. Isso da Regina George ser o padrão do colégio ficou muito forte nessa geração. É um super processo para a maioria das mulheres se libertar disso – comenta ela, citando a personagem linda, loira e popular do filme Meninas Malvadas.
Trabalhando com cabelos há 14 anos, Cacá hoje é reconhecida pela aptidão no trato com fios cacheados. Mesmo sendo geralmente procurada por pessoas que querem valorizar a ondulação de seus cabelos, ela conta que o processo para dizer sim à transição capilar pode ser longo.
– O visagismo ajuda a entender quem você é e o que você deseja comunicar. Eu costumo trab alhar a partir da forma natural do fio. Faço essa leitura, depois vou fazer essa conversa com o cliente, apontando “esse é você”. Às vezes as pessoas demoram uns três meses para voltar ao salão, mas hoje o que me move é poder operar nessa linguagem – diz.
É interessante pensar que o Brasil, país de múltiplas miscigenações, foi o responsável pela criação da escova definitiva com uso de formol para “doutrinar” os fios ao padrão liso. Hoje, no entanto, Cacá tem acompanhado com otimismo as mudanças de comportamento que parecem conquistar cada vez mais espaço.
– A TV tem falado uma linguagem mais brasileira, as musas já não são mais as mesmas. Você tem a Jout Jout no YouTube, que é cacheada e está lá com frizz e tudo bem. Tem a Ellora (Haonne), blogueira crespa, tem a Kéfera. É fácil você fazer uma escova, posar numa foto e transitar dentro de um personagem. É legal fazer isso, mas não viver dentro de um personagem. Você percebe elas expondo esse lado.
É claro que não há nada errado com quem alisa o cabelo e se sente bem assim, o problema se dá quando as pessoas têm dificuldade de perceber as amarras nas quais estão submetidas, aponta a cabeleireira:
– Costumo dizer que o cabelo é a nossa expressão mais fiel. Então, quando penso numa pessoa que, de forma definitiva, contém volume, contém o movimento, contém o cacho, isso é muito significativo.
A história da relação de Priscila Medeiros Redede, 32 anos, com os próprios cabelos é idêntica a de inúmeras mulheres. Dona de fios cacheados, ela passou praticamente toda a adolescência tentando domá-los.
– Fiz muita química, mas nunca ficava bom. O cabelo era um problema, algo com o que eu não me identificava. Lembro que deixei de ir a vários lugares, preferia não sair porque não estava de bem com o cabelo – conta a jovem, formada em Serviço Social.
Um retorno aos fios naturais começou a ser encarado por ela há cerca de três anos, amparado numa aproximação com ideais do movimento feminista e, principalmente, motivado pela maternidade. A filha de Priscila, Maria Clara, tem 10 anos hoje e ostenta um cabelo crespo belíssimo, com incentivo da mãe.
– Lembro que na idade dela eu já estava sonhando com o dia que poderia alisar meu cabelo. Fico feliz de olhar para ela e ver que é um momento diferente hoje. Eu sempre disse para ela “teu cabelo é tão bonito” e acabei sentindo necessidade de ser também uma referência para ela – conta.
Apesar de adorar o próprio cabelo, Maria Clara já passou por momentos complicados na escola por conta dos cachos. Sinal de que a vida no ambiente escolar ainda segue sendo um desafio às diferenças, apesar da reflexão sobre a liberdade cada vez mais crescente a que as novas gerações têm acesso.
– Já me chamaram de "cabelo de Bombril" – narra a menina.
Priscila também comenta sobre a pressão social que a escolha por um cabelo crespo gera:
– Já ouvimos muito, inclusive na escola de educação infantil, aquela sugestão para um corte que diminuísse o volume, ou um relaxamento. Sempre nessa perspectiva do “vamos arrumar”.
Refletindo sobre a importância de aceitação e libertação de padrões que deseja para a própria filha, Priscila acabou também se abrindo para os cachos, sem se arrepender.
