develop free website







Quando moradores de rua vivem ao lado

Questão envolvendo casas e prédios ocupados em Caxias vai além da segurança pública

É difícil quantificar, mas sabe-se que são mais de duas centenas de pessoas vivendo em situação de rua em Caxias do Sul. O mapeamento da Fundação de Assistência Social (FAS) se refere aos acompanhados com regularidade pelo Centro Pop Rua, serviço que assiste a esse público na cidade. Além desses cerca de 200, existe uma população flutuante ainda maior de desabrigados temporários que acessam o serviço ou pessoas que estão de passagem pelo município, o que fez com que em abril deste ano o número de atendidos chegasse a 483.

Sem um local para chamar de seu, muitas dessas pessoas acabam ocupando prédios e casas que foram abandonados pelos proprietários ou estão desocupados. Os donos podem ser pessoas físicas, empresas ou poder público. Se o local está em desuso, pode se tornar um alvo em potencial de ocupação. A partir de indicações de habitantes, a reportagem visitou quatro locais que abrigam esse público em Caxias. O assunto é polêmico. Se por um lado, os imóveis servem para proteger homens e mulheres do frio e da chuva, por outro, se tornam pontos de uso de drogas, prostituição e algazarra, gerando queixas na vizinhança e, até, questão de segurança pública. Um deles, por exemplo, foi palco de pelo menos dois crimes. Mas, mais do que isso, envolvem aspectos sanitário, de saúde, habitacional e social.

Os imóveis encontrados pelo Pioneiro ficam diferentes bairros de Caxias: Marechal Floriano, Jardelino Ramos, Pio X e São Pelegrino. Em outros dois locais, imóveis que eram utilizados como moradia, segundo os vizinhos, atualmente, não são mais frequentados – um na esquina da Ernesto Alves com Avenida Brasil, parcialmente destruído, e outro na BR-116, que foi demolido.

Em todos os locais habitados por moradores de rua, os vizinhos das redondezas afirmaram que eles não são agressivos nem praticam delitos. O problema é, de forma geral, o acúmulo de lixo, a sujeira, o mau cheiro e, em um caso, o barulho.

Os locais não tem ligações de água ou energia elétrica, tampouco correm o risco de desabar. Ao menos que se saiba. As pessoas agem por conta própria, ou seja, não têm apoio de um movimento de luta pela moradia. Por isso, são situações diferentes da que ocorreu em São Paulo, onde um edifício ocupado por centenas de famílias incendiou e ruiu em 1º de maio. Mas, quem mora nas imediações dos locais em Caxias acredita que a melhor alternativa seria dar um uso aos imóveis.

Do atendimento à saúde ao abandono

Mobirise

O imóvel que apresenta maior concentração de moradores de rua em Caxias fica no bairro São Pelegrino, e pertence ao município. A estrutura, que já abrigou o Centro de Especialidades em Saúde (CES), está em desuso há sete anos. No bloco que dá frente para a Rua Pinheiro Machado e na lateral dele, onde existe uma escadaria, as aberturas foram fechadas com tijolos pela prefeitura. Porém, uma delas foi reaberta pelos próprios ocupantes que continuam tendo acesso ao interior do imóvel.

– Tem pessoal que mora, tem pessoal que entra e sai. De noite é uma gritaria. É lugar de droga, de prostituição. Pra gente (moradores), eles não fazem nada... é a bagunça, só – relatou uma moradora das imediações.

Na lateral e fundos do edifício, onde ficam outros blocos, as aberturas não foram fechadas, mas o acesso ao pátio é mais difícil. A principal entrada é mesmo pela escadaria.

– Quando eles (moradores de rua) invadiram, o prédio estava inteiro. É uma pena, porque é um prédio enorme e a prefeitura pagando aluguel em outros lugares... – pondera a moradora.

Mobirise

Dois homens que habitam o local _ um de 29 anos e outro de 34 – conversaram com a reportagem, na tarde da última quinta-feira. Eles não souberam dizer quantas pessoas vivem no prédio, mas disseram que usam o lugar para se abrigar da chuva.

Aqui não tem uma quantidade (número fixo de frequentadores). Quando o pessoal está cansado, vai ali e dorme. De manhã sai. Quando chove, se escondem para dormir – disse um deles.

