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Homenagem cinematográfica
a cotiporã

Pequena cidade da Serra é cenário para novo filme de Gustavo Spolidoro,
“Os Dragões” 


Texto
Siliane Vieira
siliane.vieira@pioneiro.com

Fotos
Felipe Nyland
felipe.nyland@pioneiro.com

Cotiporã tem hoje população estimada em pouco mais de quatro mil habitantes. Tirando algumas edificações que acabaram sumindo para dar espaço a novos empreendimentos, ou algumas pessoas mais antigas que já não estão mais presentes, a cidade não está muito diferente da época em que um jovem Gustavo Spolidoro passava feriados prolongados por lá visitando a avó. As viagens que faziam o garoto trocar o cenário da capital Porto Alegre por um ambiente rural e com forte sotaque italiano acabaram marcando profundamente suas memórias, que agora revigoram-se em forma de homenagem cinematográfica na ficção Os Dragões. Spolidoro está de volta a seu reduto interiorano preferido e, desta vez, faz dos moradores de Cotiporã seus protagonistas em uma história sobre adaptação e crises geracionais

– Desde que nasci eu venho para cá. Tenho vários parentes, vários primos que vão aparecer no filme. Sempre tenho vontade de fazer projetos aqui – comentou o jovem diretor, enquanto comandava uma tarde de filmagens no interior da cidade.

Spolidoro – bastante conhecido por ter dirigido Ainda Orangotangos, primeiro longa em plano-sequência do Brasil – já havia filmado em Cotiporã antes. Em Morro do Céu (2009), ele misturava linguagens da ficção e de documentário para acompanhar a vida de um jovem ruivinho morador do local e cheio de sonhos. Era Bruno Storti, que acabou sendo muito importante também para a formatação de Os Dragões. Depois de Morro do Céu, Spolidoro ficou bastante próximo de Bruno e acompanhava de perto as apresentações dele junto ao grupo de teatro Arte in Cena, bastante atuante na pequena cidade. A morte precoce do jovem ator (ele tinha 24 anos) em um acidente de trânsito, no ano passado, mudou os planos que Spolidoro tinha para seu próximo filme na cidade. A história acabou ganhando contornos de realismo fantástico inspirado em contos do autor mineiro Murilo Rubião e o papel de protagonista, antes previsto para ser de Bruno, agora está com uma menina.  

– O filme era um projeto que eu tinha com o Bruno. Não era exatamente sobre adolescentes, eram jovens-adultos. Com o falecimento dele, eu resolvi mudar o personagem principal, não via mais um menino fazendo aquele papel que ele ia fazer, mudamos para uma menina. Aí surgiu essa coisa do universo adolescente – adianta Spolidoro.

O cineasta conta que Os Dragões será dedicado a Bruno Storti, porém, mais do que isso, o filme carrega a presença do universo de Cotiporã de uma forma muito forte. A atual protagonista, Lóren Maite Panizzi, de 16 anos, e os outros quatro personagens principais do longa são integrantes do grupo de teatro que Bruno fazia parte. Aliás, todos os 22 membros da companhia Arte in Cena aparecerão no filme, única “exigência” feita pela diretora do grupo, Adriana Titon Balotin, ao cineasta.

– Desde o primeiro dia, pedi para ele que todos pudessem participar. Para nós é um presente e um reconhecimento muito grande tudo isso. A gente se emociona em ver a capacidade dessa gurizada – diz ela, cotiporanense e envolvida com teatro na cidade desde 1996.

Além da presença massiva dos atores do grupo Arte in Cena, Cotiporã também preenche Os Dragões de muitas outras formas. As paisagens do Centro e do interior, as pessoas que lá vivem, tudo integra um mosaico sobre amizade e sobre a passagem da adolescência para vida adulta, temas presentes no roteiro. E temas que o próprio Spolidoro viveu naquele mesmo solo, anos atrás.

– Acho que tenho muito do meu ser adolescente. Guardo muitas das coisas que eu construí na minha transformação da adolescência para a fase adulta, que também é isso que estou filmando aqui. Minha consciência política e de um monte de coisa, ainda é a mesma. A Dani (personagem da Lóren) é um alter-ego meu, o Jacó (outro personagem) também. É como se eles dois fossem uma mistura do que eu sou e fui na minha adolescência – compara o diretor. 

história de amizade

Mobirise

Amiga de infância do diretor, Angela Taffarel é produtora do filme

Se a amizade é uma das temáticas mais presentes no roteiro de Os Dragões, ela também se materializa no set de filmagem. Spolidoro escolheu a dedo todos os integrantes da equipe que trabalha atrás das câmeras. Entre essas pessoas, algumas personificam a história de proximidade do diretor com a cidade de Cotiporã, como a professora de italiano Angela Scarton Taffarel, 43. Ela conhece o diretor desde criança e, em Os Dragões, foi convidada a trabalhar como produtora local.

