A ESPERANÇA 
renasce nos abrigos

Programa de Acolhimento Familiar volta
a ser discutido e pode mudar a vida de dezenas
de crianças e adolescentes

PUBLICADO EM 02 DE SETEMBRO DE 2017

TEXTOS
Carolina Klóss
carolina.kloss@pioneiro.com

IMAGENS
Diogo Sallaberry
diogo.sallaberry@pioneiro.com

INFOGRAFIA
Guilherme Ferrari

ARTE
Cíntia Colombo

Um projeto que pretende reacender a esperança em crianças e adolescentes que aguardam há anos por uma família em abrigos voltou à discussão e mobiliza autoridades em Caxias do Sul. O acolhimento familiar, modalidade prevista no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), tem como mote principal tirar os acolhidos das instituições, sob atenção do Estado, para serem recebidos por uma família que possa proporcionar momentos de carinho e atenção, além de uma convivência comunitária.

Essa forma de acolhimento de pequenos e jovens, destituídos ou não da família de origem, já chegou a ser desenvolvida na cidade, mas durou pouco mais de três anos, se encerrando em 2009. A burocracia e a complexidade de mudar uma cultura com raízes históricas, como os abrigos, foram fatores que implicaram na falta de continuidade do projeto, realidade em cidades brasileiras, inclusive na vizinha Flores da Cunha.

Agora, com a intenção do poder público de tentar mudar a realidade dos quase 150 acolhidos em instituições atualmente, e com o empenho ferrenho do juiz da Vara da Criança e Adolescente, Leoberto Brancher, a ideia ganha força novamente. Ao contrário da sistemática aplicada nos institucionais, quando há muitas vagas (em Caxias, as casas lares abrigam até oito crianças e adolescentes; os abrigos, 20), o acolhimento familiar é individualizado, trazendo como principal benefício a promoção da autonomia daquele indivíduo. Para os cofres públicos, a modalidade também reflete em uma economia significativa. Em Caxias do Sul, por exemplo, se ela fosse implantada e todos os 149 abrigados atualmente fossem cuidados por famílias acolhedoras, seria possível economizar mais de R$ 800 mil mensalmente. Hoje, a prefeitura desembolsa mais de R$ 1 milhão todos os meses para manter os três abrigos e 12 casas lares.

Mas o projeto preconizado pelo ECA, visto como prioritário em relação ao acolhimento institucional, também traz poréns e abre questões que ainda demandam discussão. Uma delas diz respeito à construção de vínculos e relações afetivas que surgem em função da permanência da criança ou adolescente com a família acolhedora – esta que, ao se cadastrar no programa, deve se julgar ciente de que não vai poder adotar aquele menor que ficará sob seus cuidados por um tempo.

Mesmo que o Estatuto não fale sobre um período máximo de permanência na família acolhedora, municípios que já adotam a prática trabalham com o que é indicado no acolhimentos em abrigos, dois anos. Essa questão, que pode ter consequências sérias para a criança ou adolescente que está em processo de destituição da família de origem ou na fila para adoção, é o que mais pesa na decisão pela implementação ou não do projeto em Caxias, segundo a presidente da Fundação de Assistência Social (FAS), Rosana Menegotto.

– Estamos na fase de diagnóstico de possibilidades, mas convencidos de que seria uma boa escolha, sim. No entanto, é preciso saber exatamente como vai funcionar, já que não posso ser irresponsável e simplesmente testar ações, fazer pilotos. Estou lidando com a vida das pessoas, com o desenvolvimento e o futuro delas. A desvinculação, ainda, é o nosso grande entrave – garante Rosana, sem dar prazo para uma decisão.

