design your own website

Saída passa
pela educação patrimonial 

Projetos de conscientização buscam contornar a falta
crônica de recursos para a preservação do
Centro Histórico da cidade mais italiana da Serra


Texto
Lucas Demeda
lucas.demeda@pioneiro.com

Fotos
Lucas Amorelli
lucas.amorelli@pioneiro.com

Ainda falta muito para que o maior patrimônio arquitetônico da imigração italiana no Brasil esteja nas condições em que ele merece. A preservação dos 48 imóveis tombados no Centro Histórico de Antônio Prado depende dos sempre escassos recursos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da boa vontade de seus proprietários, muitos dos quais ainda se ressentem das restrições da uso impostas pelo governo federal na década de 1980.

Mesmo com todas as dificuldades, porém, é possível afirmar que a cidade caminha lentamente para uma conciliação com sua história. Para a arquiteta Terezinha Buchebuan, uma nova geração já começa a superar o trauma do tombamento e enxergar valor nos centenários casarões que compõem a paisagem da cidade.

– Começaram a se formar profissionais da Arquitetura que permaneceram na cidade. Se desconstruiu aquela crença de que há um modelo padrão de edificações, de desenvolvimento. Há uma nova geração que está conectada, que não necessariamente precisa sair de Antônio Prado, mas está ligada com o mundo. Hoje a gente tem cafés, restaurantes, casas de produtos naturais nas casas tombadas. Mas ainda é um caminho longo a se construir – pondera

Terezinha, que foi responsável pelo escritório técnico do Iphan no município e é professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Um dos responsáveis diretos por essa mudança de visão é o pradense Fernando Roveda. Em 30 anos de atuação junto ao patrimônio, o Mestre em Turismo e Hospitalidade pela UCS resgatou praticamente sozinho a identidade das casas tombadas.

– Quanto mais tu conhece, mais tu preserva – justifica, parafraseando o ex-diretor do Iphan Aloísio Magalhães.

Roveda se aproximou da questão patrimonial em 1995, quando atuava como secretário de Turismo do município.

– Isso há poucos anos do tombamento, quando a cidade estava toda conflitada. Falar em patrimônio na rua era motivo para briga – lembra.

Ao mesmo tempo, ele começou a perceber o interesse dos visitantes pelos imóveis.

– Depois de olhar, apreciar, ver que a arquitetura aqui era diferente, vinha a pergunta: mas quem construiu essa casa? De que família era? Quem que morava aqui? Nós não tínhamos resposta para nada. 

Mobirise

Foi a provocação necessária para ele que empreendesse oito anos de entrevistas que resultaram no livro Memória & Identidade: Antônio Prado Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em que ele reconstituiu a história dos locais.

A pesquisa é parte do projeto de educação patrimonial de mesmo nome que, em 2005, venceu o prêmio nacional do Iphan Rodrigo Melo Franco de Andrade. Com patrocínio de empresas locais e editais públicos, Roveda conseguiu colocar placas de identificação em cada uma das casas, criou um roteiro turístico com guia em áudio e hoje centraliza suas atividades em um centro cultural ao lado da Igreja Matriz, onde mantém uma maquete da Antônio Prado histórica e recebe estudantes da rede pública do município:

– A maquete era o último item interpretativo do plano de interpretação do patrimônio. Quando terminamos, desenvolvemos um kit de cada casa, para doar para as escolas.

Com o material, os alunos podem fazer suas próprias maquetes das construções tombadas e aprender sobre o patrimônio. Ele estima que mais de 18 mil kits já foram doados para instituições de ensino de Antônio Prado, que recebem o material no início de cada ano letivo.

– Eu tenho gente de 20 e poucos anos que veio aqui com oito anos e ainda se lembra de montar as casas. Essa é a proposta, a partir da necessidade de uma educação patrimonial presente. Mudar os adultos é difícil, temos que trabalhar com as bases – defende.

A iniciativa, conforme Roveda, desperta o interesse dos pequenos e contribui para o resgate da história.

– Tem uma escola do interior em que os alunos nunca tinham vindo para o Centro. No início, acharam difícil trabalhar com os kits, mas acabaram levando para casa para montar. Envolveu o pai, a mãe, o nono, a nona... Todo mundo participou e acabaram complementando a história das casas, porque o nono se lembrava que ali funcionou na época dele uma barbearia, um comércio, etc. Depois, tiveram que fazer uma excursão para conhecer os locais. Estamos colhendo esses resultados – comemora.

Riqueza nos detalhes 

Mobirise

A paixão de Roveda pelo patrimônio se revela enquanto ele anda pelas ruas centrais da cidade enumerando detalhes que coletou durante décadas de pesquisa.

– Entrevistei praticamente todos os proprietários de casas tombadas. Fui para a Itália, pesquisei a história do padre Pellegrini, foi com ele que começou a história da cidade – comenta, ao passar pela Igreja Matriz.