– Lembro que eles (Gustavo e a família) vinham sempre na Sexta-feira Santa e iam na minha casa ver os coelhinhos que meu pai cria. Eles tinham o costume de esconder os ninhos e lembro deles achando os ninhos no Hotel Veraneio, onde ficavam hospedados. Hoje, ali é a casa onde mora o Paulinho (Reginatto, ator que interpreta o Jacó, um dos dragões no filme) – conta.

Não seria exagero dizer, aliás, que a história de amizade entre Spolidoro e Angela também poderia render um filme. Entre muitos passeios noturnos e caminhadas regadas a vinho de garrafão, os dois engataram um namoro adolescente, ficavam juntos sempre que ele visitava a cidade. Numa dessas viagens, no entanto, o jovem encontrou Angela casada e grávida de sua filha. Os dois se distanciaram.

– Via ele na cidade às vezes, mas perdi o contato. Um dia vi a revista Aplauso, abri e tinha lá uma entrevista com “Gustavo Spolidoro, cineasta”. Não acreditei. Liguei para a revista para saber o contato dele. Conversamos e ele me chamou para ajudar no Morro do Céu – conta.

Angela conta que Spolidoro deu um jeito de homenagear vários amigos pessoais de Cotiporã em Os Dragões. Numa cena gravada no Círculo Operário Cotiporanesne, por exemplo, ele fez questão de dispor os quadros dos ex-presidentes do clube de forma bem sentimental:

– Ele deixou os quadros das pessoas que ele conhecia. Por isso que falo que Os Dragões é um filme que brinda uma história de amizade.

a cidade se movimenta durante as gravações

Mobirise

Tradicional comércio de Leandro Zardo serviu de locação para o filme

Quem conhece um pouco de Cotiporã pode ter certeza que vai reconhecer vários cenários da cidade quando o longa Os Dragões estrear nos cinemas, em 2020. As cinco semanas de gravações na Serra, concluídas no último dia 6, levaram câmeras, luzes, equipamentos de traveling, de som e toda parafernália tradicional utilizada em gravações de cinema para endereços como o Circulo Operário Cotiporanesne, a catedral e a famosa cascata dos Marins. Além disso, vários moradores da cidade abriram as portas de suas casas para receber a equipe de Os Dragões.

– A Dona Maria Breda queria fazer o café da tarde no porão quando fomos filmar lá. Ela também deu duas cucas para o nosso lanche – lembra a produtora local Angela Scarton Taffarel.

Além dos integrantes do grupo de teatro Arte in Cena, que compõem o núcleo de protagonistas da produção, vários moradores da cidade, distante 80 quilômetros de Caxias, foram convidados a participar das gravações. Uma delas foi a aposentada Dina Thereza Dall’Ago Scussel, que aos 94 anos, foi provavelmente a atriz mais idosa a integrar o elenco.

– A vó dele (do Spolidoro) era muito minha amiga, éramos conhecidas de infância. Fui convidada a participar das filmagens aqui embaixo na rua (aponta para uma das quadras que circunda a praça central da cidade). Fiquei parada na calçada e nos filmaram. Eu gostei bastante – contou a alegre senhora ao resumir a experiência.

Dona Dina também é proprietária do prédio onde funciona o supermercado Monte Vêneto, um dos mais tradicionais da cidade. O espaço também serviu de locação para o filme. Um dos administradores atuais do comércio, Leandro Antonio Zardo, 26, acompanhou com entusiasmo toda a movimentação.

– Foi uma noite diferente aquela. Acho muito legal porque a cidade se transforma, incorpora a cultura e as pessoas dão valor a isso. Sem contar que é uma baita oportunidade para a gurizada que está atuando – festejou ele, que também já fez parte do grupo de teatro da cidade. 

Na Escola Estadual de Ensino Médio Professor Jacintho Silva, o assunto do filme também está na boca da gurizada, já que quatro dos cinco protagonistas estudam lá. Sensação geral na cidade é a expectativa para poder conferir na telona o resultado de tanto trabalho e empenho.

