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Descaracterização
PREOCUPA

Entidades e pesquisadores apontam futuros distintos para área que é patrimônio do Estado e um dos principais destinos turísticos da região 


Texto
Lucas Demeda
lucas.demeda@pioneiro.com

Arte e Infografia
Cíntia Colombo
cintia.colombo@pioneiro.com

Fotos
Diogo Sallaberry
diogo.sallaberry@pioneiro.com
Roni Rigon
roni.rigon@pioneiro.com



Mobirise

O Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha, é case de sucesso absoluto no turismo: foram cerca de 410 mil visitantes em 2016, um movimento mais de três vezes acima do registrado há 10 anos, conforme estimativa da Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos (Aprovale). 


É o único local do Brasil cujas cerca de 10 a 12 milhões de garrafas de vinho e espumante produzidas anualmente têm certificação de Denominação de Origem (DO), reconhecido indicador de qualidade. A conquista veio em 2012, mesmo ano em que a Assembleia Legislativa aprovou uma lei que integra a área ao patrimônio histórico e cultural do Estado.

Um olhar mais aproximado, porém, revela mais do que uma paisagem idílica e uma experiência de desenvolvimento bem sucedida. A própria prosperidade do Vale gera dilemas sobre o futuro da região.


– Há uma dinâmica territorial muito intensa no território dos Vinhedos, cada vez mais rápida e com mais atores envolvidos – alerta Ivanira Falcade, doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora do Mestrado em Biotecnologia e Gestão Vitivinícola da Universidade de Caxias do Sul (UCS).


Conforme a pesquisadora, que mapeou a zona de Denominação de Origem em esforço coordenado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Uva e Vinho, o aumento do interesse pela área traz consequências. Uma delas é o incremento do valor da terra, que, em combinação com a pressão urbanizadora dos municípios próximos e o envelhecimento da população rural, abre espaço para a especulação imobiliária. Além disso, o fluxo de visitantes incentiva a instalação de empreendimentos turísticos cada vez maiores, nem sempre ligados à vitivinicultura.


São questões que, segundo Ivanira, contribuem para a gradual descaracterização do Vale.


– Há uma mudança bem significativa no uso do solo ao longo das rodovias. Há espaços ocupados por outras construções e atividades econômicas que não são mais vinhedos. Se pensarmos no que o Vale gerou, de forma direta ou indireta, com uma economia multivariada, descaracterizar é mais ou menos matar a galinha dos ovos de ouro – define.


A preservação das características “originais” do Vale dos Vinhedos é uma questão complexa, com tantos níveis quanto os ocupados pelas parreiras nas encostas das colinas da região.


A lei que reconhece a área como patrimônio estadual é, segundo o governo do Rio Grande do Sul, mais simbólica do que regulatória. A ocupação do Vale é definida pelas cidades de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul, que dividem a área.


Pesam na elaboração dos Planos Diretores de cada município os interesses de produtores de uva e vinho, empreendedores turísticos da região e da população local, entre outros.


Em três reportagens, o Pioneiro ouve os atores e mapeia os principais fatores determinantes na ocupação do Vale dos Vinhedos para entender para onde vai o destino da região


Foram cerca de 410 mil visitantes em 2016, movimento mais de três vezes maior do que o ocorrido há 10 anos

Para entender o vale

Mobirise

 O Vale dos Vinhedos não é uma região político-administrativa, como um bairro ou um distrito. A área de cerca de 81 km² (mapa ao lado) é delimitada pela indicação geográfica conquistada pelos vitivinicultores para certificar os produtos feitos ali.  

 60% do território estão no distrito Vale dos Vinhedos, de Bento Gonçalves; 33% pertencem a Garibaldi; e 7% a Monte Belo do Sul.  

 Em 2012, o Vale foi reconhecido como Denominação de Origem (DO). Os vinhos que saem das vinícolas participantes da Aprovale obedecem regras de cultivo e produção, assegurando que 100% da matéria-prima vêm da área delimitada.  

 Essa é a mesma área considerada como patrimônio histórico e cultural do Estado.