Modalidade  é vista como prioritária no Estatuto da Criança e do Adolescente

Cascavel é referência

Apesar de não ser realidade em muitos municípios brasileiros, o acolhimento familiar já está consolidado em outros países, principalmente nos europeus. França, Itália e Espanha, por exemplo, implementaram a modalidade ainda na década de 1970, em resposta à necessidade de reordenamento das políticas de atenção à crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. No Brasil, um dos primeiros municípios a instaurar o programa foi Cascavel (PR), em 2006, hoje referência nacional. A iniciativa foi do juiz Sérgio Kreuz, antes titular da Vara da Infância e Juventude de Cascavel e hoje juiz auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça do Paraná. A implantação surgiu depois que ele percebeu que o abrigamento prolongado dos acolhidos em instituições poderia causar danos afetivos, como a dificuldade para criar vínculos. No programa que começou a se consolidar há mais de 10 anos e é disciplinado por lei municipal, uma família, cadastrada e treinada por uma equipe técnica, recebe em casa crianças e adolescentes – um por vez, exceto quando se tratar de grupo de irmãos. Normalmente, estes acolhidos têm remotas chances de adoção, já que têm mais de 12 anos ou problemas de saúde.

– Era preciso fazer algo, já que para muitas crianças e adolescentes a única experiência de família que tinham era de um grupo desestruturado. Eles precisam de cuidados, de carinho, essenciais para o desenvolvimento. O acolhimento familiar proporciona um atendimento mais humanizado, o que não ocorre nas instituições, onde as atividades, normalmente, são coletivas – esclarece Kreuz.

O Programa de Acolhimento Familiar em Cascavel estabelece uma bolsa-auxílio para as famílias (que varia entre 1 e 1,5 salários mínimos, dependendo do estado de saúde do acolhido). O acolhimento é temporário, portanto, assim que a criança ou jovem estiver em condições de retornar para sua família, é reintegrado. Não sendo possível o retorno, os pais serão destituídos do poder familiar e o jovem encaminhado para adoção. Também não sendo possível a reintegração ou adoção, poderá permanecer na família acolhedora até os 21 anos.

O juiz também defende a implantação do Programa de Acolhimento Familiar com base em pesquisas:

– Estudos demonstram que crianças que vivem em abrigos tem QI inferior ao daquelas que nunca passaram por esta experiência. Mostram também que crianças institucionalizadas têm atrasos no desenvolvimento motor, justamente pela falta de estimulação. Existem instituições ótimas de acolhimento, mas nenhuma se equipara à família.


Cascavel tem 150 famílias acolhedoras

Hoje o programa em Cascavel tem cerca de 150 crianças e adolescentes cuidados por famílias acolhedoras. A coordenadora do programa, Neusa Cerutti, explica que as novas candidatas chegam ao serviço de forma espontânea, simplesmente porque conheceram alguma família que já faz o acolhimento. Ela viaja pelo Brasil dando palestras sobre o projeto e comemora o sucesso da iniciativa. Porém, ressalta que o caminho para chegar no topo é trabalhoso:

– Quando comecei, em 2009, eram nove famílias acolhedoras, hoje são 150. Mas não é fácil. Nenhum município vai conseguir implementar sem mobilizar a rede de proteção e a sociedade. É preciso entender que o acolhimento familiar veio para quebrar um paradigma. Estamos desconstruindo o institucional, enraizado há séculos, para entrar em uma nova etapa no processo de adoção.

Neusa esclarece que Cascavel ainda mantém dois abrigos, um masculino e um feminino, para jovens de 12 a 18 anos. Porém, são usados somente antes dos jovens serem encaminhados para as acolhedoras. Ela ainda garante que a política pública caminha para a extinção de ambos.

– Não faço acolhimento institucional. Já fui técnica de abrigo e sei que a modalidade não traz bons resultados. Ele não salva ninguém, já o familiar ajuda a construir uma história na vida dessas crianças e adolescentes – acredita.