–É um prédio abandonadaço. Não tem energia elétrica, não tem nada. Todo mundo que dorme aqui sabe que não é para tocar fogo. Todo mundo cuida – reforçou o outro, referindo ao perigo de incêndio no lugar.

Ele defende o uso do imóvel como moradia para pessoas que vivem nas ruas:

Sou morador de rua, usuário de drogas. O lugar que a gente tem pra dormir é aqui, a princípio – disse o homem de 34 anos que limpa parabrisas de carros nas vias da cidade e vive no lugar há cerca de um ano. 

Moradores de rua disseram que são assistidos pelo Centro Pop Rua, mas se queixaram de truculência por parte de guardas municipais, que entrariam no local quando eles estariam dormindo e os agrediriam fisicamente para que saíssem do prédio.

A prefeitura disse que no caso de prédios públicos cabe à Guarda Municipal retirar os ocupantes. O comandante interino da Guarda, Cristiano Marcos Vitali, falou que não há truculência:

– Todos eles já foram orientados inúmeras vezes pela Guarda de que o local não pode ser ocupado. E, quando vamos lá, eles não querem sair. Vamos agir para retirá-los e, se preciso, faremos uso progressivo da força.

De acordo com a Secretaria de Planejamento (Seplan), o imóvel está sob análise técnica. Será lançada uma licitação para escolha da empresa que fará os ensaios técnicos a fim de avaliar a estrutura e emitir um laudo sobre o prédio. A partir daí, será possível saber o que custará menos ao município: a reforma ou a construção de um novo prédio no terreno. No termo de doação, a exigência do governo federal foi de que a estrutura seja utilizada pelas áreas da saúde e da assistência social. Por isso, a ideia é que o prédio abrigue unidades da Secretaria Municipal da Saúde e da Fundação de Assistência Social (FAS).

Casa ocupada já foi local de crimes

Mobirise

A casa número 807 da Rua Vinte de Setembro, entre a Treze de Maio e a Vereador Mario Pezzi, no bairro Jardelino Ramos, é um exemplo de como um imóvel abandonado pode se tornar um problema de segurança pública. O local, considerado pela polícia como um ponto de consumo de drogas da cidade, já foi palco de pelo meno menos dois crimes no último ano.

Em agosto de 2017, criminosos invadiram o lugar e balearam uma mulher de 22 anos nas costas. De acordo com testemunhas, dois homens chegaram em um carro e gritaram ser da polícia. A dupla rendeu os usuários de drogas que estavam no local e os colocaram de frente para a parede. Diversos tiros foram efetuados, mas apenas um atingiu a vítima. A situação poderia ter sido mais grave. Os atiradores carregavam um galão de gasolina, mas não o utilizaram.

Dois meses antes, um homem de 37 anos foi flagrado vendendo drogas em frente a casa. Ele foi preso com 20 buchas de crack, uma porção de maconha e uma pequena quantia em dinheiro e encaminhado para a Penitenciária Estadual, no Apanhador. Além da prisão, um usuário de drogas também foi detido e autuado por posse de entorpecente.

Moradores do entorno dizem que o dono do imóvel mora em outra cidade e que antes de ser ocupada, havia placas de uma imobiliária que anunciavam a venda da casa. Os anúncios foram retirados pelos moradores de rua que há mais de um ano usam a estrutura – um chalé na frente do terreno e uma parte de alvenaria de dois pavimentos nos fundos. Ainda conforme os habitantes dos arredores, ao menos cinco pessoas que aparentam ter mais de 30 anos morariam no lugar. Além desses, outros frequentam a residência.

– Eles convivem bem com a vizinhança – disse um morador.

Na última quinta-feira, havia sacos de lixo e muita sujeira na frente do imóvel. As aberturas estavam cobertas por tábuas. A reportagem encontrou com um casal que demonstrou interesse em comprar a casa e afastar os moradores de rua.

O proprietário do imóvel, de 67 anos, que atualmente, mora em São Paulo, disse que já retirou os invasores três vezes, mas eles retornam:

– Eles quebram tudo. Destruíram minha casa. Estou tentando vender mas não consigo. Sou aposentado e não tenho como (recursos) demolir.

