Correr contra o tempo e ao mesmo tempo desfrutar da natureza em uma descida íngreme de mais de 1 km de distância entre o topo e a base. Esse é um dos desafios de um piloto de downhill. A modalidade faz parte de uma das muitas vertentes do ciclismo e basicamente consiste em descer uma pista em meio a um morro o mais rápido possível.
Não existe uma tradução literal para o nome. O que mais se aproxima de downhill seria “colina abaixo”, uma expressão autoexplicativa para o desafio principal da modalidade que teve origem na Califórnia (EUA), no final da década de 1970. Nos sites das principais federações de ciclismo, a explicação para a criação deste esporte é simples: “ciclistas que cansaram de pedalar nas ruas e estradas e que queriam ficar mais próximos da natureza”.
A modalidade é um braço do Mountain Bike, que embora seja disputado em montanhas, também pode ter variação para pistas de asfalto, entre outros pisos, e é realizado em formato de corrida, tanto no Cross Country Olímpico (XCO), quanto na maratona (XCM). Logo, o downhill é visto pelo praticante como um momento único de interação entre piloto, bicicleta e natureza. Claro, sem esquecer do tempo, que é determinante para os resultados. O mais ágil é o vencedor.
– É um esporte viciante movido pela adrenalina. Não sei dizer em uma frase, mas é uma paixão. É como tirar a cabeça do mundo e só pensar naquilo. Tu te desligas da realidade e curte aquele momento que só tem você, a bicicleta e o chão. Posso dizer que é um vício por tudo o que a gente passa. Se prepara um tempo, enfrenta chuva, lama e diversos riscos para ter aqueles três, quatro minutos de descida. Mas, ao mesmo tempo, são momentos incríveis – resume Laís Rezzadori Flecke, 24 anos.
O sentimento da caxiense é dividido com o irmão Luan Rezzadori Flecke, 26. Ambos competem juntos na modalidade.
– Primeiro é preciso gostar de estar na natureza. E quem gosta, não tem explicação poder ficar o tempo inteiro no meio dela, numa paz, além de conhecer lugares novos e visuais diferentes. Estamos sempre no topo da montanha, então é sempre muito bom – comenta Luan, que, por causa do downhill, fez intercâmbio no Canadá em 2013.
Irmãos caxienses Luan e Laís Rezzadori Flecke treinam em trilha própria e participam juntos das principais competições
O sobrenome não engana. Os traços físicos também não. Luan e Laís são irmãos e dividem as pistas do downhill. Em todas as competições que um vai, o outro está junto. Mas nem sempre foi assim.
– Comecei mesmo assistindo meu irmão. Olhava as bikes e fica emocionada e empolgada vendo a galera nas provas, descendo trechos de pedras, mas tinha medo e insegurança para começar. O downhill ainda é majoritariamente masculino. Quando cheguei próxima dos 17 anos participava mais de pedaladas em estradas. Conheci um pessoal de Farroupilha que me incentivou. O meu irmão já andava, mas tinha meio que ciúme e medo que eu pegasse a bike. Eles acreditaram em mim, me emprestaram a bicicleta e eu comecei. Quando vi já estava bem envolvida – relembra Laís, ao reiterar que o irmão mais velho foi a sua principal influência para este esporte.
O irmão é precursor na modalidade em Caxias do Sul. Tanto que o início de Luan na bicicleta até tinha obstáculos, mas estava bem longe de ter tudo aquilo o que envolve a prática do downhill:
– Comecei em 2005 com amigos de colégio. O pessoal dava uns pulos numa chácara e acabei indo com uma bicicletinha que meu pai tinha em casa. Em duas semanas entortei toda ela. Depois ganhei uma bicicleta maior e acabei fazendo mais coisas nestas pistas.
Ambos elencam a adrenalina como a grande motivação para seguir descendo morros e entortando bicicletas, ainda que estas estejam cada vez mais profissionais e resistentes.
