Cenário cada vez mais raro

Para ler ouvindo:

Ao caminhar pelas principais vias que cortam a região central de Caxias do Sul, é possível observar o quase desaparecimento das casas

PUBLICADO EM 7 e 8 DE JANEIRO DE 2017

TEXTO

Tríssia Ordovás Sartori

trissia.ordovas@pioneiro.com


IMAGENS

Boca Migotto, divulgação


INFOGRAFIA

Guilherme Ferrari

Essa também vai desaparecer!! – sentencia o aposentado Nestor Slongo, 87 anos, da janela da residência de madeira sem pintura, a mais antiga situada na Rua Machado de Assis, no bairro Medianeira. Ele se recorda do tempo em que a via era um banhado e diz ter acompanhado a construção de todos os edifícios das redondezas. Em breve, vai mudar-se para um prédio, e a
residência onde nasceu vai ser demolida, para dar lugar a um edifício.

A previsão pouco otimista do aposentado é um sinal dos tempos: ao caminhar por ruas que cortam os bairros Cinquentenário, São Pelegrino, Centro e Nossa Senhora de Lourdes é possível observar o parcial desaparecimento das casas, que quando ainda existem, quase sempre estão envoltas por construções de vários andares.

O legado da arquitetura dos primórdios da cidade quase passa despercebido. Essas casas de madeira unifamiliar, que tinham uso misto, residencial e comercial, foram as construções predominantes na zona urbana de Caxias até o final do século 19. De acordo com o artista plástico e musólogo Ricardo André Longhi Frantz, no artigo O Centro Histórico de Caxias do Sul: uma síntese na óptica patrimonial, “formou-se neste período uma paisagem urbana e uma estética de arquitetura vernacular em madeira que eram muito semelhantes às que hoje ainda sobrevivem no Centro Histórico de Antônio Prado, e que já foram objeto de numerosos estudos acadêmicos pelo seu interesse arquitetônico e valor estético, com criações por vezes de originalidade estrutural e austera beleza”. Mas Caxias crescia em um ritmo vertiginoso, e o progresso significava a destruição da memória.

Foi na década de 1920 que um novo Código de Posturas entrou em vigor, e o documento proibia novas construções de madeira no Centro de Caxias, bem como a ampliação das casas já existentes. O primeiro Plano Diretor, elaborado por Edvaldo Paiva e Francisco Macedo, foi publicado em 1949, dando uma série de instruções sobre as construções, saneamento, urbanização geral e outros tópicos. Entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960, surgiram leis estipulando novos parâmetros para a altura dos prédios, materiais de construção, alinhamentos, afastamentos, estética e outros aspectos.

A zona central de Caxias começava a ser verticalizada, e só no final da década de 1970 foi estipulada altura máxima para os prédios no Centro em oito pavimentos, por segurança contra incêndios. Paralelamente ao desenvolvimento econômico da cidade, o Centro perdia muitos prédios históricos e foi, aos poucos, sendo descaracterizado.

Frantz ressalta que “desde os anos 60, o estilo das novas edificações se tornou cada vez mais internacionalizado, perdendo-se tudo o que um dia houve de originalidade na arquitetura local (...). Mas nesta altura a sociedade já se “desitalianizava” (...) e sua cultura se tornava definitivamente cosmopolita. Já eram novos tempos, e o passado colonial, com sua ênfase nos valores tradicionais, na ligação com a terra, na fé religiosa católica e na herança da língua, folclore e cultura italianas, ficara para trás”. Havia, na época, uma rejeição ao passado (e, consequentemente, à pobreza atávica), que ainda é latente na sociedade.

A arquiteta e pesquisadora Ana Elísia Costa explica que a ausência de registro e reflexão sobre a casa de ontem compromete o entendimento e reflexão dos modos de morar hoje, tornando os indivíduos escravos de modismos e sem identidade própria:

– Esta é uma visão processual importante! A Caxias de hoje, tão ansiosa por construir a imagem de uma cidade próspera, é também a Caxias de ontem, cuja ausência de memória pode comprometer o que sua identidade tem de melhor.

É o patrimônio que se perde, na mesma proporção que a especulação imobiliária cresce – para se ter uma ideia, a Secretaria Municipal de Urbanismo autorizou a construção de 1.129 edificações em 2016, ano considerado de baixo desempenho para o setor da construção civil.

ANÁLISE

Outra iniciativa de importância foi a Lei Orgânica de 1999, que determinou que todos os imóveis com mais de 50 anos fossem submetidos a uma análise especializada do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural no caso de se pretender efetuar reformas ou demolições.