Quebra de vínculos no centro da polêmica

A modalidade de acolhimento familiar apresenta inúmeros benefícios, mas também traz uma questão polêmica e que, por vezes, aponta questionamentos sobre sua eficácia. A principal delas se refere à construção e quebra de vínculos entre o acolhido e a família acolhedora. Isso porque a modalidade preconiza que, ao se cadastrar no programa, a família deve estar ciente de que não vai poder adotar aquela criança ou adolescente que ficará sob seus cuidados. Não é recomendado, inclusive, que uma pessoa que esteja cadastrada para a adoção venha se tornar uma família acolhedora. Esse processo de desvinculação é um dos temores da presidente da FAS de Caxias, Rosana Menegotto, que avalia a possibilidade de implantação do projeto.

– Precisamos desvendar essa polêmica sobre a quebra ou não de vínculos. É uma situação muito complexa: essas crianças que vão para a família acolhedora são aquelas que ainda não foram destituídas da família de origem, então têm a chance de voltar para os pais biológicos. Aí, em um determinado momento, elas são desligadas da acolhedora. Como ficam as relações que se formaram? O menor não pode ser adotado porque aquela família vai passar na frente daqueles que estão na fila do Cadastro Único? – questiona Rosana, que pretende agendar uma visita em Cascavel para conhecer o programa desenvolvido por lá.

Ao contrário de Rosana, o juiz Sérgio Kreuz, do Paraná, acredita que a criação de vínculos é a maior vantagem do acolhimento familiar e que o rompimento das relações pode ocorrer na vida de qualquer pessoa, e em muitos momentos. Por isso, não vê a preocupação da presidente da FAS como uma desvantagem na implantação da modalidade.

– A família acolhedora presta um serviço voluntário e sabe que muito provavelmente a criança vai retornar para a família de origem ou vai para adoção. Claro que pode haver sofrimento. Mas quando a criança deixa o acolhimento familiar, ela vai para algo que é melhor. A família acolhedora também sofre, mas sabe que fez alguma coisa que mudou para melhor o destino da pessoa – justifica.

Sara Vargas, presidente da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD), também acredita que a criação de vínculos só tem aspectos positivos, já que pode ajudar na superação do sentime nto de solidão, muito comum em jovens em processo de destituição da família.

– Ninguém passa pela vida sem criar vínculos. Convivemos com pessoas que se vão ou mudam de cidade, mas nem por isso a gente abre mão de tê-las próximas da gente porque depois vamos ter que lidar com a saudade. Também depende de cada caso, mas a família acolhedora pode se transformar em padrinhos, madrinhas – exemplifica.

Cadastro Nacional de Adoção

Foi lançado em 2008 e já ajudou milhares de crianças a encontrar uma família. O cruzamento de dados permite que o sistema localize perfis de pretendentes que vivem em estados diferentes, inclusive.

Programa existe em
Flores desde 2012

Implantado a partir da lei municipal 2.979, de maio de 2012, o programa de acolhimento familiar traz bons resultados em Flores da Cunha. A cidade não tem abrigos para crianças e adolescentes, nem para idosos, e viu na família acolhedora uma forma de promover qualidade de vida para os menores que estão em processo de adoção. Atualmente, há uma família acolhendo uma criança e outra cadastrada na rede de proteção. Segundo a coordenadora do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) de Flores, Danielle Balsemão Valentini, ainda é preciso fazer chamamentos de candidatas de tempos em tempos porque, mesmo que o programa apresente resultados positivos, ainda há muito receio entre as famílias.

– Ainda é difícil porque existe aquele medo em relação à criação de vínculos e com a ruptura depois que a criança deixa a casa. Mas como não temos uma demanda muito grande e não precisamos ter uma lista de famílias, não há tantos problemas – esclarece Danielle, explicando ainda que as crianças e adolescentes só vão para as famílias acolhedoras depois que são destituídos da família de origem.

