Em

tempos idos, sobre os quais as gentes não guardam mais lembranças, houve uma noite comprida e escura como breu que foi tomada por um grande dilúvio. Os campos foram inundados, as lagoas subiram e se alargaram e todo aquele peso d'água correu para as sangas e das sangas para os arroios que ficaram bufando campo afora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. Poucos bichos escaparam, quase tudo morreu. Terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo... Mas a cobra-grande, chamada pelos índios de Guaçu-boi, escapou. Tinha se enroscado no galho mais alto da mais alta árvore e lá ficou até que a enchente deu de si e as águas começaram a baixar e tudo foi serenando.

Vendo aquele mundo de bichos mortos, a Guaçu-boi, louca de fome, achou o que comer. Mas – coisa estranha! – só comia os olhos dos mortos.

Como

a Guaçu-boi não tinha pêlos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, o seu corpo foi ficando todo transparente, clareando pelas milhares de luzezinhas, dos tantos olhos que foram sendo esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. A Guaçu-boi toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos.

E tantos olhos comeu e tanta luz guardou, que um dia a Guaçu-boi arrebentou e morreu, espalhando esse clarão gelado por todos os rincões. Os índios, quando viam aquilo, assustavam-se, não mais reconhecendo a Guaçu-boi

Diziam,

cheios de medo: "Mboi-tatá! Mboi-tatá!", que lá na língua deles queria dizer: Cobra de Fogo! Passado um tempo, Boitatá morreu de pura fraqueza, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo, mas não lhe deram substância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos... E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí. E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo! Quem encontra Boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ficar parado de olhos fechados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-lha por cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa! Boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda... Tenho visto!

Esta é uma adaptação da lenda de Mboitatá publicada por Simões Lopes Neto, 1913, em Lendas do Sul.

E se fosse hoje?

7 Lendas Gaúchas - A Boitatá

O canto da saracura

Diz a lenda que naquela manhã sinistra, o mundo de Dendera não foi despertado, como de costume, pelo canto da saracura, ave que tem os verbos sarar e curar no próprio nome e que tem um canto límpido e majestoso que bota na sombra sabiás e canários cantadores. O canto daquela manhã não era o canto vibrante da vida, mas o da desolação completa. Era o canto das motosserras que perseguiam árvores em fuga. Galhos espalhavam-se no chão com os ramos ainda vivos. O cenário cortante arrancava uma dor aguda de carrapato ingurgitado dos moradores de Dendera, quando apareceu, assim do nada, a Cobra de Fogo – também conhecida como Boitatá, mais comprida do que a árvore mais alta da floresta. Deu-se que o Boitatá engoliu as motosserras todas antes de chamuscar os homens que as operavam. Quem viu jura que o formato da língua do Boitatá é incrivelmente idêntico a um enorme sabre de motosserra. O certo é que depois disso ninguém mais ousou cortar uma única árvore da floresta sem plantar outra no lugar. Assim, o canto da saracura tornou a se repetir todas as manhãs no mundo de Dendera e talvez se repita para sempre.

7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá
7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá
7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá 7 Lendas Gaúchas - A Boitatá