Projeto que está na quinta edição e que conta com cada vez mais mulheres ocupa um dos bares mais populares do bairro de Caxias do Sul
O cenário é um ponto tradicional de Forqueta, o restaurante Bertuol, conhecido popularmente como Bar dos Vermelhos por conta da aparência ruiva dos donos do estabelecimento, os irmãos Adelar e Valdir Bertuol. É ali que os moradores do bairro de Caxias do Sul se encontram para tomar um tira-gosto, conversar e jogar carta – hábito bastante comum entre os descendentes de italianos que ainda representam a maior parte da população por lá. Durante seus 30 anos de existência, o Bar dos Vermelhos esteve presente na paisagem forquetense de forma diferente para homens e mulheres: enquanto eles tinham no espaço mais uma opção de lazer, elas costumavam só passar na frente a caminho da padaria do bairro, localizada exatamente ao lado. Mas um projeto encabeçado pelo coletivo Forquetando, que organiza atividades culturais no bairro caxiense, mudou essa perspectiva para sempre. O Carteado das Mulheres tem povoado o Bar dos Vermelhos com um público diferente, que entende os momentos de diversão e liberdade vividos lá como uma conquista social.
Por volta das 20h do último sábado, durante a quinta edição do projeto, as cadeiras que circundam o bar já estavam ocupadas exclusivamente por mulheres, em sua maioria com mais ou perto dos 40 anos. A bebida mais pedida no bar era a caipirinha de morango, outras preferiam cerveja e vinho, fazendo os Bertuol correrem para atender todo mundo.
– É bonito isso, eu gosto. E a gente ainda vende mais que o normal, não dá conta de fazer caipira – contou Seu Adelar, 65 anos.
Uma das que já estava abancada por ali era a sorridente comerciante Laura Crippa, 54. O pai dela frequentou por muito tempo o bar acompanhado exclusivamente de outros amigos homens. Agora, os tempos são outros.
– Forqueta não tinha um evento para a mulherada se divertir, aqui era só para homens, elas estavam muito em casa. Isso aqui é ótimo, principalmente para as donas de casa, é uma noite de diversão. Meu marido está em casa e está adorando também – contou.
Vez ou outra, gritos e palmas invadiam o ambiente para saudar a chegada de alguma cliente. Foi o que aconteceu quando Maria Odete Radaelli Maschio, 69, chegou ao Bar dos Vermelhos acompanhada da irmã, Clarice Maria Radaeli Cagol, 72. A recepção calorosa das amigas tinha motivo: era a primeira vez delas no Carteado das Mulheres.
– Na verdade, foi meu marido que incentivou para eu vir, disse “vai lá se desestressar”. Acho que vai ser bom, onde tem bastante mulher é sempre divertido. Aqui são tudo amigas minhas – disse ela.
No bar, os homens não dão conta de atender os pedidos, que vão de vinho à caipirinha
Depois dos primeiros copos de aperitivo, as participantes partiram para a janta, um buffet com massa, galeto, polenta, pão caseiro e salada. Mas foi quando a banda começou a tocar que a festa se animou mesmo. Com um repertório de clássicos do sertanejo (o hit Boate Azul foi entoado em coro) até Mamonas Assassinas, o trio formado por teclado, violão e vocal dividiu o público presente: enquanto um grupo dançava e encabeçava animados trenzinhos, outro grupo espalhava as cartas assim que os pratos foram recolhidos das mesas.
– Nesse dia as mulheres deixam os homens em casa. Viemos aqui nos divertir e para poder sair do dia a dia, dos serviços domésticos, esquecer um pouco daquela rotina de esposa e vir aqui sentir o prazer do outro lado da moeda – apontou a técnica de enfermagem Ilvia Zuccolotto da Silva, 59.
O som alto e as jogatinas animam o grupo numa festa que não tem hora para terminar, e que deixa um legado importante para além daquela noite.