Em Flores, as famílias interessadas se cadastram via Cras e só são entram na fila depois de serem avaliadas, com visitas domiciliares e testes psicológicos, e aprovadas em um processo que envolve também o Judiciário. Elas precisam estar cientes de que depois que o prazo de acolhimento se encerrar, não poderão adotar aquela criança ou adolescente, e recebem, por menor, um salário mínimo como auxílio. Se o acolhido apresentar alguma necessidade especial, seja física ou mental, esse valor dobra. O abrigamento dura dois anos, mas pode ser prorrogado, segundo Danielle:

– Temos um caso de uma criança que está há seis anos com a família, ou seja, o prazo foi renovado por duas vezes. Durante o tempo de acolhimento, não apareceu interessado em adotá-la, aí avaliamos e percebemos que o melhor para ela seria ficar ali, onde estava sendo bem cuidada.


Adote


  • Há 14 crianças e adolescentes disponíveis para adoção em Caxias
  • Há 292 pretendentes à adoção habilitados.


TRÊS estão com 17 anos

TRÊS têm 16 anos

UM com 15 anos

TRÊS com 14 anos

UM com 13 anos

UM com 12 anos

UM com 9 anos 

UM com 10 anos

Os perfis que os habilitados requerem da criança a ser adotada são variados. Dentre as crianças e adolescentes disponíveis, não há habilitados com interesse em adotá-las.

Para juiz, investir na ideia é evoluir 

Muito da volta da discussão sobre acolhimento familiar em Caxias tem ligação com o retorno do juiz Leoberto Brancher à Vara de Infância e Juventude, há pouco mais de dois meses. O magistrado já tinha ocupado o posto de titular, mas até junho estava envolvido com a implantação do projeto de Justiça Restaurativa no Estado. De novo em Caxias, afirma que vai centrar energia na implantação da modalidade que considera como uma evolução no processo que envolve adoção. Ele visitou Cascavel para conhecer o programa de acolhimento de lá e ficou impressionado com os resultados alcançados nos mais de 10 anos do programa.

– Lembro que pensei: “Caxias não pode mais viver sem isso”. O acolhimento familiar mostra que estamos em uma evolução progressiva. Viemos dos internatos, que abrigavam 100, 200 crianças. Aí o Eca, em 1990, mandou desmanchar tudo, transformou as casas em abrigos e houve um reordenamento institucional. Agora é mais um passo – acredita o juiz, que se encontrou com equipe da FAS assim que retornou à vara para falar sobre o assunto.

Brancher afirma que sabe da complexidade que envolve a implantação da modalidade, mas acredita que a iniciativa será um desafio. O cuidado com as pessoas, segundo ele, deve ser o foco de toda a rede de proteção. O resultado, espera o magistrado, proporcionará melhor qualidade de vida para os 149 acolhidos atualmente.

– Por que não se fez até hoje? Porque é complexo. Uma novidade no cronograma da gestão pública sempre gera uma necessidade de aprendizagem. Infelizmente, a tendência das estruturas públicas não é a leveza: é mais fácil colocar o preso em uma cela do que tratar dele em liberdade –exemplifica o juiz.

Instituto Filhos já criou projeto – Também convicta de que o acolhimento familiar é uma boa e viável opção para Caxias, a presidente do Instituto Filhos, Marta Mazzuchini, liderou, no ano passado, a elaboração de um projeto para implantação da modalidade na cidade. O documento tratava de apadrinhamento familiar e família acolhedora e foi apresentado para a gestão municipal passada, sem avanços. Neste ano, a atual administração também recebeu o projeto e, de acordo com Marta, garantiu que está analisando.

– É uma ação complexa, envolve várias frentes de trabalho. Exige uma equipe exclusiva, que talvez não se tenha hoje. Sei que a FAS tem muito trabalho, mas acho que alguns projetos deveriam receber atenção especial, como esse. Se não agilizarmos, as crianças vão ficando abrigadas e o tempo é cruel para quem está nessa situação – lamenta.

