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MARCELO CASAGRANDE

Caxias sem
Financiarte

Prefeitura não lançará edital do principal dispositivo de fomento à produção artística em 2018. Setor cultural deverá sofrer impactos no ano que vem


Texto
Andrei Andrade
andrei.andrade@pioneiro.com
Diego Adami
diego.adami@pioneiro.com
Ronaldo Bueno
ronaldo.bueno@pioneiro.com
Mateus Frazão
mateus.frazao@pioneiro.com

Desdo que lançou O Grande L, em 2014, o diretor caxiense Leandro Daros realizou mais de 30 sessões de exibição do curta-metragem, a maioria delas em escolas do município que pediram a sua presença para debater com os alunos. O filme aborda o bullying, a solidão e a onipresença do mundo virtual na vida dos adolescentes, drama que os professores experimentam no dia a dia da sala de aula, mas muitas vezes não conseguem sensibilizar os alunos para discuti-lo. É onde entra a importância da arte e seu poder de jogar luz onde há sombras. Realizar O Grande L, contudo, seria muito difícil se Daros não tivesse sido contemplado com o Financiarte, programa de fomento artístico e cultural que esta semana esteve no centro das discussões na Câmara Municipal de Caxias do Sul, dada a interrupção do seu edital após 15 anos consecutivos e as incertezas quanto ao futuro (leia no quadro).

– Principalmente nas vezes em que recebi incentivo, procurei dar mais ênfase às temáticas mais atuais e que me incomodam como cidadão (Blanc, outro filme que Daros produziu via Financiarte, trata do preconceito contra os imigrantes africanos). Produzir sem o fomento é possível, porém muito mais difícil, principalmente para os produtores independentes. O Financiarte dá consistência aos segmentos artísticos, pois possibilita aos melhores projetos realizarem produções em condições próximas do ideal. Também oferece, especialmente a novos realizadores, a condição de associar-se a pessoas mais experimentadas – avalia.

Há uma década e meia, o Financiarte é o principal dispositivo de fomento à produção artística em Caxias, ao lado da Lei Municipal de Incentivo à Cultura. Criado em 2003 como Fundoprocultura (mudou para o nome atual em 2009), os recursos viabilizados em seus editais movimentaram o mercado cultural e oportunizaram a dezenas de artistas das mais diversas vertentes – música, teatro, cinema, literatura, artes plásticas, entre outras – produzir, alcançar e circular com seus trabalhos. Anualmente gera trabalho para 1,9 mil pessoas, fora as oportunidades geradas indiretamente. À população, permitiu o acesso democrático à cultura através da contrapartida garantida em cada projeto, como shows, exibições e oficinas gratuitas.

Este ano, a não destinação de recursos para o programa, anunciada pelo secretário de Cultura Joelmir da Silva Neto, agravou uma situação que já se anunciava crítica após o corte drástico na verba do ano passado, colocando em xeque o futuro do programa e revoltando a comunidade cultural. No centro da polêmica está a discordância da prefeitura em reservar um valor mínimo para custear os projetos, aprovado pelos vereadores (exceto dois: Chico Guerra (PRB) e Renato Nunes (PR)), mas que deverá ser vetado pelo prefeito, o que leva a projetar uma batalha judicial para os próximos meses.

– Vamos aguardar a análise por parte da Procuradoria Geral do Município (PGM), se não há nada inconstitucional, visto que as emendas fogem do projeto original do Executivo – diz Neto.

Neto prefere não afirmar se o edital será lançado ainda este ano:

– Antes de dizer se vai ou não ter edital, é preciso que o projeto seja avaliado pelo setor jurídico e pelo gabinete do prefeito.

A reportagem tentou contato com o prefeito Daniel Guerra, mas a assessoria de imprensa da prefeitura não retornou 







Financiarte promoveu muitos talentos

ARQUIVO PESSOAL, DIVULGAÇÃO, BD 04/07/2018

Yangos, já contemplada com Financiarte, fez show na Rússia


Alguns dos principais expoentes culturais que saíram de Caxias do Sul para o Brasil e o mundo conhecerem receberam suas primeiras oportunidades por meio do Financiarte. Entre eles estão a escritora Natalia Borges Polesso, que lançou Recortes Para Álbum de Fotografias Sem Gente (Modelo de Nuvem, 2013) e Amora (Não Editora, 2015) com recursos do edital, e o quarteto de música regional Yangos, cujos primeiros dois discos, Tangos y Milongas (2009) e Às Pampas (2013) foram viabilizados pelo programa. Recortes... conquistou o Prêmio Açorianos na categoria Melhor Livro de Contos, enquanto Amora recebeu o principal prêmio literário do país, o Jabuti. A Yangos, no ano passado, concorreu ao Grammy Latino e tocou na Copa do Mundo da Rússia.