O entusiasmo de Roveda contagia. A beleza do patrimônio se revela nos detalhes, de uma escadaria com uma imagem sagrada oculta embaixo das pedras – coisa que Roveda garante que só ele sabe – até os lambrequins de madeira que adornam os telhados de várias casas tombadas.

– O lambrequim começa com uma função de pingadeira, já que não existia calha. Para a chuva pingar e não apodrecer o telhado. Depois, se torna objeto de ornamentação. Tu já ouviu falar de eira, beira e soleira? Quem não tinha isso era um pé rapado. Para quem tinha, era sinal de posse. Quem não tem eira nem beira é um "pelado" – explica o pesquisador.

É essa proximidade com a história particular da comunidade que Roveda tentou resgatar com identificação das casas tombadas. Hoje, cada construção tem, em sua fachada, um depoimento em primeira pessoa, em português e em talian.

– Tem todo um conceito envolvido, de pertencimento, de raízes. Aqui tem a comunidade falando. Essa casa, por exemplo, da Luiza Maria Grazziotin. Tu não vai encontrar isso escrito num livro. Ela mesma diz, "meu avô João também tinha uma garagem de madeira. Meu pai tinha um carro com motorista, com boina, quepe e luva". Isso é um detalhe riquíssimo, que tu só encontra no depoimento da pessoa. Ela registrou porque era importante para ela – destaca.

"As pessoas não tiveram
retorno financeiro"

Mobirise

Embora a cidade tenha dado passos importantes, é consenso entre especialistas que o patrimônio só estará realmente protegido quando a comunidade passar a abraçá-lo.

– Hoje temos memória, identidade e cultura. Mas a parte econômica precisa se dar, porque quem cedeu esse patrimônio privado também tem que ter um respaldo. É uma área nobre, esse recorte é o centro de Antônio Prado. Em termos econômicos, teria um grande retorno para o proprietário, poderia resolver a vida de um herdeiro. E com um patrimônio em cima, é o inverso. Eu tenho que botar dinheiro, manter e tenho que usar dentro das diretrizes da área – reconhece Roveda.

Esta visão é compartilhada por parte da população, para quem um futuro promissor teria sido prometido a partir do tombamento, com uma saída pelo turismo.

— Naquele momento, se gerou uma esperança muito grande, mas existiam algumas pessoas que tinham outros projetos para sua vida privada e obviamente elas não tiveram retorno financeiro — afirma o Secretário Municipal de Turismo e Comércio, Fábio Lopes.

A visão de que o processo não foi conduzido de forma benéfica para o município ecoa por Antônio Prado. O dono de uma padaria na área central, que não quis se identificar, exemplifica este ponto de vista.

– Acho que começaram errado. Tinha que ter feito primeiro um hotel grande, com uma estrutura legal, como em Gramado e Canela. Agora, não tem mais volta. Têm pontos legais para visitação, mas as pessoas chegam aqui e no domingo não tem nada aberto. Se passa um ônibus de turismo, fica meia hora e vai embora – reclama.

Entre iniciativas de incentivo ao turismo, ele lembra apenas da transferência do museu municipal para uma das casas tombadas e da criação de festas típicas, como a Fenamassa e a Noite Italiana. 

“Está na hora de fazer mais”, diz proprietária

Mobirise

Mesmo assim, até para quem apoiou a preservação, a sensação é de que falta algo para a cidade deslanchar.

– Hoje, visita quem já conhece. Mas se viesse uma excursão grande, acho até que não teriam como todos se hospedarem ao mesmo tempo – pondera Elaine Manica, proprietária da casa Paim Sobrinho.

A residência é uma das únicas tombadas que foram restauradas totalmente pelos donos e é considerada exemplo positivo de conservação pelo Ministério Público Federal (MPF). Hoje, Manica mantém uma agência de viagens no imóvel, mas reconhece que não é simples mantê-lo.

– Minha mãe era proprietária de uma casa dessas. Eu nasci, me criei, casei e fui morar numa casa dessas. Para quem está nessa situação, são casas normais. Mas o meu marido abraçou a causa. Hoje, eu vejo que valeu a pena, mas falta uma estrutura de fora. No nosso caso, meu marido tinha condições e bancou a reforma. Muitos não tinham, foram feitos restauros com o Iphan e algumas empresas adotaram as casas, no início. Mas depois também caíram fora. Gastamos muito, e agora já tem pontos com cupins, sempre tem que estar pintando novamente. Acho que não aconteceu muita coisa desde então. Do poder público, não vi nada, acho que estaria na hora de fazer mais – acredita.


Leia mais

Quando o passado determina o futuro

Saída é pela educação patrimonial

Sustentabilidade depende de investimentos

Compartilhe