Pão nosso de cada dia

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Universo da fermentação natural atrai consumidores e impulsiona negócios como o da chef Sônia Hermoza

PUBLICAÇÃO EM 24 DE SETEMBRO DE 2016

TEXTO

Diego Adami

diego.adami@pioneiro.com


Imagens

Jonas Ramos

jonas.ramos@pioneiro.com


INFOGRAFIA

Guilherme Ferrari

É tarde de segunda-feira, e o cheirinho de pão sendo assado toma conta da cozinha e da sala da casa do empresário Celso Tissot, em Caxias do Sul. O aroma tem sido frequente na residência no bairro Jardim América, desde que ele aprendeu a técnica da fermentação natural (ou lenta), há cerca de um ano e meio, movido pela mesma curiosidade com que buscou descobrir outros segredos das artes culinárias. Aos 59 anos, Tissot engrossa um grupo sem fim de adeptos da gastronomia que aderiram à onda da fermentação natural e que movimenta um mercado com cada vez mais fome de novos sabores, aromas e texturas.


– Se a pessoa tem um pouco de boa vontade, é um passatempo maravilhoso – resume.


É preciso mesmo uma boa dose de disposição (e paciência) para adentrar nesse universo de baguetes, ciabattas e pães dos mais variados recheios. A complexidade reside na necessidade de cultivar as leveduras – ou levain (do francês) –, usadas no preparo. Um processo não necessariamente difícil, mas sim lento e que requer dedicação quase diária para manter o fermento em atividade. Além disso, é preciso que a massa pães descanse por aproximadamente 16 horas antes de irem para o forno, o que significa, muitas vezes, começar a função toda no dia anterior. Haja paciência!


Depois de buscar informações em livros e testar receitas sem qualquer orientação profissional, Tissot buscou aperfeiçoamento em uma escola de gastronomia. Lá, aprendeu que se inserisse uma pedra na parte inferior do forno do fogão para evitar que o calor se dissipasse e que se usasse de um borrifador manual para manter a umidade necessária para deixar os pães mais crocante, o equipamento teria uma performance melhor.


– Chega num ponto em que teu hobby começa a ficar complicado – brinca, referindo-se à vontade de adquirir um forno com temperatura controlada.


Nas aulas, ele também descobriu que as farinhas nacionais não são as mais indicadas, em função da qualidade superior importada. Por isso, compra a matéria-prima, de origem francesa, em uma loja especializada na venda de produtos a granel.

– Não dá pra pensar que vai economizar fazendo pão em casa – lembra.


Hoje, os pães feitos por ele fazem sucesso entre familiares e amigos, seja no dia a dia, em ocasiões especiais, como jantares e aniversários, e até mesmo como forma de presente.


– Há tempos, já fazia pães com fermento usual. Comecei a fazê-los com o levain como uma forma de resgate da origem do pão e de fazer um alimento “puro”, mais saudável e mais gostoso, diferente da panificação comercial – reforça.

“Você não se torna padeiro. Você se descobre padeiro”

Um dos pioneiros na produção de pães de fermentação natural em Caxias do Sul, Rodrigo Gomes, 38, fala com orgulho do negócio que abriu há pouco mais de três anos na cidade. Em Caxias há quatro anos, Rodrigão, como é conhecido, abandonou o cargo de gerente em uma empresa do ramo de coberturas residenciais e industriais para dedicar-se à panificação após uma reflexão sobre a carreira e chegar à conclusão de que não era tão feliz quanto gostaria.


– Tinha um bom emprego, mas percebi que o dinheiro não me traria a felicidade que eu buscava – lembra o carioca.

Mesmo sem ter qualquer noção a respeito da elaboração de pães, viu nessa área a oportunidade ideal para mudar de ramo. Em livros, na internet e em vídeos do YouTube, buscou o conhecimento necessário para abrir a Pane&Salute, que hoje processa mensalmente em torno de uma tonelada de farinha para atender à demanda de restaurantes, eventos e os clientes da loja aberta há quatro meses.


–Você não se torna padeiro. Você se descobre padeiro, porque é um trabalho muito árduo – salienta, ao falar da rotina diária das 5h às 21h, de terça a sábado. – Você praticamente não tem mais vida social.

Aos poucos, a empresa, que começou em casa foi prosperando e hoje Rodrigão é representante na região da famosa farinha francesa Bagatelle, em cuja sede ele passou uma semana no início deste ano para conhecer todo o processo de fabricação, desde a cultivo em campos de trigo. 

– Me apaixonei por esse filão – afirma.


Por ser um dos primeiros a atuar no nesse ramo na cidade, Rodrigão acompanhou o que chama de uma “mudança de cultura” da população em relação a produtos até então pouco conhecidos.

– É bonito ver a cidade se interessando, ver no cardápio de restaurantes “couvert de pães artesanais” e não apenas “de pães”, a casca do pão, que antes era considerada “dura”, agora é “crocante” – cita.

