Quando o passado determina o futuro

Três décadas após ter seu Centro Histórico tombado, Antônio Prado, a cidade com a maior herança da imigração italiana na região, ainda luta para aceitar seu patrimônio e definir um caminho próprio para o desenvolvimento 


Texto
Lucas Demeda
lucas.demeda@pioneiro.com

Fotos
Lucas Amorelli
lucas.amorelli@pioneiro.com

Ao se aproximar de Antônio Prado pela ERS-122, o primeiro sinal do município que o visitante enxerga é uma placa anunciando a "cidade mais italiana do Brasil". A alcunha, adotada pela institucionalidade local, se justifica pela presença de elementos culturais marcantes: a culinária típica, o cultivo do dialeto talian e, principalmente, a mais bem preservada herança arquitetônica da imigração italiana no Brasil.

São 48 imóveis – 46 deles privados, todos no Centro – construídos entre o final do século 19 e o início do século 20 que mantêm suas características originais. Os bens, tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), tornam a cidade que fica a 50 quilômetros de Caxias do Sul única perante suas vizinhas de passado comum, mas são motivo tanto de orgulho quanto de ressentimento entre a população local.

Por baixo do cenário pacato de um município com pouco mais de 13 mil habitantes, a proteção imposta pelo governo federal em 1987 revela tensões que, três décadas após o tombamento das construções, ainda não arrefeceram. Parte da comunidade considera que a decisão tomada "de cima para baixo" freou o desenvolvimento da cidade. Os proprietários dos imóveis protegidos precisam de autorização para qualquer reforma nas centenárias casas de madeira e todo o Centro Histórico, área mais nobre da cidade, tem restrições de uso por fazer parte da zona de proteção ao patrimônio.

Ao contrário do que preveem algumas legislações municipais, o tombamento nacional não oferece contrapartida nenhuma aos donos das casas. Por outro lado, se estes não tiverem recursos para manter o bem conservado, é dever do Iphan arcar com a preservação. Na prática, porém, não é assim que a relação tem funcionado: o Iphan sofre com a falta crônica de verbas, e as casas tombadas já são objeto de sete ações civis públicas do Ministério Público Federal (MPF) por conta de suas más condições, tendo como réus seus tanto proprietários quanto o órgão federal.

O valor do Centro Histórico de Antônio Prado é inegável: a área está entre as primeiras reconhecidas pelo patrimônio nacional fora da tradição luso-brasileira
— juntamente com a Casa Presser, em Novo Hamburgo, como símbolo da imigração alemã; e o Terreiro Casa Branca, na Bahia, representante da cultura afro-brasileira, todos tombados na década de 1980. A atitude pioneira do Iphan possibilitou com que Antônio Prado se tornasse um museu vivo da imigração italiana, mas também a converteu em exemplo prático das dificuldades que envolvem a preservação do patrimônio histórico no Brasil. Entenda, a seguir, a complexa dinâmica da cidade que, para o bem e para o mal, é a representante máxima da memória de toda a região da Serra.

O patrimônio

  1. Estudos para proteger o Centro Histórico de Antônio Prado começaram na década de 1980. O primeiro imóvel tombado foi a Casa da Neni, por iniciativa do proprietário, em 1985. Hoje, a residência abriga o Museu Municipal Padre Schio.
  2. O conjunto arquitetônico e urbanístico de Antônio Prado foi tombado pelo Iphan em 1987, em processo concluído em 1990. Além de proteger as 48 construções, a entidade buscou preservar o traçado das ruas, praças e vistas do centro da cidade.
  3. A maioria das casas está localizada ao redor da Praça Garibaldi e na Avenida Valdomiro Bocchese e Av. dos Imigrantes. A Zona de Proteção Rigorosa do patrimônio margeia estas vias.
  4. Quase todos os casarões protegidos são de madeira, material típico da região. A técnica de construção representa a época de apogeu da primeira geração de imigrantes, quando eles já estavam estabelecidos definitivamente nas colônias. Com o passar do tempo, diversas casas foram ornamentados com lambrequins (elementos decorativos nos telhados), traço marcante da arquitetura local.
  5. Antônio Prado é considerado, juntamente com Santa Tereza, que teve o núcleo urbano tombado em 2012, o mais bem preservado testemunho do legado cultural da imigração italiana no Brasil.
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Povo isolado e orgulhoso 

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Para entender os desafios da preservação do patrimônio de Antônio Prado, é necessário começar pelo contexto histórico da cidade.