– Se não fosse o Financiarte, a Yangos provavelmente nem existiria. Os guris vinham ao meu estúdio gravar músicas para o CTG e ali foi o embrião para nos organizarmos e ter o projeto aprovado, em 2007. A maior importância está nisso, de propiciar o encontro da classe cultural e a criação de projetos que fazem a diferença na sociedade como um todo. Tenho certeza que essa será uma prioridade para a prefeitura rever essa questão, porque não pode uma cidade do tamanho e do porte cultural de Caxias ficar sem um projeto que é referência para o Brasil inteiro – destaca o tecladista da Yangos, César Casara.


“Se não fosse o Financiarte, a Yangos certamente não existiria.” Tecladista César Casara




“Regredimos 20 anos em dois”, afirma produtor cultural

DIOGO SALLABERRY

Mobirise

Cabral afirma que a falta de recursos por parte da prefeitura não deve
ser uma alegação aceitável


Hoje com 46 anos, o produtor Robinson Cabral acompanhou nos últimos 20 toda a evolução do cenário cultural em Caxias do Sul. Envolvido com a arte desde a década de 1990, foi em meados de 2005 que passou a ser mais ativo na produção cultural. Desde então, idealizou e participou de projetos importantes da cidade, como o Festival Brasileiro de Música de Rua, Cinema de Verão, Festival Especial (que promove apresentações musicais em entidades que atendem pessoas com deficiência), além da produção de filmes, como um documentário sobre o extinto Cine Ópera. Atualmente, entretanto, o que resta para Robinson é a frustração. Ao Pioneiro, ele lamentou as decisões da atual gestão na área da cultura que disse ter sofrido em dois anos.

– Foram anos de conquista, evoluindo, ganhando espaço, provando ao poder público da importância da cultura. Para cada real investido em cultura, R$ 4 retornam em arrecadação. Mas não há essa visão da atual gestão. Fomos de um deserto cultural que era Caxias na década de 90, passamos a querer viver nos anos 2000 e hoje acontece isso, em dois anos retrocedemos 20 – lamenta.

Cabral afirma que a falta de recursos para a não realização de ações culturais em Caxias, justificativa da prefeitura, não deve ser alegação aceitável:

– Chegamos a ter mais de R$ 2 milhões repassados ao Financiarte. Ano passado foram R$ 600 mil. O valor não era tão baixo assim desde 2004, ou seja, foram 13 anos de retrocesso e sob a alegação de que faltava dinheiro, mas o Financiarte sempre foi baseado no PIB e sabemos que o PIB do ano passado permitia um investimento muito maior em cultura. Neste ano, o mesmo: até setembro o PIB já estava em R$ 317 milhões, 1% disso seria R$ 3,17 milhões. Estão (prefeito e secretário) tentando nos tirar para idiotas quando dizem que não têm recursos, porque esse PIB está indo para lugar nenhum, não tem nada sendo feito na cidade.

Sobre a posição do atual secretário da cultura, Joelmir da Silva Neto, Cabral é taxativo:

– Ele jamais vai reconhecer que (o projeto que lança o edital) ficou três meses na mesa dele propositalmente para atrasar todo o processo. Ele não vai reconhecer que eles não querem destinar um fundo para a cultura. Nunca foi fácil lidar com poder público, mas sempre houve diálogo, conversa, aproximação para mostrarmos o quanto isso é importante.

Valores x projetos do Financiarte

Mobirise

“Quando se faz uma oficina de hip-hop para garotada de um bairro menos favorecido, estamos investindo em tirar essas crianças da rua.” Secretário Municipal de Bento, Evandro Soares





Em outras cidades, recursos garantidos

Enquanto a classe artística de Caxias do Sul corre o risco de terminar o ano sem Financiarte, os mecanismos de fomento já estão garantidos em outros municípios gaúchos. É o caso de Bento Gonçalves, que destinou mais de R$ 660 mil para o Fundo Municipal de Cultura em 2018. Finalizado em setembro, o edital contemplou 25 projetos nas áreas de artes cênicas, música, audiovisual, literatura, folclore e patrimônio histórico.

O valor investido em Bento Gonçalves, equivalente a 6,2 mil Unidades de Referência Municipal (URMs), é 10% superior na comparação ao que prefeitura de Caxias destinou ao Financiarte no ano passado – cabe destacar que a população caxiense é quatro vezes maior do que a do município vizinho. Procurado pelo Almanaque, o secretário de Cultura de Bento, Evandro Soares, defendeu as leis de incentivo à produção artística e afirmou que os recursos destinados ao setor são revertidos, a longo prazo, em benefícios em educação e segurança.