Relação de afeto

– Custeei boa parte da minha faculdade vendendo pão.

Sônia Hermoza volta aos tempos em que estudava Enfermagem, em Maringá (PR), ao lembrar de sua aproximação com os pães, na década de 1980. A distância entre o bloco onde tinha as aulas e a lanchonete inviabilizava o deslocamento durante os intervalos, e ela teve a ideia de preparar pães em casa para levar de lanche. Aos poucos, os sanduíches de Sônia – uma massa de milho meio adocicada que ela recheava com manteiga, presunto e queijo – foram ganhando fama entre os colegas, que passaram a encomendar o quitute.

O sucesso foi tanto que logo teve de comprar uma mobilete para dar conta de transportar todos os pedidos, que já não conseguia mais carregar a pé. Quando não vendia tudo, um japonês, dono de uma floricultura próxima à universidade comprava o que sobrava e distribuía entre os funcionários. No caminho para a faculdade, concluída em 1987, também costumava parar em uma padaria, a Marco’s Boutique de Pão, onde parava para conversar com o dono, que lhe dava dicas valiosas.


Corta para 12 de outubro de 2015 e Sônia inaugura em Caxias do Sul, cidade onde vive desde 1996, a padaria artesanal que leva seu nome, no bairro São Pelegrino. Na área da gastronomia desde que chegou à cidade, fez questão de abrir a loja naquele dia para lembrar que exatamente dois anos antes, em 12 de outubro de 2013 seu primeiro levain, que mantém até hoje, deu certo. Foram seis anos de tentativas até chegar à levedura que considerou a ideal, uma mistura de farinha de centeio integral e água.


– O fermento é o coração da padaria, e cada padeiro tem a sua fórmula mágica. Por isso, o sabor é único em cada lugar – afirma.

Na primeira oportunidade que teve, levou seu levain para testar na cozinha de seu amigo Marcos, aquele da padaria em Maringá, que ficou feliz em recebê-la mais de duas décadas depois. Também carregou a levedura com ela para a França, onde testou-a nas aulas no Instituto Paul Bocuse e no estágio na Maison Pozzoli, aberta em 1956 na França, e cujo levain sobrevive há aproximadamente um século.


Diariamente, em sua padaria, Sônia e sua equipe produzem cerca de 40kg de pães, entre mais de 40 variedades. Na loja, com decoração inspirada em lugares que visitou no sul da França e na Irlanda, além de objetos de sua memória afetiva, com a primeira batedeira, há desde os tradicionais italiano (com iogurte natural na massa, o que o deixa leve e com um toque de acidez), as baguetes e o sete grãos (linhaça, semente de girassol e abóbora, gergelim, centeio, trigo) além de pães com granola, de abóbora, foccacia, de azeitonas e o challah, pão trançado tradicional da cultura judaica.


Com a estrutura que tem hoje, poderia tranquilamente fazer a mesma quantidade por hora, o suficiente para atender à demanda de 10 lojas.

– As pessoas, hoje procuram por produtos de qualidade maior. A partir do momento em que provam, percebem a diferença e não querem mais os pães “normais”. Há uma relação de afeto com o pão, o cheiro remete à infância – lembra.

Levain

O primeiro passo para quem quer assar seus próprios pães é fazer o levain,
levedura com a qual a massa será fermentada. O processo leva uma semana:
  • Dia 1 - em um recipiente pequeno, preferencialmente de vidro ou porcelana, misture bem 50g de farinha de trigo integral, uma colher (chá) de mel e 50 ml de água. Cubra com um pano de prato limpo e deixe descansar por 24h.
  • Dia 2 - observe se as leveduras já começaram a agir (se há formação de bolhas de ar). Mexa bem e cubra novamente, deixando descansar por mais 24 horas.
  • Dia 3 - a mistura deve ter crescido um pouco. É hora de alimentar seu fermento pela primeira vez. Para isso, acrescente 30g de farinha integral, 30ml de água filtrada e 1/2 colher (chá) de água. Mexa bem e cubra novamente.
  • Dia 4 - verifique se as leveduras continuam agindo e mexa bem, cobrindo novamente até o dia seguinte.
  • Dia 5 - passadas mais 24h, acrescente mais 50g de farinha e 30ml de água e cubra com o pano.
  • Dia 6 - descarte metade da mistura. Essa ação é imprescindível para fortalecer as leveduras. Adicione 75g de farinha e 30ml de água. Com as mãos, modele uma bola e transfira para um pote maior. Cubra com um plástico filme e deixe descansar novamente.
  • Dia 7 - da mistura anterior, que deve ter crescido bastante, pegue apenas 100g. O restante, você pode descartar ou dar para um amigo fazer o seu próprio levain. Assim, ele não precisará seguir todos os passos anteriores. Aos 100g que você reservou, adicione 200ml de água e 300g de farinha e misture muito bem. Cubra com um plástico filme e deixe crescer por 8h em temperatura ambiente. Depois, leve à geladeira por 12h.
  • Dia 8 - chegou o dia de fazer pão pela primeira vez. Junte 600g de farinha de trigo, 200g do fermento natural, 400ml de água e 10g de sal. Sove o pão, acrescentando farinha até obter uma massa firme. Neste ponto, procure utilizar a menor quantidade de farinha possível. Forme uma bola, cubra com um pano limpo e deixe descansar em temperatura ambiente por 6 a 8 horas. Depois, cubra com um plástico filme e leve à geladeira por 12 horas. Retire da geladeira e deixe voltar á temperatura ambiente por uma hora. Molde o pão, fazendo um corte com estilete ou gilete, e asse em forno alto, a 240ºC, por aproximadamente 25 a 30 minutos, até que fique dourado.
    Para manter o levain ativo, utilize 100g do fermento natural que restou e adicione a ele 300g de farinha integral e 200ml de água. Deixe descansar na geladeira por no mínimo 8h para fazer um novo pão. O ideal é que você faça pães, no mínimo, uma vez por semana, para manter o seu fermento sempre renovado.

