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Comida farta e aquecida sobre o fogão campeiro na Cantinha Linha Bella, em Gramado

comer
é com a gente

Poucas coisas definem melhor a vida na Serra do que
o amor pela boa gastronomia


Texto
Andrei Andrade
andrei.andrade@pioneiro.com
*colaborou Marisol Santos

Fotos
Diogo Sallaberry
diogo.sallaberry@pioneiro.com
Lucas Amorelli
lucas.amorelli@pioneiro.com

Ao fogão campeiro que aquece o porão transformado num aconchegante restaurante, soma-se o calor humano de uma família que tem na preservação do modo de vida na colônia italiana uma receita para o sucesso imediato no ramo gastronômico. Fundada em 2009, a Cantina Linha Bella, que brinca com o nome da localidade de Linha Bonita, onde está instalada na zona rural de Gramado, tem se desdobrado para dar conta de atender a levas turistas que chegam três dias por semana, em grupos que somam até 150 pessoas, esgotando a capacidade do espaço. O segredo reside na simplicidade – contrastante com a sofisticação que o visitante encontra na maioria dos espaços do principal destino turístico – e nos três pilares que fazem a Serra referência de boa mesa: fartura, sabor e amor pela comida.

– Minha avó era daquelas nonnas que faziam a comida com tanto amor, que se algo saísse errado, o mau humor durava o dia todo. Porque a refeição era a parte mais importante do dia. E até hoje a gente preserva esse sentimento. Tudo tem que sair perfeito, porque o resultado dessa dedicação chega até o paladar do cliente – comenta a proprietária do restaurante, Luciana Cavichion.

Como um bom restaurante que se propõe a oferecer o melhor da culinária italiana, a Cantina Linha Bella tem nas massas e na polenta o carro-chefe. São expostos diante do extenso fogão a lenha cinco tipos de massas, três tipos de molho, três tipos de polenta e três tipos de carne, além de arroz e feijão. Além de outra mesa com 15 tipos de salada e outra com boa variedade de sobremesa, na qual se destaca o sagu de vinho – outro clássico incontestável.

– Quem nos visita se surpreende com o sabor da comida, que é muito diferente do que se come nos grandes centros. Nossa massa não tem ovos, não tem conservantes, nada é artificial. O preparo no fogão a lenha, cozida na panela de ferro, dá outro sabor. Mas nada faz mais sucesso que as polentas, tanto a mole quanto a assada no fogão. São pratos simples, mas que, além de ter muito sabor, despertam a memória afetiva das pessoas. Quem tem mais idade recorda da vida que era mais simples, quem é mais jovem lembra da infância na casa dos avós – filosofa Luciana.
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Luciana Cavichion despede-se dos visitantes com os músicos Pedro Seibt e Nilo Bosquetti

SIMPLICIDADE E SABOR


A devoção pela comida e o gosto pela mesa farta – sem sofisticações, mas com muito sabor – está no âmago do que constitui o típico morador da Serra, em especial o descendente de italianos. Um almoço de colônia em Forqueta, um menarosto em Flores da Cunha ou um filó em Bento Gonçalves são expressões do ato de comer como uma celebração. A historiadora e professora Luiza Iotti aponta que esse ode à fartura tem um viés hereditário.

– Quando os imigrantes chegaram na nossa região, encontraram muitas dificuldades que iam contra o paraíso que eles esperavam, do país da Cocanha, em que chovia frango assado e os rios eram de vinho. Eu acho que esse medo de passar fome foi transmitido de forma atávica. Até hoje temos essa característica de que é melhor sobrar comida do que faltar. Conforme as gerações avançam, as famílias vão se espalhando, diminuem, mas quando se encontram é sempre ao redor da mesa, com muita fartura – destaca.

A historiadora também destaca traços culturais que ajudam a reforçar o estereótipo do serrano que cultua a comida.