– Minha mãe e meu pai surtaram, inclusive meu pai está trabalhando na equipe. Ele ajuda na montagem e, além disso, sempre vem, tira foto, grava. Minha mãe também está toda feliz – contou Lóren Maite Panizzi, que vive a protagonista de Os Dragões. 

clube dos cinco

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Os cinco jovens protagonistas integram o grupo de teatro da pequena Cotiporã

Era outubro de 2017 quando o cineasta Gustavo Spolidoro fez um anúncio que deixou os integrantes da companhia teatral Arte in Cena, da pequena Cotiporã, num misto de animação e expectativa. Ele desafiou os jovens atores a integrarem o elenco de seu próximo filme, a ficção Os Dragões, cujas filmagens se encerraram no início deste mês. Para cinco adolescentes do grupo, no entanto, o susto foi ainda maior. Lóren Maite Panizzi, 16 anos, Paulo Reginatto Sbardelotto, 18, Raphael Luciano Scarton, 16, Larissa Tres, 16, e Juliana Zardo, 16, descobriram que seriam os protagonistas da história. 

– Eu fiquei em choque porque ele (Spolidoro) só tinha visto um trabalho que eu tinha apresentado no teatro. E eu era uma porta (risos)! Para mim, só caiu a ficha quando começaram as gravações – diz Lóren, que vive Dani, a líder do quinteto.

Para definir quem ocuparia qual papel, o diretor fez longas entrevistas individuais com os atores. 

– Acho que a gente aprende mais de nós mesmos a partir dos personagens. Eu vejo muito de mim no Jacó, ele passou por coisas que eu passei – conta Paulo. 

A troca dos palcos de teatro pelo set de filmagem deixou a gurizada insegura, claro, mas a partir de julho deste ano eles começaram a participar de ensaios e intensivos de preparação de elenco. Insegurança também está entre as temáticas do longa com roteiro baseado em contos de realismo fantástico do autor Murilo Rubião. A história acompanha cinco adolescentes que, confrontados com o medo da vida adulta e com o desafio de encenar uma peça de teatro, acabam enfrentando mudanças que os levam a adquirir características de dragões.

– Essas transformações que nossos personagens têm são uma forma de tornar tangível essas transformações que a gente vive da adolescência para a vida adulta, são pressões que a sociedade exerce sobre nós, essa repressão que, de certa forma, é conservadora e que não nos aceita – conceitua Raphael (o Mike), único dos atores que mora em Bento.
– Fala bastante sobre os medos que todos os adolescentes têm, desde gravidez e espinhas até as responsabilidades. O filme mostra como superar isso, acho que vai ser uma mensagem boa para os jovens – diz Lóren.

Enquanto os protagonistas de Os Dragões cruzam pelos desafios da adolescência na ficção e fora dela, Spolidoro também traça um paralelo com sua história.

– Esse filme é para um adolescente do tipo que eu também fui, que procurava algo diferente. Numa turma de 30 alunos, é para aqueles cinco que querem outra coisa – propõe o diretor. 

viagem afetiva

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A grande quantidade de estabelecimentos que têm o nome Breda estampado em suas fachadas denuncia a relevância da família para Cotiporã. Um dos filhos ilustres da cidade não é exatamente natural de lá, mas passou boa parte da infância correndo por aquelas calçadas. O ator Marcos Breda, 58 anos, voltou à pequena cidade a convite do diretor Gustavo Spolidoro para viver o mestre de cerimônias do Gran Circo Rubião, no longa Os Dragões.


– Meu avô e meu pai nasceram em Cotiporã e eu passava todas as férias de julho nessa região. Enquanto estava lá agora, gravando, ia lembrando de cada cheiro, dos sons da cidade, do sino da igreja. Foi incrível – destacou o ator, porto-alegrense radicado no Rio.  

Uma das locações mais especiais para ele foi o Hotel Veraneio, justamente onde Breda costumava hospedar-se com a família quando criança, assim como Spolidoro.

– Lembro até dos corrimões, dos degraus, lembro de brincar naqueles corredores quando tinha uns cinco, seis anos – disse.

Marcos Breda já participou de vários trabalhos na Serra – um dos mais recentes foi o filme A Cabeça de Gumercindo Saraiva, que teve cenas filmadas em São Francisco de Paula –, mas foi a primeira vez que esteve gravando em Cotiporã. Além de poder matar a saudade de vários parentes e amigos, a incursão pelo set de Os Dragões revigorou muitos sentimentos do ator.

– Foi uma honra, um prazer, uma viagem afetiva para dentro de mim, de minhas memórias – resumiu.  

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