Até que Deus deixar

Veroni Catafesta é a típica nonna italiana. Aos 66, faz pães como poucos no forno de tijolos construído nos fundos da casa onde mora com o marido, no distrito de Otávio Rocha, em Flores da Cunha. E como o pão é item imprescindível à mesa em praticamente todas as refeições, a produção é constante. Semanalmente, Veroni faz no mínimo uma fornada de 21 pães cada, número que pode chegar a 60, quando recebe encomendas de vizinhos e amigos. Mas, diferentemente de Celso, Sônia e Rodrigo, ela não usa nenhum tipo de levain para fazer crescer a massa. A receita é a mesma que aprendeu aos 13 anos com a mãe, Ermelinda.

Dez quilos de farinha, sal, açúcar, água, fermento fresco...

– Peraí que vou pegar mais uma coisa – avisa, antes de voltar da despensa trazendo um balde cheio de banha de porco. – Sem banha não faço nada. Ela é que deixa o pão macio e liso – explica.

Mistura daqui, sova dali, deixa descansar. Sova mais um pouco, modela, acende o fogo e em poucos minutos surge um tabuleiro repleto de pães coloniais de encher os olhos.

– Até que Deus me deixar usar os braços, vou fazer pão.

Além da produção caseira, Veroni ajuda no salão paroquial, onde assa pães e cozinha. Na última semana, para um jantar para 1.050 pessoas, foram nada menos do que cinco fornadas de 48 pães cada. O segredo é simples, conta:

– Tem que ter muito amor! – resume.

 

14 mil anos de história

No centro de Ilópolis, no Vale do Taquari, o Museu do Pão permite aos visitantes conhecerem a história do alimento nas mais diferentes raças e religiões. Uma linha do tempo resume 14 mil anos da presença do pão na humanidade, mostrando sua trajetória desde o grão até o prato. Em um pequeno auditório, são exibidos filmes e palestras com temas ligados à iguaria e à imigração italiana. Também é possível conferir uma coleção de objetos utilizados pelos imigrantes italianos na região, a cerca de 150 quilômetros de Caxias do Sul.


Além do museu propriamente dito, o público pode conferir as instalações do Moinho Colognese, uma construção de 1917 que mostra o processo de transformar o grão em farinha. Há também uma oficina, onde são ministrados cursos, e a bodega, que oferece produtos da oficina de panificação e de produtores da região.


Em 2008, por ocasião do restauro do Museu Colognese, foi lançado o documentário O Milagre do Pão, com direção de Isa Grinspum Ferraz e produção de Arte de André Costantin.


Programe-se:

  1. Incluído na rota turística Caminho dos Moinhos, o Museu do Pão funciona de terça a sábado, das 8h30min às 11h30min e das 13h30min às 17h, e aos domingos e feriados (exceto Natal, Páscoa, Sexta-feira Santa e 1º de janeiro), das 13h30min às 17h
  2. O complexo arquitetônico fica na Rua Sete de Abril, s/nº, no centro de Ilópolis (RS), no Vale do Taquari
  3. Outras informações podem ser obtidas no site www.caminhodosmoinhos.com.br ou pelo telefone (51) 9821.1825
  4. A entrada é gratuita

O pão ao longo da História

A professora e chef Maria Beatriz Dal Pont é estudiosa da gastronomia e sócia da Amada Cozinha Buffet e Catering, em Caxias do Sul. Em um artigo escrito especialmemte para o Almanaque, ela aborda a ancestralidade do trigo, o surgimento e a evolução do pão e a simbologia que a iguaria carrega desde a Antiguidade

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