Exemplares de residências de madeira, todas situadas na Rua Sinimbu, permitem uma volta ao passado por meio das edificações encrustadas entre edifícios. Para se ter uma ideia, em 1900, o centro urbano de Caxias tinha 426 casas térreas e 76 sobrados.

Casas são retrato de um "saber fazer"

No centro, na Avenida Júlio de Castilhos,
aparece um contraste emblemático
da casa de madeira que exibe o
refinamento do trabalho manual por meio dos lambrequins, ladeada por um edifício.

Ao versar sobre a importância da arquitetura de madeira e pedra, a arquiteta e pesquisadora Ana Elísia Costa refere-se a ela como “retrato de uma cultura”, de um “saber fazer” que os imigrantes desenvolveram ao longo do processo de colonização. 

– É importante destacar que a madeira não era empregada pelos italianos em sua terra natal e aqui o uso deste material exigiu um domínio gradativo e empírico. Inicialmente, as peças de madeira eram hiperdimensionadas, com cortes imprecisos e encaixes grosseiros... Dos “erros” iniciais, os imigrantes depreenderam lições e passaram a dominar o uso da técnica, chegando a soluções muito refinadas, quer estruturais, quer estéticas, como podem ilustrar os delicados lambrequins. Trata-se de um patrimônio – afirma a pesquisadora.

Segundo Ana Elísia, as casas são valiosos registros de uma cultura, onde estão traduzidos, além de técnicas construtivas e modismos estilísticos, os valores de uma cultura de morar: desejos de privacidade, hábitos de higiene e de trabalho doméstico, perfil das famílias e relações de domínio entre seus membros.

– A cozinha grande, por exemplo, foi o lugar de acolhimento e encontro da grande família ao redor da mesa. A cozinha compacta, por sua vez, foi introduzida para atender famílias menores e pela necessidade de se ter espaços equipados e organizados que permitissem a racionalização dos afazeres domésticos e a inserção da mulher no mercado de trabalho... – compara.

Esses dois exemplos mostram alguns valores que uma casa pode documentar – e o que pode se perder.

– Hoje, as pessoas banalizam suas casas, transformadas em apartamentos erguidos em edifícios de gosto duvidoso. Ali, a vida transcorre na mais “infinita paz”, com elevadores, água encanada, aquecimento por split e serviços de internet... Contudo, estas mesmas pessoas não se dão conta de que esta casa se transformará ao longo dos anos, como a casa de ontem se transformou – avalia.

A solução para evitar o desaparecimento desse legado, para Ana Elísia, tem duas saídas: educação patrimonial e vontade política:

– Sem as duas frentes, a cidade ficará a mercê dos construtores que, via de regra, priorizam ganhos econômicos em detrimento da memória de uma cidade.

Em 1979 foi criado o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural – COMPAHC, órgão de assessoramento do Executivo, composto por intelectuais e especialistas ligados ao movimento conservacionista, autores, em 1982, do primeiro inventário dos bens edificados de interesse patrimonial na cidade.

Rua Sinimbu

Os 18 do Forte

Humberto de Campos

Para não regar um jardim de ruínas

Por Marcelo Caon*

Atualmente, o patrimônio cultural edificado de Caxias se circunscreve em um promissor locus de potencialidade de memória e história. Mas, no geral, e até agora, o comportamento cultural majoritário tem mantido a cidade no limite entre um crescimento natural amorfo e as relíquias arquitetônicas de um passado comercial-industrial superado. Continuando assim, Caxias será no futuro, em uma expressão, um JARDIM DE RUÍNAS. Jardim, neste caso, de cimento, que cresce a cada dia e gera a superação construtiva do que havia antes, deixando a ruína para os caxienses do futuro decidirem o que fazer. Isso já acontece, basta olharmos para os prédios dos anos 60 (em diante) que sequer são pensados como malha turística ou patrimonial, tampouco considerados bens afetivos (pelos descendentes das gerações de 30, 40 e 50).