– Muita gente fala que o povo de Antônio Prado teve a fortuna de preservar seu patrimônio. Mas nós não preservamos. Estávamos preocupados com o desvio da ponte e da estrada que passava por aqui. Não conseguíamos estudar em Caxias porque demorava três horas e meia para chegar. Ninguém estava preocupado com isso, queríamos estrada e acesso – conta Fernando Roveda, que estuda e defende o patrimônio da cidade há três décadas.

Conforme Roveda, que é Mestre em Turismo e Hospitalidade pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e foi secretário de Turismo da cidade, o município florescia até o início do século 20, quando articulações políticas fizeram com que a construção da BR-2 (atual BR-116) e da ponte sobre o Rio das Antas, novas vias de acesso à região, fossem construídas distantes da cidade.

– Antônio Prado era o celeiro da região nordeste do Rio Grande do Sul, estava em lugar estratégico de comunicação entre os Campos de Cima da Serra e Porto Alegre. Tinha 17 casas comerciais e seis bancos até 1930, quando foi desviada a estrada. A ponte já havia sido desviada em 1907. Então, o patrimônio de Antônio Prado tem que ser entendido pelo isolamento – explica.

A infraestrutura acabou favorecendo Caxias do Sul e consolidando o status da cidade como polo central da Serra. Por outro lado, a estagnação econômica condenou, de certa forma, os habitantes de Antônio Prado a manterem suas antigas casas de madeira.

Para a arquiteta Terezinha Buchebuan, o ressentimento da cidade ao tombamento tem raízes ainda mais profundas. A professora foi responsável pelo escritório técnico do Iphan no município entre 2006 e 2012, atuando como ponte entre a população e o órgão federal. Após observar e vivenciar as demandas e tensões da comunidade, ela se debruçou sobre o tema em sua dissertação de Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade pela UCS.

– Havia uma resistência muito grande da cidade em relação ao tombamento e uma dicotomia muito grande. Quem vinha de fora saía extasiado com a paisagem urbana e a quantidade de edificações, em contraponto com os proprietários – relata.

Após a pesquisa, ela concluiu que a resistência tinha origem cultural:

– O imigrante tem um vínculo muito grande com a casa, ela representa o progresso, era uma forma de afirmação, de que ele venceu nesse lugar, e de alguma forma a gente herdou isso. Está muito ligado ao culto ao trabalho, que é um valor para a região até hoje. Então, era natural retirar a casa de madeira, que era a representação da pobreza no imaginário local, e colocar no lugar uma casa de alvenaria, moderna – aponta.

Após sobreviver a um longo período de estagnação, a população, de acordo com sua concepção, teve suas possibilidades de "progresso" sepultadas pelo tombamento.

– O dinamismo econômico estava fazendo todas as cidades substituírem essas casas pelos edifícios modernos de tijolos e vidro. Esses materiais também são a representação de que o progresso está chegando e ali tem sucesso econômico. Acho que isso contribuiu bastante para essa negação em relação ao patrimônio. Têm reportagens antigas, inclusive, que chamavam essas casas de "velhas, podres, cheias de cupins" – lembra. 


Sem verba, impasses acabam na justiça 

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Terezinha Buchebuan atuou no Iphan durante um período em que o órgão tentava se aproximar da comunidade, buscando se recuperar do desmonte sofrido durante o governo Collor, no início da década de 1990, quando todos os escritórios técnicos do país haviam sido fechados. A falta de servidores e a burocracia excessiva alienaram a parte dos proprietários que podia – e queria – arcar com a restauração de suas casas, mas não conseguia autorização:

– Começamos a estabelecer rotinas de encaminhamento e os processos começaram a andar mais. Isso foi contribuindo para que a comunidade também compreendesse melhor a importância do patrimônio. Recursos também começaram a ser aportados, tivemos muitos restauros, até porque era um momento econômico interessante.

