Itália, 1986. No país do dolce far niente, os monumentos históricos dividem atenção com longas filas nas recém-inauguradas lojas de fast food. No Piemonte, um sociólogo e jornalista dedicado ao tema da gastronomia vai em oposição, começando um movimento pelo resgate do contato com a terra, das tradições alimentares e do prazer nas refeiçõe
Ao fundar o movimento Slow Food, Carlo Petrini (foto) lançou para o mundo uma semente de reflexão sobre as questões culturais, climáticas e econômicas envolvidas em cada escolha alimentar cotidiana.
O consumo de orgânicos é uma das bandeiras centrais do Slow Food Primeira Colônia, e disseminar a viabilidade da produção sem agrotóxicos é a causa pessoal do tecnólogo em Horticultura Áureo Salvi. Dentro do movimento, Salvi é referência no conhecimento sobre cultivares e técnicas de produção, compartilhando ensinamentos sobre a utilização integral dos alimentos, as Plantas Alimentícias Não-Convencionais (Pancs), o resgate de sementes crioulas e a valorização da agricultura familiar.
Salvi cresceu com hortas em casa e, mesmo morando na cidade, tinha por costume aproveitar qualquer espaço para o cultivo de consumo próprio. Depois de 20 anos atuando em gestão pública, retomou o velho sonho de uma pequena área rural produtiva. No entremeio, formou-se tecnólogo em Horticultura e, mesmo antes de formado, já estava atuando em parceria com o Centro Ecológico de Ipê na consultoria a produtores em processo de transição da produção convencional para orgânica. Atualmente, ele atende quase 40 produtores em Cotiporã, Garibaldi e Santa Tereza:
– Sou movido pela ideia de cativar pessoas para a produção livre de agrotóxicos.
Ele próprio teve produção convencional até entender que ela não dava o resultado esperado e conhecer a produção orgânica. A partir desse ponto, implantou técnicas de cultivo do solo para, depois de um ano de transição, obter o certificado de conformidade orgânica. Mesmo na consultoria e apoio técnico a produtores convencionais, Salvi estimula a redução dos agroquímicos. Ele combate a ideia de que a agricultura familiar não seria capaz de alimentar o mundo. O que existe, segundo ele, não é falta de produção, mas uma falta de aproveitamento integral dos produtos.
O movimento Slow Food Salvi conheceu prestando consultoria ao restaurante Valle Rustico, do chef Rodrigo Bellora, um caso de sucesso na produção orgânica e aproveitamento dos ingredientes nativos, em Garibaldi. Para ele, o Slow Food é um grupo de aprendizado contínuo e mútuo.
– Quando penso em alimento bom, limpo e justo, penso no ambiente que estamos deixando para os nossos filhos. Como pessoa e, principalmente, como pai, eu quero um mundo melhor e isso passa pela produção dos alimentos e nossos modelos de consumo – frisa.
Grupo viajou à Itália para conhecer produtores de frutas, hortaliças e vinhos
Nesse processo contínuo de aprendizado, Áureo Salvi e outros 12 membros do Slow Food Primeira Colônia Italiana tiveram oportunidade de viajar à Itália num projeto único no mundo de intercâmbio internacional entre grupos. De 3 a 14 de abril, o grupo percorreu 12 cidades nas regiões do Lazio e Abruzzo, conhecendo pequenas propriedades de convivas associados ao Slow Food Latina, Territori de Cesanese e Viterbo e Tuscia. No país berço do movimento, os brasileiros conheceram produções de vinho, olivas, queijos, doces, carne, mel, gelato, cerveja, hortifruti, a água terapêutica de Fiuggi e, claro, restaurantes, a maioria deles com produção orgânica e certificações de origem.
Uma das vivências de maior impacto para os brasileiros foi a visita a uma empresa com produção de hortaliças orgânicas e biodinâmicas, numa estrutura com impressionantes 25 hectares de estufas próprias e um total de 100 hectares incluindo-se cooperados. Lá, são produzidos de 40 a 50 variedades de hortifruti, com distribuição para a Itália e exportação para outros 10 países. Nas estufas, o controle biológico é natural, e a produção orgânica ocorre desde 1986, mesmo sendo certificada somente em 1992, com a primeira lei europeia sobre a produção biológica.
O intercâmbio também foi uma chance para os brasileiros conhecerem a produção de vinhos e espumantes orgânicos da região do Lazio, já que a Serra é a maior produtora de vinhos e espumantes no Brasil, mas com poucas vinícolas com produção orgânica certificada. O roteiro mostrou que as regiões visitadas são propícias à produção orgânica de vinhos graças a fatores como biodiversidade natural, mineralidade do solo, boa insolação, amplitude térmica e umidade do ar. Isso permite a produção de uvas com alta graduação e a valorização das variedades características de cada microrregião.
O projeto de intercâmbio foi construído com uma proposta inovadora, visando trocar experiências e ampliar o aprendizado sobre as práticas de valorização do território e de seus produtores, de suas pessoas e seu ambiente. Essa foi a segunda edição do Intercâmbio Slow Food Brasil Itália. No ano que vem, será a vez dos italianos visitarem o Brasil, também pela segunda vez, e conhecerem projetos e empreendimentos alinhados à filosofia.