– Quando se faz uma oficina de hip-hop pra garotada de um bairro menos favorecido, estamos investindo em tirar essas crianças da rua. Portanto é um investimento em cidadania e educação. Por isso a gente acredita no fomento, não só dos projetos da área social, mas também para a classe artística como um todo – reflete o secretário.

Além do Fundo Municipal de Cultura, que será reformulado em 2019 com objetivo de incluir contrapartidas sociais aos projetos aprovados, a prefeitura de Bento Gonçalves divulgará nas próximas semanas os contemplados do primeiro Edital de Fomento da Cultura Popular, que financiará iniciativas nas áreas de folclore, culturas tradicionais e etnias. O edital soma R$ 144 mil – sendo que R$ 100 mil foram obtidos junto à Secretaria Estadual da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer (Sedactel).

Em Santa Maria, na região central do Estado, o governo municipal trabalha na primeira edição do Edital de Apoio à Produção Artística e Cultural, que prevê R$ 187,5 mil para execução de 19 projetos. Os recursos, viabilizados pelo Fundo Pró-Cultura-RS, serão divididos igualmente entre as iniciativas contempladas. Para o superintendente da Cultura no município, Cássio Corbellini, os mecanismos de fomento trazem “benefícios econômicos à sociedade”:

– Cada artista que receber esses recursos será como uma empresa: tem que administrar o valor, contratar pessoas, além de cumprir os encargos fiscais que reverterão renda para o município. Vale dizer que o edital também democratiza o acesso à cultura, porque uma das contrapartidas é que, além do projeto, o artista também faça alguma ação na periferia da cidade.

Já em Pelotas, na zona Sul, o edital do Programa Municipal de Incentivo à Cultura (ProCultura) ainda não foi lançado nesse ano. No entanto, a prefeitura garante que o período de inscrições será aberto nos próximos dias e que o valor liberado será pelo menos 10% maior do que em 2017, quando a secretaria da Cultura destinou R$ 591 mil e contemplou 26 projetos.

– Como a gente já desejava dar uma reoxigenada nessa lei, aproveitamos para debater algumas alterações. O novo edital vai ser lançado ainda nesse ano e pretendemos aumentar na comparação com o ano passado – explica a diretora de projetos da secretaria da Cultura, Alessandra Ferreira.


Editais de fomento à cultura pelo RS:

Mobirise











“O motivo desse retrocesso precisa ser dito”, diz ex-secretária

Secretária da Cultura na gestão do ex-prefeito Pepe Varga (PT), em 2003, quando surgiu o Fundoprocultura, mecanismo de fomento que em 2009 seria transformado em Financiarte no mandato de José Ivo Sartori (PMDB), Tadiane Tronca classifica como “retrocesso” o imbróglio envolvendo o incentivo público aos projetos culturais em Caxias do Sul e que culminou com o não lançamento do edital deste ano. Servidora pública aposentada, a advogada questiona a demora do Executivo em enviar para a Câmara de Vereadores o projeto para modificar a legislação.

– Antes, a questão era a vinculação do Financiarte a uma receita (arrecadação do ISSQN e IPTU), que a prefeitura alegava que não era constitucional. Agora é o quê? Tiveram tempo suficiente para refazer isso. A gente viu todos os avanços que a cultura teve com o Financiarte. Não sei se foi falta de competência ou de vontade. OK, não vai ter Financiarte esse ano, mas as pessoas precisam saber o porquê. É intencional? Não é prioridade do governo. Então que assuma que não é prioridade do governo. O fato é que é um retrocesso. Agora, o que motiva esse retrocesso precisa ser dito – salienta a advogada.

Integrante do Vocal Sem Batuta, cujo repertório contempla canções de nomes como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi e Chico Buarque, entre outros, o grupo é um dos contemplados pelo edital do ano passado. Conforme Tadiane, a gravação do CD Sambas&Bossas, cujo lançamento está previsto para dezembro, só foi possível graças aos recursos do Financiarte.

– Educação e cultura são essenciais para o desenvolvimento da humanidade – finaliza.









O QUE DIZEM OS EX-SECRETÁRIOS*:

* A reportagem não conseguiu contato com João Tonus, secretário de 2012 a 2014

– Esses 15 anos de Financiarte representam uma grande luta de toda a rede ligada à cultura. Foi uma construção bem elaborada à classe artística. Muitas pessoas não tem muita noção de quanto custa um espetáculo, por isso se fala muito de economia da cultura. A indústria criativa cresceu muito e é muito importante. (Sem o Financiarte) vamos ter uma lacuna de produção. É lamentável isso que está acontecendo. As cidades cada vez mais apostam em cultura, e ela é um dos grandes pilares do turismo. Olha o exemplo do Mississippi (Delta Blues Festival), um evento eminentemente cultural e que atrai pessoas de diversos lugares.