No entanto, os recursos nunca foram suficientes. Hoje, há sete ações judiciais em andamento, nas quais o MPF cobra a restauração das casas. Em cinco dos processos, o Iphan está entre os réus. A última decisão favorável ao MPF veio no início de abril. O juiz Fernando Etges, da 3ª Vara Federal de Caxias, determinou que o Iphan e os proprietários efetuem o restauro da casa Tergolina-Rizzieri, obra que estava orçada em quase R$ 800 mil em 2013.

A ação teve origem em inquérito civil público aberto ainda em 2008 pela procuradora da República de Caxias Luciana Guarnieri. Ela relata que o MPF começou a olhar para o patrimônio de Antônio Prado no início da década de 2000, após uma das casas tombadas pegar fogo.

– Era uma casa que estava bem deteriorada e o proprietário estava em um impasse com o Iphan. Ele queria fazer algumas modificações, mas o Iphan não concordava, e naquele meio tempo aquela casa incendiou. As casas do lado não pegaram fogo por milagre – lembra.

Após longo processo, técnicos decidiram que a residência deveria ser reconstruída com um memorial do incêndio ao lado. Desde então, Luciana abriu inquéritos para quase todas as outras construções, buscando impedir situações semelhantes. Por meio de acordos, conseguiu priorizar reformas nos casos mais críticos e substituir a instalação elétrica das residências, por exemplo. No entanto, 11 inquéritos seguem em aberto.

– A partir daí, fomos entrando com ações contra o Iphan, contra as pessoas, ou ainda esperando as reformas, conforme a capacidade do Iphan acompanhar e fiscalizar – afirma.

A procuradora explica que a responsabilidade do restauro geralmente recai sobre o órgão federal porque os proprietários não têm recursos suficientes.

– Não é uma simples reforma. Tem que seguir normas, depende do trabalho de pessoas especializadas e é muito mais oneroso. Para qualquer restauro de uma casa dessas a gente está falando em R$ 500 mil, R$ 700 mil, R$ 800 mil. Então não é pouca coisa. Tem que fazer todo o inventário do estado da casa, desmanchar, catalogar, reaproveitar tudo o que é possível. E a maioria dessas pessoas, sozinhas, não tem condições, porque são residências.

O Iphan, por sua vez, simplesmente não recebe verbas suficientes da União, que é ré em três ações e já recorreu de decisão desfavorável em primeira instância em duas delas.

– A dificuldade é orçamentária. Todo ano, o Iphan faz uma lista de prioridades, que vai para Brasília. Eu tenho certeza de que grande parte do que é pedido não vem. Essas casas com ações em aberto, eu tenho certeza que ficaram anos na fila como prioridade. A gente foi entrando com as ações ao perceber que o dinheiro não ia vir nunca. Às vezes, o projeto está elaborado e se perde o pouco que foi feito, já que até executar tem que fazer outro. Não é fácil – lamenta.

Contraponto

Procurado pelo Pioneiro, o Iphan declarou, por meio de sua superintendência no RS, que "não comenta ações judiciais", mas que "de modo geral, os imóveis apresentam bom estado de conservação e manutenção". A entidade diz ainda que "a maior parte dos problemas é reflexo da falta de manutenção rotineira, preventiva, que é de responsabilidade dos proprietários".

Entre os principais desafios para a cidade, o Iphan destaca a "a questão da gestão e do uso desses bens, além da compreensão das responsabilidades que cabem aos proprietários e ao Iphan. Muitos proprietários têm a expectativa de que os bens de sua propriedade, após o tombamento, passam à responsabilidade do poder público e, portanto, deixam de tomar as medidas necessárias à manutenção do imóvel, negligenciando reparos simples como, por exemplo, a substituição de telhas quebradas. Essa atitude acaba por agravar problemas pontuais que, com o passar do tempo, se transformam em danos que requerem intervenções complexas e mais custosas", conclui. 

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