– Nas entrelinhas fica essa dimensão política de aceitar o próprio cabelo, de se reconectar com a natureza. É um processo, a autoestima é uma coisa que se constrói – reflete.
A estudante de Medicina Veterinária Bruna Orlandi, 20 anos, chorou copiosamente em frente ao espelho na primeira vez que viu seu cabelo afro completamente solto. Quando criança, vivia com os fios presos em rabo de cavalo. Aos 12, começou a usar tranças e nunca mais parou. Adotada ainda bebê em uma família de descendentes de italianos, ela cresceu em Galópolis e foi a única negra em muitos ambientes. Conforme foi crescendo e se entendendo como uma mulher negra, Bruna sentiu a necessidade de se ver por completo, de se libertar. O dia em que soltou as tranças, há cerca de um ano e meio, ficou marcado para ela como o início de uma nova era.
– Quando soltei, me olhei no espelho e eu me vi (embarga a voz). Eu me senti tão minha, tão eu. Lembro que estava com medo do que eu ia encontrar na minha cabeça. Quando soltei, ele ficou meio escorrido, daí lavei e começou a tomar uma forma. Passei um creme, me olhei no espelho, e chorava... Me perguntei “onde tu estava minha infância inteira?” Foi muito bom. Minha família ficou admirada com meu semblante quando me olhou, todos diziam “nossa, tu é outra pessoa”.
O medo de não se reconhecer era tão grande que, antes de soltar o cabelo, Bruna pediu para a mãe marcar horário no salão para o dia seguinte, caso fosse necessário refazer as tranças. Não foi.
– Quando a mulher negra que existia em mim aflorou, não teve volta. O cabelo me ajudou muito nisso, fez eu enxergar outros horizontes, me conhecer mais – justifica.
Decidir que soltaria o cabelo não foi uma decisão tomada do dia para noite. Bruna se preparou bastante para o que viria. Sabia que enfrentaria olhares, que encontraria apoio, mas também crítica. Das situações para as quais não se preparou está a invasão.
– Acontece muito de eu não conhecer a pessoa e ela chegar e enfiar a mão na minha cabeça, é muito invasivo. A pessoa que invade teu espaço, que toca no teu cabelo sem permissão e pergunta como tu faz para lavar, é uma coisa muito chata – desabafa.
Bruna acredita que a falta de referências femininas negras em sua vida possa ter contribuído para um atraso no processo de autodescoberta que culminou com a soltura das tranças. Hoje, fica feliz em acompanhar o crescimento na popularidade de influenciadoras digitais negras, por exemplo.
– A representatividade realmente importa muito. Me sinto feliz que as meninas negras novinhas vão ter isso. Já vi crianças negras me olharem e falarem “que cabelo lindo” – comemora.
A jovem cheia de ideais – entre eles, trabalhar com animais silvestres e selvagens – segue o caminho ocupando seu espaço no mundo de forma cada vez mais consciente. Um caminho sem volta. Ainda bem.
Quando o assunto é cabelo e aceitação, a ligação mais natural é sempre com o universo feminino. Isso não quer dizer que homens também não estejam inseridos nesse assunto.
– É um assunto de todos, mas a gente acaba falando mais entre mulheres porque existe um controle muito maior sobre o corpo da mulher, a gente recebe mais informações sobre o que deve ou não fazer, o que é feminino ou não, o que é adequado ou não. Mas homem com cabelo comprido sempre escuta que tem cabelo de mulher, por exemplo – pondera a psicóloga Deborah Renosto.
Claro que homens também sofrem pressão social quando decidem ter um corte de cabelo diferente. Funcionário dos Correios há 32 anos e dono desse cabelão crespo que aparece aí na foto desde a adolescência, Bento Jairo Boeira, 53 anos, tem muitas histórias para contar quando o assunto são as suas madeixas. Entre os exemplos engraçados está a vez em que foi parado na rua confundido com o jogador de futebol Valdivia, ou quando teve que tirar fotos com um médico, em pleno hospital, que jurava que ele era o comediante Helio de la Pena. Histórias de preconceito não fazem parte do repertório de Bento. Restringe-se apenas a dizer que não gosta de apelidos – e são muitos que costuma receber.