Casa no Marechal Floriano é sinônimo de dor de cabeça para a vizinhança

Mobirise

Preocupado com a situação de uma casa abandonada nas imediações, um morador da Rua Antonio Pieruccini, no bairro Marechal Floriano, entrou em contato com o Pioneiro. A casa fica entre a Rua Carlos Bianchini e Índia Ceci e é ocupada, segundo os moradores, para consumo de drogas e prostituição.

– É bem complicado. Temos medo porque os moradores de rua vão ali. Já vimos roupas íntimas. É uma questão de segurança e de higiene, até risco de dengue – se queixou um morador.

A casa está abandonada há anos, segundo a vizinhança. A frente foi fechada por tábuas, mas elas estão em estado ruim de conservação e não servem para isolar o lugar dos invasores.

– Eles retiram as tábuas de frente e entram para fumar. É perigoso porque não sabemos quem são (as pessoas) – disse outra moradora dos arredores.

O comentário entre os habitantes das redondezas é a ocupação do imóvel à noite. Uma outra moradora contou que recentemente o dono do imóvel fez uma limpeza no pátio e retirou um morador de rua da casa. Mas, na última sexta-feira, ainda era possível ver um colchão entre as paredes.

Ao Pioneiro, o proprietário, um funcionário público municipal aposentado, disse que, há algum tempo, foi notificado pela prefeitura que enviou uma equipe para verificar se havia pontos de água parada que pudessem se tornar criadouros de mosquitos transmissores de doenças, mas que, à época, nenhum foco foi localizado. Confirmou que fez uma limpeza no local, retirou os moradores de rua e fechou a frente da casa com tapumes improvisados. Assim que tiver condições financeiras, o aposentado falou que pretende fazer uma cobertura nova e alugar a casa.

Ex-sede da Brigada virou moradia

Mobirise

Quem diria que nos idos de 1970 o terreno de número 2.565 de 5 mil metros quadrados na Rua Visconde de Pelotas, entre a Rua João José Cruz e a Duque de Caxias, no bairro Pio X, abrigou a sede da Brigada Militar. O formato da fachada bem lembra a dos quartéis com longos muros e um portão central. Mas a área sempre foi particular. Inicialmente, funcionava ali uma madeireira da família dona do imóvel. Depois de a polícia militar deixar o local, em 1974, nas três décadas seguintes, foi endereço de alguns estabelecimentos como uma indústria de móveis, metalúrgica e, por último, um depósito de sucatas de carros. Há cerca de 10 anos, a estrutura está abandonada e à venda.

A fachada foi mantida, mas a maior parte já foi demolida e se tornou uma grande área vazia. Os vãos das janelas da frente foram preenchidos por tijolos, contudo, conforme os moradores dos arredores, pelo menos uma pessoa que utiliza o local para se abrigar, pula facilmente o portão e entra.

– Tem um morador de rua que chega sempre lá pelas 2h ou 3h e pula o portão. Antes era bastante gente, mas, agora, só sabemos desse. Ele não incomoda – relatou um morador.

Segundo um familiar dos proprietários, o número de pessoas que ocupam o local diminuiu muito desde o ano passado, quando houve um incêndio, conforme o familiar, causado pelos próprios moradores de rua. As chamas destruíram parte da estrutura e, com isso, os proprietários resolveram desmanchar o telhado, o que acabou por afastar os ocupantes. A expectativa está na venda do imóvel.

Em dois locais estruturas foram demolidas

Mobirise

Dois outros locais que anos atrás eram ocupados por moradores de rua foram parcial ou totalmente destruídos em Caxias: uma antiga fábrica de bebidas na esquina da Rua Ernesto Alves com Avenida Brasil, no Centro, e uma antiga indústria que ficava na BR-116, no bairro Cristo Redentor.

Do imóvel do Centro resta a grande fachada que esconde um terreno de oito mil metros quadrados. Uma placa indica que a área está a venda. Um vizinho diz que, já há alguns anos, o lugar deixou de ter a presença de usuários de drogas:

– Hoje me dia, não vem mais ninguém ali. Uma empresa tem autorização dos donos para largar os cachorros à noite – contou.

Já o imóvel que fica na margem da rodovia foi demolido, restando um terreno baldio apenas com uns escombros. Mas ainda há, por lá, vestígios como peças de roupas e mau cheiro, que indicam que o lugar é frequentado até hoje.