Marta espera uma resposta da Fundação de Assistência Social, mas acredita que nada deva ser implantado do dia para a noite. É da opinião que o acolhimento familiar só será realidade em Caxias a partir de um projeto bem estruturado, com uma equipe capacitada e um longo processo de adaptação.
A mesma opinião tem a diretora de Proteção Social de Alta Complexidade da FAS, Eler de Oliveira e a diretora do Serviço de Acolhimento da Casa Estrela Guia, Joselaine Dalpiaz. Elas acreditam que é importante que a sociedade discuta a modalidade para que, caso vire realidade em Caxias, seja de forma organizada.

– O acolhimento familiar pode ser visto como uma evolução, sim. Talvez ele possa garantir uma qualidade de vida maior e melhor para essas crianças e adolescentes – espera Joselaine.

Na contramão,Caxias terá 
mais três casas lares

Uma das ideias preconizadas pelo acolhimento familiar, também claras no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é de que as opções institucionais, abrigos e casas lares, não são mais as únicas opções de abrigamento. Essas modalidades, acreditam especialistas, por não trazerem benefícios a longo e médio prazo, já deveriam estar fechando ou se encaminhando para a extinção. A prefeitura de Caxias, no entanto, está fazendo o caminho contrário: até o final deste ano, pretende abrir mais três casas lares, fechando 2017 com 15 unidades. A justificativa, segundo a presidente da FAS Rosana Menegotto, é a superlotação dos abrigos e o preenchimento quase que total das vagas nas casas de acolhimento que funcionam com pais sociais. Os abrigos, com vagas para 20, estão com 30; as casas, todas estão com seis, com exceção de uma que está com oito – a capacidade é 10 por lei.

– Não tenho receio de falar porque estamos lutando para mudar essa realidade. Temos muitas crianças além da capacidade permitida. Estamos programando a abertura de mais casas porque também entendo que seja uma modalidade eficaz. Porém também penso que o acolhimento familiar pode vir para evitar a superlotação dos abrigos – diz Rosana, acrescentando que a FAS tenta encontrar uma forma de interferir mais no processo dentro das casas lares, como oferecer treinamento para quem trabalha no acolhimento.

Mesmo sem conhecer a realidade de Caxias do Sul, o juiz Sérgio Kreuz, que implantou o acolhimento familiar na cidade de Cascavel (PR), não concorda com a abertura de mais instituições:

– Aos poucos, um vem para substituir o outro. Fosse eu o administrador público, não investiria em novas casas lares. Muitas vezes, os acolhimentos não diminuem porque a rede de atendimento, incluídos aí o Executivo, o Ministério Público e o Judiciário, não estão estruturados para dar uma rápida, porém, segura solução para os casos envolvendo crianças e adolescentes.

MODELOS DE ACOLHIMENTO:

NameAcolhidosCaracterística
ABRIGOSNo máximo 20Crianças e adolescentes 
afastados da família por meio de medida protetiva.
CASAS LARESNo máximo 10 Acolhimento provisório oferecido 
em unidades residenciais, nas 
quais há pais sociais.
FAMÍLIAS ACOLHEDORASUm por vez, exceto quando se tratar de irmãos. Ambiente familiar com atenção individualizada e convivência comunitária.
REPÚBLICASGrupos de jovens de 18 a 21 anos em situação de vulnerabilidade e riscoMoradias subsidiadas em sistema de autogestão. Deve contar com equipe técnica para contribuir com a gestão coletiva da moradia.

Economia poderia passar 
de R$ 800 mil mensais

Especialistas e autoridades que já estiveram coordenando programas de acolhimento familiar pelo Brasil são unânimes ao afirmar que a modalidade traz inúmeros benefícios, dentre eles, aqueles que podem melhorar o desenvolvimento psíquico e emocional das crianças e adolescentes. A vivência com uma família, o resgate de sentimentos e o auxílio no esquecimento de traumas são exemplos que mostram por que a família acolhedora é vista como a melhor opção de acolhimento no ECA. Mas a questão financeira, embora irrelevante se analisada junto à saúde física e mental dos menores, também joga a favor da família acolhedora.

