Segundo bairro oficial de Caxias do Sul, Lourdes cresceu a partir de duas igrejas famosas, teve a influência do poder industrial das hoje extintas Maesa, Madezorzi, Gazola e Madezatti e virou endereço de duas galeterias emblemáticas que enfileiravam clientes na Rua Os Dezoito do Forte. Nos últimos tempos, o bairro viu a crise esvaziar pavilhões e salas comerciais. Agora, numa reversão surpreendente, a região desponta como o endereço certeiro de pubs e restaurantes que garantem mais de 300 empregos diretos e ajudam a quebrar o costumeiro tédio da vida noturna da cidade.
Parte dessa mudança de perfil é atribuída ao complexo gastronômico e cultural Fabbrica, inaugurado no ano passado no repaginado prédio da antiga Vinícola Luiz Michielon, nos fundos da Igreja Nossa Senhora de Lourdes. Só que há mais vida além da novidade preferida dos caxienses. Bares e restaurantes em outros pontos do bairro estão abraçando um público disposto a sair de casa à noite para aliar comida e bebida de qualidade num lugar confortável e descolado, mas que não exija a solenidade da camisa social e do sapato novo.
Ainda não é o que poderíamos classificar de uma área imersa na boemia como a Cidade Baixa de Porto Alegre ou com a mesma agitação no entorno da Estação Férrea, em São Pelegrino. Mas é um vigor interessante para uma parte da cidade que costumava dormir cedo.
A transformação do bairro em reduto de entretenimento não começou com tanto alarde como na época da revitalização do Moinho da Estação, ação empresarial que trouxe mais frescor a São Pelegrino em 2006 e estimulou a prefeitura a investir nos imóveis públicos do Largo da Estação Férrea. A onda de Lourdes é um pouco diferente, está mais distribuída pela comunidade e traz o empreendedorismo isolado de arquitetos, chefs de cozinha, cervejeiros e administradores de empresas. Muitos sequer se conhecem, uns buscavam alternativa de renda e outros sonhavam em implantar definitivamente em Caxias do Sul um padrão europeu: a diversão que começa antes das 18h e termina pouco depois da meia-noite, com algumas exceções.
As opções estão espalhadas num quadrilátero formado pelas ruas Dom José Barea, Júlio de Castilhos, Treze de Maio e Angelina Michielon. Levantamento do Pioneiro mostra que 11 endereços abriram as portas desde 2015 com uma nova proposta de atendimento, entre eles cervejarias e restaurantes gourmet. Somando locais mais antigos, já são 33 opções para jantar, para o happy hour ou para dançar na comunidade. Dos novos negócios, poucos atendem em prédios novos, já que a tendência é o aproveitamento das estruturas antigas da comunidade, geralmente alugadas por valores nada exorbitantes se comparados a outros pontos do Centro e de São Pelegrino.
Com mais pessoas buscando diversão em Lourdes e mais empresários com ideias novas, restaurantes tradicionais também se reinventam para oferecer algo a mais além da manjada combinação do pedido anotado-jantar na mesa-pagamento da conta-até mais. A expectativa de crescimento seguirá em alta para os próximos anos, caso o prédio da antiga Maesa seja efetivamente ocupado pela prefeitura, o que atrairia mais movimento. Mantendo o ritmo, Lourdes certamente dominará a cena da diversão noturna em Caxias.
Causa antipatia entre o pessoal da Fabbrica definir o endereço como o novo point noturno da cidade, já que isso lembra atração passageira.
Diferentemente dos bares e boates concentrados no Largo da Estação Férrea, a Fabbrica definitivamente não é um lugar para a paquera ou para os baladeiros profissionais. O atendimento geralmente se encerra por volta da meia-noite, a música não é alta e o público varia conforme o dia: as noites de quintas e sextas-feiras atraem o público mais jovem e os sábados parecem ser mais o território das famílias, embora isso não seja relevante para clientes e donos.
Os sócios da Salvador Tap Room, uma das opções do complexo no prédio da velha Vinícola Luiz Michielon, atrás da igreja de Lourdes, querem transformar o negócio deles na melhor cervejaria do país e garantir vida longa.
– Nossa temática é militar, é a guerra da cerveja artesanal – brinca Andrigo Salvador numa alusão aos nomes de cervejas, inspirados em generais e locais históricos da Segunda Guerra Mundial e de outros fatos relacionados ao militarismo.