– Com apelido, tu não deixa tua identidade falar – resume.
É difícil para ele explicar a motivação para o corte de cabelo. Começou porque curtia cabeludos do rock quando jovem, depois passou a se gostar tanto com o penteado que nunca mais pensou em cortar.
– As pessoas perguntam “por que não corta o cabelo?”. Mas se não me incomoda, por que eu cortaria? – simplifica.
Bento é categórico ao afirmar que o cabelão crespo ajudou a moldar sua personalidade. Desta forma, cortá-lo não faria sentido algum. Pai de três filhos, aponta qual legado gostaria que seu cabelão deixasse a eles:
– Tu tem que ser o que tu é, sempre ser tu. Não queira assumir a cabeça de outra pessoa.
Entender as construções que definem o que é bonito e o que é feio é tarefa das mais complexas, alvo de estudos de grandes pensadores como o italiano Umberto Eco. Mas, de forma simplificada, o que pode ajudar nessa compreensão e, consequentemente, constituir um primeiro passo na busca por uma maior aceitação de nós mesmos, é observar quais influências nos levam a acreditar que algo é feio ou bonito.
– Uma coisa interessante para a gente não viver de forma tão automática e sim de forma mais consciente é perceber que existem muitas ideias que nos afetam. O que a gente acha bonito ou feio não vem necessariamente de dentro de nós, somos afetados por questões sociais e culturais. É como se fôssemos criando molduras na nossa cabeça e a gente começa a jogar um monte de coisa lá. Estou conseguindo perceber as influências que a minha cultura e todas as coisas que me falaram têm sobre mim? – questiona Deborah Renosto, psicóloga com especialização em terapias comportamentais contextuais.
A psicóloga comenta que, uma vez desenvolvida essa consciência sobre a complexidade das construções de nossas amarras, a liberdade passa a desenvolver caminhos mais divertidos na relação que temos com nós mesmos.
– O legal disso é que vou poder me ver de forma mais consciente e escolher alisar meu cabelo, se eu quiser, ou deixar natural. A ideia é poder quebrar com essa coisa do feio e do bonito, do certo e do errado. Se o corpo está em constante movimentação, eu também posso brincar com ele. A ideia é que a gente pode fazer o que escolher – sugere Deborah.
Para ela, a ideia do movimento e da mutação também pode contribuir num processo de fazer as pazes com a autoestima.
– Uma coisa interessante é a gente poder perceber nossa identidade como algo em constante movimento, eu vou mudando, mas ainda sou eu. Quanto mais diversas as coisas forem, mais interessante fica, quanto menos padronizados for, fica melhor. A maioria dos estereótipos acaba nos afetando negativamente – ensina.
Aos 30 anos, Deborah percebe uma evolução muito maior nesse sentido com relação às gerações mais novas, que possuem hoje mais ferramentas para refletir sobre questões que dizem respeito aos famigerados padrões de beleza.
– A internet fez com que a informação se espalhasse de forma diferente, e os movimentos feministas, das causas de gênero, da luta negra também têm muita carga nisso. O pessoal de 15 anos hoje tem muito mais ferramentas do que a gente tinha, íamos muito com a maré. Eu lembro que, antes de sair, ficava muito tempo escovando o cabelo, ficava com calo na mão. Se tivesse uma ondinha, não estava legal. Então, ali não era uma diversão, uma brincadeira ou experimentação, era um controle – relembra ela, que hoje vive feliz com um corte de cabelo curto, enfrentando outro tabu dos padrões ditos femininos.
A escolha por assumir o cabelo natural pode também ajudar a conectar cada pessoa com sua história e trajetória, na descoberta saborosa da individualidade.
– Outro ponto interessante é você tentar encontrar a beleza única, a forma que só você tem. Você é filho de um pai e de uma mãe, tem toda uma carga genética que traz desenhos em você, que podem não ser coerentes com os padrões, mas só você tem – defende a psicóloga.
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