Em Cascavel (PR) e em Flores da Cunha, as famílias que participam do programa recebem uma bolsa-auxílio de um salário mínimo por criança ou jovem. Se o acolhido apresentar alguma necessidade, seja física ou mental, o valor sobe para um salário e meio na cidade paranaense e para dois em Flores. Se o mesmo parâmetro fosse usado em Caxias e os 149 acolhidos atualmente na cidade (contando que nenhum apresente necessidade alguma), hoje em abrigos e casas lares, fossem encaminhados para famílias acolhedoras, a economia para os cofres públicos seria de mais de R$ 800 mil por mês. Isso porque a prefeitura desembolsa, mensalmente, R$ 11 mil para cada criança que está no abrigo e R$ 2,8 mil para cada um que está na casa lar. Se cada uma das 149 possíveis famílias ganhasse um salário mínimo, o gasto mensal seria de cerca de R$ 140 mil. Hoje essa conta é de mais de R$ 1 milhão.

– Estamos fazendo esse cálculo. Até já pensamos que dá para pegar essa diferença de valor e investir em treinamento para qualificar o serviço – adianta a presidente da FAS, Rosana Menegotto.

Para o juiz Leoberto Brancher, de Caxias, o dinheiro usado hoje para o sistema de acolhimento está sendo mal empregado:

– Precisamos evoluir porque estamos gastando dinheiro à toa, em um serviço que não traz resultados tão bons quanto o acolhimento familiar. Claro que não se verá uma economia de um mês para outro. Será preciso investir no início, mas no futuro o retorno será bem melhor.

Farroupilha, exemplo nacional, aprova o
acolhimentofamiliar

A pequena Farroupilha é referência nacional na agilidade dos processos de adoção. Muito do bom exemplo da cidade se deve ao trabalho do juiz Mario Romano Maggioni, titular da Vara da Infância e Juventude. Atualmente há três menores disponíveis para adoção em Farroupilha, acolhidos em uma casa com capacidade para 25 crianças e adolescentes, de 0 até 18 anos. Maggioni nunca pensou em abrir uma casa lar na cidade e acredita que o acolhimento, de qualquer forma, é uma quebra de continuidade familiar. Diz que já ouviu falar sobre o programa de acolhimento familiar desenvolvido em Cascavel (PR) e que tem vontade de conhecê-lo. Porém, afirma que os processos envolvendo destituições e adoções estão andando muito bem em Farroupilha:

– O Eca fala que preferencialmente tem que ser família acolhedora, mas como estamos conseguindo trabalhar bem aqui, tenho resistência em mudar a sistemática. Tem casos em que, dependendo da situação, é melhor que essa pessoa fique na casa de acolhimento, mas não aceito isso. Para mim, lugar de criança é ao lado de um pai e de uma mãe que a trate bem.

O magistrado conta que faz entre 20 e 25 adoções por ano, boa parte delas oriunda de destituições do poder familiar. Acredita que não dá para insistir infinitamente nas famílias biológicas que negligenciam seus filhos, como recomenda a legislação, porque isso pode ter reflexos desastrosos na vida do menor.

– O Estatuto diz que se deve esgotar todas as possibilidades de se manter na família biológica, mas se você levar essa recomendação ao infinito, não vai destituir nunca da família. Com o passar do tempo, isso vai desestruturando a criança. Já visitei um serviço em Porto Alegre, por exemplo, que uma menina entrou na instituição com três anos. Hoje está com oito. Ela estaria esperando o pai sair da prisão para tentar uma reaproximação. Isso para mim não faz sentido – afirma Maggioni.

Longo caminho da adoção

A superlotação nos abrigos de Caxias, uma das justificativas para a abertura de mais três casas lares até o final do ano, pode ser reflexo dos longos processos que envolvem a destituição das famílias de origem e a adoção. De acordo com o ECA, crianças e adolescentes podem ficar em casas de acolhimento por dois anos, mas é evidente que em muitos casos isso não ocorre. E o tempo, nesses casos, é muito doloroso para quem sonha com uma família. Mais do isso, é prejudicial e pode dificultar a adoção. Números do Cadastro Nacional de Justiça (CNJ) demonstram isso: dos 40.917 pais pretendentes disponíveis na fila para adotar, apenas 1.797 aceitam crianças com até sete anos, por exemplo.