Rubia Frizzo,
secretária da Cultura de 2014 a 2016

Cultura, na minha visão, é prioridade. Não há boa educação sem cultura. Não há segurança sem boa cultura. Não há nem saúde sem boa cultura. A mentalidade de quem não tem cultura é viver a cultura como um adereço.

José Clemente Pozenato,
secretário da Cultura de Caxias de 2005 a 2006

– É um prejuízo não apenas para o segmento da cultura, mas para a imagem da cidade. O investimento que uma cidade faz no seu segmento cultural é na sua autoestima e na sua imagem, que é percebida fora daqui, tanto quanto deixar uma rua limpa e recolher o lixo, é deixar a alma de uma cidade embelezada. Se tu não prioriza, tu torna a cidade uma cidade muito menos atrativa. Hoje se tem uma ideia de que investimento em cultura só acontece se sobrar dinheiro porque a prioridade é saúde, segurança e educação. Só que há uma questão chamada transversalidade da cultura que, se não existir, acaba afetando outros segmentos que são prioridade. Veja as mortes de jovens na periferia. Tu pode combater o crime com ações culturais. Quem precisa mesmo, lá na ponta, nas comunidades mais pobres, acaba sendo o mais prejudicado. E é através da cultura que tu movimento toda uma cadeia produtiva, uma indústria limpa.

Antonio Feldmann,
secretário da Cultura de 2006 a 2012

– Eu acho bem triste. Enquanto política pública na área cultural, (o Financiarte) é de fundamental importância. Como todo mecanismo precisa passar por uma revisão. Quando você não permite que uma política pública de fomento isso é um processo em cadeia. Você acaba cortando não só a possibilidade do artista poder mostrar seu trabalho, mas toda a cadeia que tem no entorno. As editoras, quem vai fazer o projeto gráfico, as livrarias. Isso vai afetar de um modo ou de outro a questão da educação nas escolas. É uma série de problemas que acabam surgindo a partir de um projeto de lei como esse. ao mesmo tempo talvez seja o momento de toda a comunidade cultural se repensar, se reinventar e poder pensar que cultura é fundamental porque ela muda mentalidades. Talvez seja um momento de reagrupar-se. 

Adriana Antunes,
secretária da Cultura de janeiro a novembro de 2017 

Entenda o caso

2017

23 de novembro

 a prefeitura anuncia os projetos contemplados pelo Financiarte 2017. Dos 184 inscritos, apenas 18 foram contemplados. A verba, que nos últimos dois anos foi de R$ 2 milhões, encolheu para R$ 600 mil. Os trabalhos escolhidos representam o menor número desde a criação do edital de financiamento à cultura de Caxias do Sul, cuja primeira edição ocorreu em 2003, com 32 projetos. 

28 de novembro

a comunidade artística ocupa a Câmara Municipal para protestar contra o corte de verba do Financiarte. Artistas e produtores culturais denunciam descumprimento de lei que obriga a destinação mínima de 1% da arrecadação com impostos para o programa de incentivo cultural. No mesmo dia, uma representação contra o prefeito Daniel Guerra é entregue ao Ministério Público (MP). 

29 de novembro

em entrevista ao Pioneiro, o secretário da Cultura Joelmir da Silva Neto disse ter recebido do secretário de Gestão e Finanças, José Alfredo Duarte Filho, um memorando informando que seriam destinados R$ 600 mil para o fundo de financiamento cultural e que o restante da verba iria para outras áreas. Duarte Filho não quis se manifestar sobre o assunto. 

1º de dezembro

o Ministério Público instaura um inquérito civil público para esclarecer a questão

5 e 6 de dezembro

a promotora de Justiça Janaína De Carli dos Santos se reúne com representantes do Executivo para ouvir explicações.

9 e 10 de dezembro

artistas e produtores realizam ato na Praça Dante Alighieri e no Largo da Estação para chamar a atenção sobre o tema.

18 de dezembro

uma liminar suspende efeito de artigo de lei do Financiarte que fixa percentual de investimento.

2018

6 de agosto

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27 de agosto

a Justiça julga procedente ação sobre inconstitucionalidade do Financiarte.

25 de outubro

o projeto de lei de autoria do Executivo que modifica a lei do Financiarte é aprovado pelos vereadores. O texto, com oito emendas modificativas, entre elas a que fixa em 50.000 VRMs o valor mínimo a ser aplicado em projetos de incentivo à cultura, aguarda sanção do prefeito Daniel Guerra.

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