Inaugurada em setembro passado, a cervejaria passou no teste das noites de verão com público lotando as mesas internas e o deck externo. O cenário histórico da velha cantina, que tem até uma chaminé preservada, ajuda a cativar, mas não dá para desconsiderar a proposta que quebra conceitos na noite caxiense. Na portaria da Fabbrica, o cliente ganha três cartões diferentes para usar na Salvador, na Becco Enopizzeria ou na Soulshi. Depois, é só quitar o consumo na portaria. No andar superior, funciona um centro de eventos. A Salvador, por exemplo, não tem garçom e o público é quem busca a cerveja ou a pizza no balcão, tudo muito à vontade. Dá para saborear uma IPA e observar os tanques onde são produzidas as bebidas.
Andrigo e o irmão dele, Leonardo, já tinham experiência com cerveja e usavam uma Kombi para vender produtos em eventos variados. Eles já conheciam a construção da vinícola e imaginavam que o lugar seria ótimo para um pub. Hoje, empregam 10 pessoas.
– Um dia vimos um pedreiro trabalhando na frente e fomos conversar com a dona – lembra Andrigo, que meses depois inaugurou a cervejaria ao lado do irmão e dos sócios Fabiano Gasperin, Cláudio Ferreira Costa e Jocemar Gross.
O empresário César Heleno Quadros, habituê da Fabbrica, acredita que a falta de opções diferenciadas mantém os caxienses em casa e, como não há público, poucos empreendedores se arriscam em investir.
– Quando viajo e saio, sempre observo a arquitetura. O local aqui é de nível internacional, tu está na rua, mas não está completamente na rua – elogia Quadros.
A música sertaneja é a alma da Duff’s Garage Bar, que surgiu no final da Luiz Michielon, em Lourdes, semanas após a inauguração da Fabbrica. É projeto de pai e filho.
– Nós abrimos em outubro de 2017. Sou da área hospitalar (analista administrativo) e meu pai era representante comercial. Ele teve a ideia, nós já conhecíamos o La Birra e decidimos investir na noite – conta Filipe Maia.
Ele e o pai, Luiz Maia, inauguraram o pub numa sala que abrigava uma tradicional sorveteria na esquina da Luiz Michielon com a Angelina Michielon. Como o local ficou pequeno, houve a mudança para um prédio a 170 metros da Fabbrica, também desocupado há meses, sinônimo do esvaziamento de salas comerciais enfrentado por Lourdes.
A Duff’s tem conceito diferente das opções do complexo da antiga Vinícola Michielon. Ali, é show de quarta a sábado. As noites de quinta a sábado atraem mais gente, sempre a partir das 22h30min, horário em que os músicos ligam o microfone e desatam canção atrás de canção.
– Nós geralmente vamos até a madrugada, dificilmente fechamos antes da 1h, às vezes vamos até as 4h – conta Filipe.
Com o sucesso do bar em Lourdes, a família abriu uma filial em São Marcos no início de julho. O negócio tem a ajuda da irmã, da cunhada, da namorada e da mãe. No total, a unidade em Lourdes garante renda para oito funcionários, entre contratados e terceirizados. O cast artístico inclui 20 músicos que se revezam em dias diferentes – um dos diferenciais é a tal Noite das Patroas, em que só as cantoras animam o público.
– Nossa ideia é fidelizar o cliente com o preço não muito caro – ressalta Filipe.
Ao oferecer pratos gourmet, chef Marcos Takayama ajuda a quebrar tradição das receitas mais conhecidas de Lourdes
Protegida pela sombra de uma árvore, havia uma casa de dois pisos. Logo o chef mineiro Marcos Takayma imaginou um bistrô. Três semanas depois, quando voltou a Lourdes para nova pesquisa, viu uma placa de aluga-se na moradia. Parecia um aviso.
É inegável o impacto positivo da revitalização do Moinho da Estação num endereço antes abandonado e tomado pelo vandalismo em São Pelegrino. A exemplo do trabalho realizado na antiga Vinícola Michelon, em Lourdes, a criação de espaços de cultura e lazer no prédio da família Tondo transformou o Largo da Estação Férrea na área mais efervescente da cidade. Só que o trabalho atraiu um público que prefere ficar no lado de fora dos bares e restaurantes, o que trouxe problemas de segurança. É um aprendizado relevante para toda a cidade.
Se a tradicional Sorveteria Urca migrou do porão em que atendeu durante 25 anos na Rua Angelina Michielon para uma área moderna e mais ampla ao lado, é sinal de que pontos tradicionais não estão indiferentes à mudança de conceitos de entretenimento e gastronomia de Lourdes. Antes, o público enfrentava a longa fila para sentar em mesas simples, tomar sorvete e ir embora. No auge do verão, a climatização não era muito agradável. Hoje, a estrutura é um convite para que os clientes curtam o local por mais tempo.
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