Um dos lugares mais democráticos de que se tem notícia, a beira da praia é também um remédio que ameniza os efeitos da passagem do tempo e das transformações sociais verificáveis nos grandes centros. Na faixa de areia, a infância de 2019 é a mesma que a de 1990 ou a de 1950. E, mesmo para os adultos, acaba por ser uma conexão com um passado que os centros urbanos parecem tornar cada vez mais distante. Durante uma tarde em uma das praias preferidas pelos serranos, o balneário de Arroio do Sal, o Almanaque encontrou diversos pais e mães que aproveitaram o passeio para brincar com os filhos as mesmas brincadeiras da infância vivida décadas atrás, como o frescobol, o jogo de tacos ou a caça às conchas escondidas na areia. Sentimento comum aos jovens e aos adultos, a certeza quanto aos benefícios de desacelerar e desconectar.
Morador de Cachoeira do Sul, Paulo César de Moraes, 42 anos, comprou uma pipa para o filho Eric, 8, empinar na areia. O guri, que diz preferir jogar bolinha de gude e bater figurinhas a jogar videogame, demorou-se com a pandorga no ar e competiu com garotos cuja amizade surgiu na hora, aproveitando o vento favorável do último domingo em Arroio do Sal.
– Acho que cabe a nós apresentar as brincadeiras do nosso tempo, para eles pelo menos experimentarem alguma coisa que não seja o celular ou o videogame. O Eric já tem umas três pipas em casa, mas na cidade é perigoso empinar, por causa dos fios. Na praia foi a primeira vez que encontrei pra vender, por isso aproveitei. Brincar ajuda a desestressar as crianças, porque quem diz que só adulto que se estressa tá enganado. As crianças às vezes se estressam mais que a gente – comenta o serralheiro.
Leandro Nienow supervisiona a “obra” dos filhos Milena e Arthur
“Pelada” dos irmãos Jonas e Jean Matheus Savi com o primo Vitor.
O mais baixo vai pro gol.
Também é costume antigo no litoral o futebol que não segue as regras do jogo no campo ou nas quadras, que pode ser disputado entre dois ou mais participantes, mas que tem seus próprios códigos, tais como: o mais novo vai para o gol. Foi assim a pelada de sábado dos irmãos farroupilhenses Jonas e Jean Matheus Savi, 8 e 6 anos, com o primo Vitor Miranda, 14. Coube a Jean Matheus, com seus 1,40m de altura, tentar defender os chutes dos mais velhos, que nem eram tantos assim, porque o objetivo da pelada é o drible:
– Gol é o de menos. O que vale mesmo é dar “canetinha” (drible por entre as pernas) – exemplifica Jonas, aplicando o drible no repórter.
Para quem é ainda mais jovem que Jean Matheus e vive a primeira experiência na beira-mar, nada vai entreter mais e melhor do que o castelinho de areia, sempre com a ajuda dos pais como “mestres de obra”. Ao longo da faixa de areia, espalham-se baldes e kits de ferramentas coloridas, à serviço de construtores como Milena Nienow, 3, e o irmão Arthur, 4. A brincadeira se dá sob a supervisão nostálgica do pai, Leandro Nienow, 38, que recorda de quando era ele a experimentar os encantos do litoral, nos anos 1980.
– Na praia a gente resgata o que vivia antigamente... fazer castelinho, colocar a boia e correr pra água. Como pai, é muito bacana ver que a realização dos filhos ao chegar na praia é a mesma que a gente teve – diz o vendedor.
Poucos metros adiante, uma família de Farroupilha se divertia de forma igualmente ancestral. Paloma Werner curte a fase de descobertas do filho Pedro, 7 anos:
– A cada ano ele descobre uma brincadeira nova. Ele ama andar de dindinho (passeio a bordo de um caminhão customizado). Na praia, já faz uns anos que uma das coisas que ele mais gosta é cavar um buraco e se tapar de areia – conta a mãe.
A cada veraneio, o pequeno Pedro, filho de Paloma Werner, descobre uma brincadeira nova.
Adriano Lima dá as primeiras lições de pescaria aos filhos Bryan e Richard: lazer saudável
Mais do que brincadeiras típicas da infância, a praia também permite transmitir a filhos, sobrinhos, primos ou irmãos menores algumas paixões que poderão acompanhar os mais novos pela vida toda. Um deles é a pesca (nas áreas permitidas, é claro). O casal Adriano e Sandra Lima, 48 e 41, que tem como hobby as pescarias no rio Caí, próximo a Picada Café, onde residem, partiram para Arroio do Sal com as varas prontas para passar o dia fisgando peixes junto com os filhos Bryan, 16, e Richard, 13. Numa breve pausa, o industriário destacou que considera a pesca um hábito mais saudável do que a maioria daqueles aos quais a juventude de hoje está exposta:
– Os guris estão seguindo esse caminho. Hoje as cidades, também no interior, têm muita violência, muita droga, e isso torna a infância e a adolescência mais complicadas. O que a gurizada dessa idade quer? Som alto e bagunça. A gente procura passar a eles alguns valores que a gente acredita serem mais saudáveis para passar o tempo livre.
Algumas dezenas de metros adiante, na área destinada à prática do surf, o operador de empilhadeiras Paulo Roberto da Cunha iniciou o sobrinho Eduardo Secco, 10, em suas primeiras aventuras no mar. Até o ano passado, a dupla que todos os anos veraneia junto com a família resumia as brincadeiras à areia. Este ano, foi a vez de dar a Eduardo a primeira prancha de bodyboard (para surfar deitado na prancha) e encarar as primeiras ondas.
– Ele está se saindo bem. Surfar deitado não é tão complicado de aprender. Eu aprendi olhando os mais velhos e agora estou tentando ensinar ele. O próximo passo vai ser surfar de pé, mas por enquanto nem eu me arrisco – conta o mais velho.
Para Eduardo, que não foi além do ponto em que o mar batia no seu umbigo, o desafio foi controlar a prancha, que de pé mede a sua altura.
– Pegar a onda é tranquilo. O mais difícil é deixar a prancha reta, porque a onda vem e joga pra um lado e pro outro – avalia o guri.
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