Mais do que uma questão de segurança

A Brigada Militar mapeou imóveis abandonados em Caxias do Sul com ocorrências policiais relacionadas como pontos inseguros da cidade. O último levantamento é do final do ano passado e apontou 10 casas, prédios ou terrenos baldios com essas características. Isso não significa que esse seja o número total. São os lugares com registros de ocorrências. A radiografia já havia sido feita em 2016. À época, os dados (informações e fotografias) foram encaminhados à prefeitura. A ideia era que os donos fossem notificados a providenciar formas de isolar os locais, impedindo a entrada de pessoas.

– O responsável por manter o terreno cercado e em condições mínimas de limpeza é o proprietário. A prefeitura tem a atribuição e faz esse trabalho de notificação dos donos – diz o tenente-coronel, Jorge Emerson Ribas, comandante do 12º Batalhão de Polícia Militar (12º BPM).

Para o comandante, as ocupações desses locais são sim uma questão de segurança pública, mas não somente isso.

– Existe um problema social, porque são moradores de rua. Já fizemos alguns apoios nesses locais para serviços de saúde e social e sabemos que eles preferem ficar na rua, onde podem consumir drogas livremente, a ir para um abrigo ou albergue, onde terão regras a cumprir. Mas isso gera insegurança, porque, por serem usuários de drogas, eles acabam cometendo furtos e roubos nas imediações. Sem contar a questão de higiene que traz problemas para os vizinhos. É um problema que precisa ser encarado por várias frentes. Não somente pela polícia ou pela saúde ou pela assistência social. Mas tem que ser um trabalho integrado. Ninguém tem responsabilidade isolada nem vai conseguir resolver essa situação de maneira isolada – pondera Ribas.

Em breve, a BM deve rever os locais para encaminhar nova lista à prefeitura. Mesmo assim, para o tenente-coronel, a solução não está na demolição das edificações.

– Acredito que da maneira como está o problema vai persistir. A urbanização melhora o ambiente, mas eles vão permanecer na rua de um jeito ou de outro e vão para outro local. O problema não se resolve com a demolição. Ele vai migrar. Por isso, é preciso um esforço multidisciplinar – conclui.

Prefeitura diz que proposta é criar comitê intersetorial

Mobirise

Questionada se havia registro de notificações aos imóveis mencionados, a Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) disse que "não foram encontradas notificações para esses endereços." A secretaria explicou ainda que "em caso de imóvel abandonado somente compete a fiscalização da SMU notificar para manter limpo (mato alto) e também para fechamento do terreno – fechamento normal com cerca/muro. A situação de invasão por moradores de rua e/ou usuários de drogas requer ação do proprietário do imóvel – direito a propriedade privada, que poderá acionar a Brigada Militar."

– Quando recebemos alguma denúncia, se é prédio particular, mandamos uma notificação para o proprietário para limpar ou fechar de alguma forma ou desmanchar se for uma casa abandonada para que evite esse tipo de uso. Quando é prédio público, como esse da antiga CES, quem fiscaliza as áreas públicas é uma equipe da Guarda Municipal. Então, sempre que recebemos informação, também temos que fazer a fiscalização, limpeza e fechamento – explicou a secretária do Urbanismo Mirangela Rossi.

Conforme a diretora de Proteção Social Especial de Média Complexidade da Fundação de Assistência Social (FAS), Ana Maria Franchi Pincolini, uma das propostas para solucionar a questão é a criação de um Comitê Gestor Intersetorial, já previsto no Decreto 7.053 de 2009, que institui a política nacional das pessoas em situação de rua:

– Penso que esse é um futuro que temos que ter no horizonte, mas ainda temos uma caminhada a construir nesse sentido. Enquanto FAS, responsável pela política de assistência social, hoje temos focado nossos esforços no atendimento cotidiano às pessoas em situação de rua, o que implica em construir planos individuais de atendimento, onde essas demandas por moradia, saúde, dentre tantos outros encaminhamentos, vão sendo contemplados através de articulações que vamos fazendo conforme a singularidade de cada caso.


Denúncias de imóveis em situação de abandono podem ser feitas por meio do Alô, Caxias pelo 156

Texto e diagramação
Lizie Antonello
lizie.antonello@pioneiro.com


Fotos/Edição de vídeo
Lucas Amorelli
lucas.amorelli@pioneiro.com

Compartilhe