Arroz sete grãos biodinâmico e costelinha lentamente cozida é um dos pratos do restaurante Locanda di Lucca, no distrito de São Pedro, em Bento Gonçalves
Arroz sete grãos biodinâmico e costelinha lentamente cozida é um dos pratos do restaurante Locanda di Lucca, no distrito de São Pedro, em Bento Gonçalves
Folhado de pato com molho de espumante rosé e amoras do Bistrô Champenoise, em Pinto Bandeira
O famoso espaguete de chuchu aos cogumelos é uma das etapas no menu degustação do Valle Rustico, em Garibaldi
A atleta Patrícia Canal vê no movimento a chance de retorno aos hábitos da infância
Longe de ser um movimento apenas para restaurantes e produtores rurais, o Slow Food é para todos, pois a educação para o gosto é tema central da associação. Para a atleta amadora Patrícia Canal, de Carlos Barbosa, o movimento surgiu como uma oportunidade de aprender mais sobre alimentação saudável e encontrar novos fornecedores de orgânicos.
Maratonista por paixão, ela representa uma parcela de associados do Slow Food que participa do movimento mirando qualidade de vida e, no seu caso específico, um retorno aos hábitos alimentares da infância, com comida fresca e sazonal. O combate aos alimentos ultraprocessados é, para Patrícia, uma das questões que norteiam sua participação no Slow Food e, hoje, ela influencia toda a família a retomar hábitos de 30 anos atrás.
– A cultura do alimento nos dá o poder de decisão sobre o que oferecer como combustível para o nosso corpo e como essa escolha tão pessoal reflete no desenvolvimento das nossas comunidades e na saúde do planeta – pontua.
Para Patrícia, a vivência no intercâmbio para a Itália aumentou sua confiança de que é possível a produção de alimentos sem agrotóxicos, em pequenas propriedades, sem atravessadores e aumentando o contato direto com o consumidor. Ela reflete sobre a inversão de valores que levaram as pessoas a confiarem mais na procedência de produtos rotulados e ultraprocessados do que naquilo que a terra provém.
– Isso mudou nossos hábitos, mas não trouxe nenhum ganho em saúde – reflete a esportista.
A agenda mundial do movimento defende a biodiversidade na cadeia de distribuição alimentar, ao mesmo tempo em que difunde a educação do gosto. No Slow Food Primeira Colônia Italiana, além da bandeira dos orgânicos, existe um calendário anual de mesas redondas, eventos comunitários e hortas escolares. O movimento está sempre aberto a novos participantes.
– Não se trata apenas de alimentação, mas uma filosofia para um mundo melhor. No Slow Food, todos têm a chance de colocar à disposição da sociedade sua contribuição numa postura de honestidade e solidariedade. Qualquer saber e habilidade são bem-vindos – convoca a líder Ivane Favero.
Qualquer pessoa. No ambiente do movimento Slow Food, produtores, cozinheiros e consumidores compartilham experiências sobre o alimento e a cultura gastronômica de cada região, promovendo a educação do gosto, salvaguardando a agrobiodiversidade e encurtando as cadeias entre produtor e coprodutor.
...representantes do Slow Food estarão reunidos em Turim, na Itália, para o Terra Madre Salone del Gusto, o evento mundial do movimento, com 900 expositores de 143 países.
O movimento internacional Slow Food começou oficialmente quando representantes de 15 países endossaram um manifesto escrito em 1989 por um dos fundadores. É ele que norteia as ações do movimento. Acesse o pioneiro.com e leia o texto na íntegra.w
“O nosso século, que se iniciou e tem se desenvolvido sob a insígnia da civilização industrial, primeiro inventou a máquina e depois fez dela o seu modelo de vida. Somos escravizados pela rapidez e sucumbimos todos ao mesmo vírus insidioso: a Fast Life, que destrói os nossos hábitos, penetra na privacidade dos nossos lares e nos obriga a comer Fast Food.
O Homo sapiens, para ser digno desse nome, deveria libertar-se da velocidade antes que ela o reduza a uma espécie em vias de extinção. Um firme empenho na defesa da tranquilidade é a única forma de se opor à loucura universal da Fast Life. Que nos sejam garantidas doses apropriadas de prazer sensual e que o prazer lento e duradouro nos proteja do ritmo da multidão que confunde frenesi com eficiência.
Nossa defesa deveria começar à mesa com o Slow Food. Redescubramos os sabores e aromas da cozinha regional e eliminemos os efeitos degradantes do Fast Food. Em nome da produtividade, a Fast Life mudou nossa forma de ser e ameaça nosso meio ambiente. Portanto, o Slow Food é, neste momento, a única alternativa verdadeiramente progressiva.
A verdadeira cultura está em desenvolver o gosto em vez de atrofiá-lo. Que forma melhor para fazê-lo do que através de um intercâmbio internacional de experiências, conhecimentos e projetos?
Slow Food garante um futuro melhor.
Slow Food é uma ideia que precisa de inúmeros parceiros qualificados que possam contribuir para tornar esse (lento) movimento, em um movimento internacional, tendo o pequeno caracol como seu símbolo”.
Folco Portinari, em 09 de novembro de 1989.
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