Claro, Caxias não é a pérola única deste tipo de comportamento, é só mais uma. Está inserida naquilo que chamo ruínas da modernidade. Significa que há falta de imaginação sobre o urbano e o rural. Somam-se ao restante das construções industriais da primeira metade do século 20 e ainda, a arquitetura de serialização, típica da segunda metade do mesmo século, provinda do modelo estadunidense. A tendência é a de que quanto mais opções houver no mundo hipermoderno, haverá mais escolhas a serem feitas, mais interesses distintos entre as pessoas. Pode ser que, tratando-se de edificações, no futuro da cidade não exista um conjunto geral de prédios que possibilite a sensação de pertencimento a toda população, apenas a um grupo menor, que possivelmente estará representado no poder. Afinal, Lyotard (década de 1970) dizia que a arquitetura e a filosofia estavam em ruínas. Cabe a nós, historiadores, fazemos uma leitura e interpretação da cidade pelo texto que a compõe, isto é, suas ruínas e edificações remanescentes (ou daquilo que os homens pensam e como agem sobre elas).

Bem, junto a isso, nem tudo é caos, pois existe a ressignificação da arquitetura por uma pequena parte da população, que tem como característica principal de seu comportamento cultural a ressonância. Ela serve como fonte de vários grupos preservacionistas, entre eles, os nostálgicos. Devido a este grupo, ainda se produzem debates por vezes acalorados, por outras, parcos monólogos, mundialmente conhecidos como resistência à modernidade. 

À parte, adoro como muitas pessoas, nos filmes, projetam-se ao lado dos renegados, das resistências, dos distritos, dos divergentes, dos nostálgicos propriamente ditos, pois lutam contra o mundo modernizante. Ocorre é que, ao voltarem ao mundo real, vociferam contra qualquer opinião que surja na defesa das edificações de madeira, de ruínas, do patrimônio industrial ou de quem pense diferente das noções lineares do progresso. Qualquer crítica é coagida, pois não está de acordo com o “modelo correto de desenvolvimento” adotado pelo status quo ocidental. Pensar o passado como fonte de criação é visto como algo superado, demonstrando que hoje são preferíveis respostas rápidas, entre elas, demolir.

Resumidamente, a arquitetura de resistência da atualidade (de madeira e pedra) não enxerga mais o valor no estilo, mas na rede de significados que algumas edificações produzem em um espaço característico e junto a um grupo de pessoas em especial. A preservação, hoje, tem sido possível através deste viés. Para mim, não é a mais interessante, mas são os instrumentos que existem atualmente.

A preservação se faz quando se movimentam os grupos e as legislações existentes com o intuito de pressionar os poderes constituídos na proteção das histórias locais. Caso contrário, a incúria pública e a prática da especulação imobiliária efetivam seus interesses.

Na cidade de Caxias do Sul, temos um conjunto de leis bastante relevantes, bem como diversos grupos envolvidos na questão da preservação patrimonial. Em muitos debates que pesquisei desde a década de 1970, as iniciativas sempre se davam, inicialmente pelo caráter nostálgico. Hoje, para pensarmos as casas de madeiras da cidade, a construção do discurso começaria por aí, afinal deve-se ter em conta que o significado da palavra nostalgia (nostos = lar, algos = dor) se relaciona com a melancolia, ou seja, pelo afastamento da terra natal ou o anseio por algo muito distante do que esta aí. A casa e as edificações de madeira passam a ser um contato com algo que, por vezes, dá segurança. Frente à emergência de um novo tipo de temporalidade, sente-se saudade de um lugar que Caxias não representa mais. Como exemplo, a cidade de hoje, para um nostálgico, carrega um corpo de ruínas que desaparecem, restando cada vez menos das reminiscências da colonização ou das gerações que a sucedeu. Daí a importância das casas.

Talvez seja importante construir um novo olhar às edificações, em especial as casas de madeiras datadas do início do século 20, que se espalham pela cidade. 

As construções que estão no centro de Caxias do Sul são riquíssimas pela oferta histórica que podem promover, bem como estabelecer um novo projeto turístico. Ainda, podem servir como uma fonte de estudos de arqueologia urbana, permitindo conhecer um não-lugar (utopos versus distopia de nossa realidade), percorrer a cidade escondida pelo modo construtivo, desvendar os sujeitos envolvidos e suas particularidades. 

Ou seja, pode-se abarcar o construtivo, o turístico, o simbólico, o nostálgico, o cultural, o imaginário. Porém, para isso, é necessário preservar a memória e a história, sem necessariamente entrar na onda da retromania, senão continuaremos regando um jardim de ruínas.

*Marcelo é doutor em Estudos das Sociedades Ibero-Americanas, mestre em História: Modernidade e Urbanização, professor, historiador e pesquisador. No mestrado e doutorado, pesquisou sobre a preservação urbana de Caxias do Sul, em dois eixos diferentes. 

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