– A questão da memória afetiva é muito importante. Tu provares uma sopa de agnoline e lembrar daquele gostinho da infância, da comida preparada pela avó ou pela mãe. Outra coisa é que todos nós aprendemos com nossos avós que ser gordinha e rosadinha é saudável. Tu emagreces um pouco já ouve: “coitadinha, tá tão magra, tá doente?”

Para recriar esse ambiente de uma casa de família de colônia – e esse é o grande apelo da experiência proporcionada aos turistas –, é preciso inserir a boa comida no seu contexto de celebração, valor ensinado pelos imigrantes que tinham nas refeições um momento de recuperar as forças para o trabalho árduo, mas também de encontro com a família, com a comunidade (ou você já viu reunião de família italiana sem comida?). Por isso, a Cantina Linha Bella dispõe de poucas mesas destas convencionais, para quatro pessoas, e muitas mesas compridas para grupos de 10 a 12 pessoas cada. E antes, durante e após a refeição, não falta música ao vivo, danças e brincadeiras.

– Aqui a proposta é remeter ao passado, por isso não tem wi-fi, nem televisão. É a comida unindo as pessoas. Para os antepassados era diferente disso que é hoje, que as pessoas têm muita pressa e não conversam, ficam nos seus celulares. Antigamente a hora de comer era principalmente a hora de estar reunido. E nossa proposta da muito certo, rola muita conversa e muito bom humor entre as pessoas – destaca Luciana.
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Não é só comer. Ambiente da cantina também tem música, dança e muita interação entre anfitriões e visitantes

Galeto, um patrimônio imaterial caxiense

Se na colônia a tradição das cantinas mantém viva a culinária italiana e os costumes a ela atrelados, como o comer sem pressa, confraternizando e recebendo ou fazendo novos amigos em torno de generosas travessas e panelas de comida, na cidade são as galeterias que preservam aquele que é um patrimônio cultural da região, assim reconhecido em 2015 em Caxias do Sul, o galeto al primo canto. Bem antes de Caxias ser famosa pelo xis e pelo bauru ao prato inigualáveis, as galeterias eram um grande atrativo não apenas gastronômico, mas inclusive turístico. Historiadora e autora do livro A Invenção da Galeteria (EdUCS, 2011), a caxiense Rosana Peccini comenta que a popularização teve muito a ver com a divulgação dada pelos times de futebol da Capital.

– Nos anos 1950, Grêmio e Inter vinham a Caxias do Sul jogar contra o Flamengo, atual SER Caxias, e sempre iam comer na galeteria Peccini (a mais antiga da cidade, fundada em 1950 pelo pai de Rosana, Lauthério Peccini). Com essa divulgação, muitas famílias de Porto Alegre vinham a Caxias para conhecer o galeto al primo canto – conta a historiadora.

Mais antiga em atividade, a Alvorada foi inaugurada em 1957, no bairro Nossa Senhora de Lourdes. No ano passado, comemorou 60 anos com a expressiva marca de 5 milhões de galetos servidos. Enquanto outras casas do ramo agregaram novos pratos ao combo que forma o al primo canto, a Alvorada aposta em não fugir à tradicional entrada com sopa de agnoline, seguida das saladas de batata com maionese e de radicci com bacon, galeto, espaguete com molho vermelho e molho de moela, massa alho e óleo ou na manteiga, polenta frita com queijo ou sem queijo e polenta na chapa.

– Nós já recebemos diversas sugestões e propostas para mudar essa formatação, incluir salsichão, coração, carne de porco...mas optamos por manter com menos variedade e qualidade impecável dentro dos pratos que a gente trabalha. E tão importante quanto ser bom é ter a mesa sempre cheia. É uma cultura da nossa região a mesa ser mais bem servida do que em outros lugares. Enquanto a pessoa quiser comer, a gente vai repondo comida na mesa dela – destaca Orivaldo Zanotto, um dos sócios da Alvorada desde 1971, quando ele e seu irmão Adelar adquiriram dos fundadores Otávio Peteffi e Guilherme Moz.
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A formatação dos pratos que constituem o galeto al primo canto é uma espécie de síntese de alimentos que eram muito comuns entre os imigrantes e seus primeiros descendentes. A expressão al primo canto refere-se ao primeiro canto dos frangos, que são abatidos por volta do 45º dia de vida (a juventude confere mais maciez à carne). A opção pelo frango foi uma substituição à passarinhada, que era um dos pratos principais na mesa dos colonos até a proibição da caça de passarinhos.