O Estatuto também diz que o processo de destituição, de retirada da família biológica, deve durar seis meses. O que também não ocorre, na maioria das vezes em função da complexidade dos casos. O sistema judiciário tem como norma esgotar todas as possibilidades de manter aquela criança ou adolescente na família biológica, o que faz com que o processo de prolongue muitas vezes, segundo o juiz Leoberto Brancher.

– Não existe uma fatura líquida e certa que a gente possa simplesmente entrar e cortar o vínculo entre a criança e a família biológica. O processo de destituição familiar é uma amputação. Muitos se perguntam “por que o juiz não tira essa criança de uma vez da família?”. Ora, não tira porque não entregam. E ela tem o direito de não entregar e um arsenal de recursos jurídicos para se proteger da intervenção do Estado – explica.

O magistrado afirma que nesses casos envolvendo adoção, não deve haver chance para erro e todo o cuidado deve ser tomado:

– Se precipito ações, tenho receio de ferir pessoas e depois precisar reverter uma decisão. Já tive experiências horríveis de ter que tirar uma criança da família que a adotou. Prefiro ter cautela.

Sergio Kreuz, juiz auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça do Paraná, reforça:

– Não podemos simplesmente tirar crianças e adolescentes das famílias, sem que elas tenham a oportunidade de tentar mudar a estrutura familiar para melhor assistir os filhos. Tudo isso demanda tempo.

Apadrinhamento não é opção

Assim como o acolhimento familiar, o apadrinhamento afetivo também vem sendo discutido em Caxias. Este, porém, não está no planejamento a curto prazo da Fundação de Assistência Social (FAS). A modalidade já foi desenvolvida nos abrigos da cidade há anos, mas não foi adiante em função de questões administrativas. No ano passado, o poder público chegou a anunciar que lançaria editais para convocar empresas e grupos para implantar o serviço, mas nada saiu do papel.

– O apadrinhamento é muito desafiador e muito positivo, já que as crianças e adolescentes podem sair aos finais de semana dos abrigos e instituições e conhecer novos lugares. Todo mundo sai ganhando – opina Marta Mazzuchini, presidente do Instituto Filhos, de Caxias.

Para Rosana Menegotto, presidente da FAS, a sistemática ainda não é tão clara assim. Ela garante que a equipe da Fundação também está estudando essa modalidade, mas não acredita que algo avance ainda neste ano sobre o assunto.

– Bem bom pegar a criança, passar o final de semana e depois levá-la de volta, mas como fica a sua cabeça depois? Em um dia, ela tem muita atenção; no outro, pouca, em função da quantidade de crianças no abrigo. O apadrinhamento é questionável para mim porque também penso: qual o nosso direito de não permitir que isso aconteça com essa criança? Qual o nosso direito de negar que alguém que vá lá dar carinho por dois dias, sendo que é o que ela mais precisa?

Como adotar

  • Para adotar uma criança, é preciso ter no mínimo 18 anos.

  • Não importa o estado civil, mas é necessária uma diferença de 16 anos entre quem deseja adotar e a criança acolhida.

  • O primeiro passo é ir à Vara da Infância mais próxima e se inscrever como candidato. Além de RG e comprovante de residência, outros documentos são necessários para dar continuidade no processo.

  • É preciso fazer uma petição e um curso de preparação psicossocial. São realizadas, então, entrevistas com uma equipe técnica.

  • Após entrar na fila de adoção, é necessário aguardar uma criança com o perfil desejado.

  • Cartilhas e grupos de apoio podem ser consultados para esclarecer dúvidas e saber um pouco mais sobre o ato. O passo a passo pode ser verificado no site do CNJ.

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