– Devido à cultura italiana de muito trabalho, as mulheres daqui são condicionadas a trabalhar, ir para casa e cuidar da família, têm pouco tempo para elas. Quando chegam aqui é lindo de ver a alegria de também poder jogar sua carta, confraternizar, ter esse momento com as amigas. Mexe com a autoestima de uma forma positiva, elas saem daqui realizadas e sempre pedindo quando vai ser o próximo – avaliou a fotógrafa Janaina Perotti, 27, uma das moradoras mais jovens de Forqueta presente no encontro e que, antes do Carteado das Mulheres, nunca havia entrado no Bar dos Vermelhos.
Apesar de ser uma iniciativa completamente voltada para o público feminino, o idealizador do Carteado das Mulheres é um homem. Dagoberto Junior, 19 anos, também é presidente de Forqueta e teve a ideia de levar as moradoras ao bar depois de encabeçar o projeto de nome autoexplicativo “Lugar de Mulher é Onde ela Quiser”. O objetivo era fazer a mulherada circular por ambientes diferentes, valorizando a autonomia.
– A gente viu que tinha um espaço que era desafiador, esse lugar onde só homens frequentam. No final do dia, algumas mulheres faziam a volta no caminho da padaria para não passar na frente do bar e levar uma piadinha, um olhar diferente. Algumas tinham vergonha até de vir buscar o frango assado que eles servem aqui, pediam para o marido fazer isso. Pensamos: “o lugar mais machista, mais conservador e onde as mulheres não costumam pisar, é exatamente onde iremos” – justificou.
Depois que o Bar dos Vermelhos começou a servir buffet no almoço e espeto corrido aos fins de semana, a clientela se diversificou, abrindo mais espaço às mulheres. Mesmo assim, Dagoberto avaliou o bar como sendo o ambiente mais desafiador para a presença feminina. Depois da quinta edição do projeto, que reuniu cerca de 80 mulheres, a mudança já é sentida.
– Elas voltam sempre mais fortes, muito mais empoderadas, decididas de que também podem sair, se divertir – anima-se.
A professora Diana Paniz, 33, mora a poucos metros do bar, mas só foi entrar lá depois do Carteado das Mulheres. Apesar de não jogar, na noite do último sábado, ela se divertiu muito acompanhada da mãe, da sogra, da cunhada e até dos dois filhos, comprovando que o bar também pode ser um ambiente familiar.
– Nunca tinha imaginado entrar aqui com meus filhos. É bem legal, eles adoram a música, a gente vem em todos – comentou.
Após superar um câncer, Júlia passou a curtir mais os momentos
Júlia Milesi, 56 anos, liderava o grupo de participantes mais animadas do Carteado das Mulheres, em Forqueta. A alegria, conta ela, sempre foi uma das marcas mais fortes de sua personalidade, mas depois que superou um câncer na mama, a vontade de aproveitar a vida ficou ainda mais urgente.
– Faz um ano só que terminei a quimio, ainda uso cateter. Eu sempre fui alegre e valorizei as pessoas, mas hoje eu valorizo ainda mais e mais, hoje eu estou vivendo uma nova fase da minha vida. Eu tô viva, graças a Deus. Eu sou uma vitoriosa – comemorou ela, entre uma dança e outra ao lado das amigas.
Dispensando o carteado para liderar trenzinhos que preenchiam de festa o pequeno espaço do bar, Júlia demonstrava toda a alegria de poder compartilhar mais uma noite ao lado das amigas. Ela frequenta o carteado desde a primeira edição e é conhecida por ser a participante que mais vende ingressos. Para convencer outras mulheres a comparecer, ela explica com autoridade sobre as reais intenções do encontro:
– Eu digo assim: “tá na hora de a gente sair de casa”. O Bar dos Vermelhos é frequentado só por homens, é um tabu que a gente quebrou. Eu gosto que todas venham porque a gente extravasa tudo e é muito bom.
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