– O galetinho é repartido ao meio, espetado em duas metades e depois dividido em quatro pedaços para ir à mesa: coxa, sobrecoxa, asa e peito. O tempero é o mais importante: sálvia, pimenta, alho e vinho branco seco. Também não pode ser assado em fogo alto, tem que ser com pouco fogo e não muito passado, para ficar bem suculento – comenta o assador Ismael Zanotto, primo dos proprietários e há 25 anos respondendo pelos assados.

Rosana Peccini, cujo livro já mencionado é fruto da sua dissertação de mestrado em Turismo, explica que a composição do galeto al primo canto presta um tributo aos alimentos que o colono trabalhava em sua terra:

– A farinha de trigo está representada pela massa, pelo pão e pelo agnoline; a criação de galinhas representada no recheio do agnoline e no próprio galeto; a farinha de trigo é representada pelo polenta. E não pode faltar o radicci, que representa a horta. O toucinho, mais tarde substituído pelo bacon, representa a criação de porcos, e assim por diante.

A pesquisadora ainda acrescenta que não se trata de colocar o galeto como um símbolo maior do que outros alimentos que fazem Caxias se reconhecida pelos seus pratos e lanches, mas sim de reconhecer sua importância como a referência ao modo de vida do imigrante italiano:

–O patrimônio imaterial é aquele que pode ser transmitido pelas tradições, oralmente, mas é preciso que alguém dê materialidade para preservar esse conhecimento de alguma forma. Daí a importância da galeteria, que surge em Caxias do Sul, como mantenedora da nossa tradição camponesa.
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Não é só comer. Ambiente da cantina também tem música, dança e muita interação entre anfitriões e visitantes

Homenagem à colônia

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Al primo canto: pão, saladas de batata com maionese e radicci com bacon, massa, polenta e galeto

Rosana Peccini, cujo livro já mencionado é fruto da sua dissertação de mestrado em Turismo, explica que a composição do galeto al primo canto presta um tributo aos alimentos que o colono trabalhava em sua terra:

– A farinha de trigo está representada pela massa, pelo pão e pelo agnoline; a criação de galinhas representada no recheio do agnoline e no próprio galeto; a farinha de trigo é representada pelo polenta. E não pode faltar o radicci, que representa a horta. O toucinho, mais tarde substituído pelo bacon, representa a criação de porcos, e assim por diante.

A pesquisadora ainda acrescenta que não se trata de colocar o galeto como um símbolo maior do que outros alimentos que fazem Caxias se reconhecida pelos seus pratos e lanches, mas sim de reconhecer sua importância como a referência ao modo de vida do imigrante italiano:

– O patrimônio imaterial é aquele que pode ser transmitido pelas tradições, oralmente, mas é preciso que alguém dê materialidade para preservar esse conhecimento de alguma forma. Daí a importância da galeteria, que surge em Caxias do Sul, como mantenedora da nossa tradição camponesa.

Até logo, inverno!

Ao longo deste inverno, o projeto De Manta e Cuia apresentou reportagens que abordam como a estação se mistura com a nossa forma de ser na região mais fria do Estado. Em junho, trouxemos o tema “frio e identidade”. Em julho, “inverno e economia”. Em agosto, “a hospitalidade que nos representa”. Percorremos nossas cidades e nosso interior, mostrando habitantes, costumes e paisagens únicas.

Ao longo deste período leitores do Pioneiro, telespectadores da RBS TV e ouvintes da Gaúcha Serra foram convidados a compartilhar conosco suas fotos, mostrando as belezas e delícias do inverno para publicação nas nossas plataformas e redes sociais.

Um obrigado a todos que dividiram um pouco do seu calor humano conosco!

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