A proteção do Vale

  1. Bento Gonçalves  -  O Plano Diretor busca preservar as características do Vale reservando a ocupação para atividades predominantemente ligadas à vitivinicultura e delimitando a altura e densidade máxima das construções. – O Hotel Villa Michelon é um empreendimento grande, mas as construções são baixas e espaçadas. Já o SPA do Vinho, se fosse construído com as normas atuais, estaria fora do padrão por ser muito alto – exemplifica Melissa Bortoletti Gauer, diretora adjunta do Ipurb. o Instituto de Planejamento Urbano.  A cidade elaborou, em parceria com a UFRGS, um estudo para a revisão do Plano Diretor que expande a área de proteção do Vale, justamente para evitar a descaracterização. O projeto será discutido este ano na Câmara.
  2. Garibaldi  - A assessoria de imprensa da prefeitura informa que o Plano Diretor de 2008 reconhece a importância do Vale dos Vinhedos, que foi transformado em zona rural. Há restrições para a densidade de ocupação e são incentivadas “atividades relacionadas ao turismo e similares, vinícolas, cantinas e agroindústrias”. No período anterior a 2008, porém, alguns condomínios foram aprovados. Atualmente, os parcelamentos mínimos são de 20.000m².
  3. Monte Belo do Sul - Conforme a secretária de Administração e Fazenda do município, Viviane Ceriotti, não há restrição específica de ocupação na área do Vale. A cidade regula o território conforme leis gerais de preservação ambiental e zoneamento urbano e rural. 
  4. Governo do RS - z Apesar de declarado patrimônio histórico e cultural pela Lei 14.034, de 2012, a área não tem nenhuma proteção estadual específica. O diretor de Turismo da Secretaria de Turismo, Esporte e Lazer do RS, Abdon Barretto Filho, diz que a iniciativa do Legislativo é simbólica. – Tem um papel importante de homenagem e valorização da área, mas precisa ser complementada pela atuação de outros órgãos, que cuidam do patrimônio e da questão ambiental – defende. 
  5. Ministério Público - Em situações específicas, pode intervir para garantir a preservação do Vale. Em 2011, uma ação civil pública do MP em Bento Gonçalves foi ajuizada para evitar a mudança de zoneamento em um trecho da área. Uma construtora pretendia adquirir um terreno de um produtor rural para lotear. Com a alteração no Plano Diretor, poderiam ser construídos prédios de cerca de 10 andares, o que, para a Justiça, descaracterizaria a paisagem.










As pressões sobre a área

Um passeio rápido pelas principais vias do Vale dos Vinhedos possibilita a observação das pressões sobre a área detectadas pela geógrafa Ivanira Falcade. Ao acessar o Vale pela BR-470, passando pelo bairro Municipal, em Bento Gonçalves, e entrar na Via Trento, na Linha Leopoldina, é necessário parar e olhar para trás. A extensão verde composta por parreirais, vegetação nativa e residências tradicionais é interrompida por casas enfileiradas nas encostas das colinas, que acabam constituindo a linha do horizonte em direção ao centro da cidade. Ali, fica claro o impacto de décadas de crescimento urbano desordenado sobre o Vale. Conforme Ivanira, movimento parecido acontece no perímetro urbano do norte de Garibaldi.
Para a professora do Programa de Pós-graduação em Turismo e Hospitalidade da UCS, Susana Gastal, dois processos concomitantes se verificam no Vale:

– Têm dois pontos. Em uma ponta, há uma região que está favelizada. Em outra entrada, a ocupação é mais elitizada – aponta.

Ela se refere à venda de lotes para a construção de condomínios residenciais fechados na região, fenômeno mais presente na área da ERS-444, acesso principal ao Vale. Um destes empreendimentos é o Condomínio Parque dos Vinhedos, que ocupa 190 mil metros quadrados divididos em 105 lotes no coração do Vale. Conforme Marcos Bertinatto, sócio da Pontual Imóveis, responsável pela comercialização do empreendimento de alto padrão, há um aumento da procura por moradias na região.

– As pessoas têm interesse por essa proposta de condomínio fechado principalmente por causa da segurança. Isso sem contar a beleza do Vale e a proximidade com Bento, são cerca de 10 minutos de carro – avalia.

Segundo Bertinatto, a presença desse tipo de empreendimento
não contribui para a descaracterização da área.

– O Parque dos Vinhedos foi construído preservando muita área verde, dentro da ideia de um uso responsável. Eu vejo que, quando são empreendimentos de qualidade, não há esse risco.

O arquiteto e doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) Pedro de Alcântara Bittencourt César classifica a mudança no perfil da ocupação no Vale dos Vinhedos como um processo de “gentrificação”.

– É um termo usado mais para cidades, quando ocorre o esvaziamento de uma área, a ocupação por uma população de menor poder aquisitivo, e depois mais de elite. No Vale, nunca houve esse esvaziamento, mas está acontecendo uma apropriação – explica.

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