– Escolhi pela adrenalina. Não que os outros não tenham, mas nem se compara. Quem pratica o downhill acaba como se fosse uma família. Se formam amizades em cada canto do país. É outra vibe. É um estilo que se encaixa talvez por ser meio fora da cabeça um pouco. A gente brinca que não somos bem certos – avalia Luan.
A irmã segue na mesma trilha, literalmente:
– É uma paixão pela bicicleta. Hoje posso contar com o meu irmão como companheiro, a gente corre circuitos gaúchos e brasileiros nas provas mais próximas. Comecei por inspiração do meu irmão, mas acabou virando o meu mundo também.
Saltar um gap (uma espécie de rampa) ou um duplo (saltos em dois obstáculos) ainda são grandes desafios para Laís Flecke. A atual campeã brasileira geralmente prefere a parte alternativa da pista, com menos pulos, mas também com grandes dificuldades, como raízes, pedras, piso escorregadio. Nada disso, no entanto, faz parte do maior obstáculo que a caxiense encara.
– A principal dificuldade foi introduzir as mulheres no downhill. Quando eu entrei, a categoria estava fechada porque não tinha competidoras. O primeiro desafio foi fazer as mulheres voltarem ou começarem a ir para a pista – conta a competidora, que utilizou das referências masculinas para ingressar nas competições:
– No início, eu ia mais pela parceria com os amigos e como forma de treinar. Quando vi comecei a evoluir, entender bem e não só descer a pista de uma forma muito louca. Com técnica, fazem uns três anos. Vi que evoluí, que comecei a me aproximar do tempo dos guris que competiam. Daí consegui conciliar também, porque nesta época comecei a faculdade de medicina veterinária. Isso complicava porque tinha que ficar estudando nos fins de semana. Mas vieram etapas importantes e eu vi que poderia competir.
Entre os principais títulos de Laís estão o pentacampeonato estadual, o 2º lugar no Campeonato Brasileiro, quando acabou a temporada como líder do ranking nacional em 2016, e o título brasileiro deste ano.
Luan é sócio de uma empresa de compensados, junto com o pai Luiz Carlos Flecke. Laís ainda busca se colocar no mercado em sua nova profissão, mas atualmente trabalha como colaboradora em um canil. Os irmãos até têm relativo tempo para treinar, mas com maior ênfase na parte física do que na técnica.
– É um pouco complicado, mas a gente dá um jeito. Tem que ter um tempo para tudo. Às vezes, eu gostaria de estar treinando, mas estou trabalhando. Nossa sorte é ter uma empresa familiar e com os horários um pouco mais flexíveis para treinar e competir – explica Luan.
A dupla treina, em média, três vezes por semana no crossfit e, no fim de semana, dedica um dia ou dois para descer a pista. E não é qualquer pista. Ela foi feita pelas próprias mãos de Luan e alguns integrantes da equipe Bike & Cia, de Farroupilha.
– Só se melhora treinando em cima da bicicleta. Estávamos bem escassos de pista aqui perto e que ficassem abertas fora dos dias de campeonato. Tínhamos feito uma pista em outro lugar, mas o morro não ajudava. Acabamos migrando para essa. Começamos até meio clandestinos. Trabalhamos nela e descobrimos os donos. Conversamos e nos autorizaram. A gente não sabia ainda onde a pista ia sair. Foi um negócio meio maluco e um ano e três meses depois acabamos terminando de construir ela – recorda o irmão mais velho dos Flecke.
Os irmãos preferem que o endereço não seja divulgado para evitar “curiosos”, mas a “Willy Park”, como chamam, é o motivo de orgulho da dupla serrana e de toda a equipe que representa a Serra Gaúcha nas principais competições do país.
Texto
Renan Silveira
renan.silveira@pioneiro.com
Design
Andressa Paulino
andressa.paulino@pioneiro.com
Juliana Rech
juliana.rech@pioneiro.com
Rodolfo Guimaraes
rodolfo.guimaraes@pioneiro.com
Fotos
Felipe Nyland
felipe.nyland@pioneiro.com
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