Olhai por Nós

Publicado em 22 e 23 de abril de 2017

TEXTOS
Andrei Andrade
andrei.andrade@pioneiro.com

IMAGENS
Marcelo Casagrande
marcelo.casagrande@pioneiro.com
Diogo Sallaberry
diogo.sallaberry@pioneiro.com

INFOGRAFIA
Guilherme Ferrari

ARTE
Andressa Paulino

Dez anos atrás, tendo como premissa construir um futuro melhor para a juventude caxiense, a prefeitura criava a Secretaria de Segurança Pública e Proteção Social. Em uma década, os avanços se mostraram tímidos. Provocaram menos barulho que o estampido de um revólver ou que o choro da mãe ao perder um filho.

No período, pelo menos 385 jovens que poderiam estar sob a proteção do poder público em algum momento foram assassinados em Caxias do Sul _ um terço do total de 1.174 mortes violentas no período. Pouco mais de 120 desses jovens nasceram, cresceram ou apenas tiveram a vida ceifada na Zona Norte, região estigmatizada pela violência e pela ineficiência de quem deveria intervir por condições mais dignas à população. Com cerca de 60 mil moradores, a região concentra alguns dos bairros que lideram as estatísticas de violência, incluindo os dois que mais vítimas fatais tiveram em 2016, ano com assassinatos na história da cidade: Santa Fé e Vila Ipê.

O assassinato de Matheus Seibert aos 20 anos, espancado três rapazes por conta de uma dívida de droga; a execução por ciúmes dos primos Kelvin Weslen Vieira e Vitor Gois Neves, 15 e 14 anos; os sete tiros que vitimaram Wesley Tessari, que aos 16 anos já possuía extensa ficha criminal, são a manifestação mais explícita de uma violência que se esconde por trás do noticiário policial. Também é violência a fome que acomete tantas famílias daquela região de migrantes que desembarcaram Caxias ao longo dos últimos 40 anos para tentar a sorte; também é violência o preconceito de quem julga o morador que se anuncia da Zona Norte, na escola ou na entrevista de emprego, um bandido ou vagabundo.

Sessenta e cinco vítimas da violência em Caxias na última década eram menores de idade. Entre tantas vidas perdidas, jovens que tiveram pouca ou nenhuma chance de se mostrar produtivos ou talentosos. Que deixaram a escola por identificar no tráfico ou no roubo uma possibilidade de ascensão rápida, sem enxergar o verdadeiro custo dessa escolha ou que morreram pelas mãos de outros jovens. Quem poderia ter feito algo para impedir? Dez anos não são suficientes para reverter resultados tão negativos?

As tentativas de transformar a realidade normalmente atendem por siglas que não chegam a se tornar tão populares onde a vulnerabilidade faz doer mais. FAS, CRAS, PIM e CIPAVE são exemplos de instituições e programas que abraçam as periferias, porém com braços assumidamente curtos. Se nas brechas onde a transformação ocorre vêm à tona uma juventude criativa, disposta e corajosa, por que não investir mais e diferente?

Nesta reportagem, a reportagem ouviu representantes do poder público e da própria comunidade que avaliam o que já foi e que ainda terá de ser feito para alcançar uma transformação mais consistente nos próximos anos.

Levantamento

No Brasil, o Estatuto da Juventude define como jovens pessoas entre 15 e 29 anos. Para o recorte até 25 anos, a reportagem considerou a teoria da Psicologia do Desenvolvimento, que considera como juventude o período da vida entre os 18 e 25 anos, que sucede a puberdade e adolescência (12 a 17) e antecede a vida adulta jovem (25 a 30). É a etapa da vida em que se busca autonomia e consciência plena das responsabilidades da vida adulta. O levantamento do Pioneiro abrange as vidas perdidas entre a primeira infância e o fim da juventude. 

Lágrimas da Zona Norte

Para tentar exemplificar como quase nada mudou na violência que mata rapazes e moças em Caxias do Sul, a reportagem percorreu a Zona Norte para conhecer como vivem e o que pensam sua juventude e lideranças. As mazelas da região são consensuais e dialogam: o consumo e o tráfico de drogas; a falta de opções de lazer e cultura; a evasão escolar; o empobrecimento das famílias. Neste especial, mostramos histórias de garotos e suas famílias, com baixa perspectiva. Mais do que tudo, são histórias que espelham também as turmas do Sul, do Oeste e o Leste.

O fôlego não foi suficiente

É preciso voltar a 2004 para entender porque Caxias do Sul resolveu investir recursos para preservar a vida de jovens e arregimentar servidores municipais e CCs num esforço que poderia fazer a diferença contra a violência. O então candidato a prefeito José Ivo Sartori forjou a campanha da eleição de 2004 em diversos pilares, mas uma das prioridades era a segurança. Na época, os crimes contra a vida estavam em ascensão: 60 assassinatos em 2002; 67 assassinatos em 2003 e 83 assassinatos em 2004, números que só aumentaram desde então. Além disso, as grandes quadrilhas agiam com força na cidade por meio de roubos a banco e a carro-forte e o tráfico de drogas ganhava mais impulso. A estratégia de bater forte na insegurança deu certo junto ao eleitorado. Dois anos depois de assumir a prefeitura, Sartori anunciou, em janeiro de 2007, a criação Secretaria de Segurança Pública e Proteção Social e colocou o coronel da reserva da Brigada Militar Roberto Louzada na linha de frente da pasta.

Para evitar conflitos institucionais, o prefeito logo tratou de esclarecer que a missão não era policiar ruas ou combater bandidos como imaginava parte da população. O objetivo principal era desenvolver ações que dessem uma perspectiva diferente à juventude caxiense. Havia o entendimento de que era necessário impedir que crianças e adolescentes fossem aliciados para o crime, um papel mais social do que de polícia. Para isso, o município deveria investir recursos e ações preventivas em parcerias com ONGs e outras instituições. Ou seja, crianças e adolescentes ocupados em atividades saudáveis, em tese, seriam crianças longe de traficantes e outros bandidos.

Com essa premisssa, a pasta decolou mesmo em abril de 2007, com a atuação da Guarda Municipal em escolas. Louzada comandou a secretaria até abril do ano passado e implementou ou apoiou projetos como a Justiça Restaurativa, o Policiamento Comunitário, a Cipave, o Gabinete de Gestão Integrada (GGI), o Conselho da Comunidade e o Casamento Comunitário. Louzada afastou-se do trabalho por motivos de saúde. Procurado, prefere não se manifestar sobre o assunto, segundo familiares.

Ainda é cedo para afirmar se a nova gestão da Secretaria da Segurança terá fôlego para reverter tantos assassinatos de jovens. O secretário José Francisco Mallmann tenta implantar uma nova postura do Executivo diante da violência. Recebeu do prefeito Daniel Guerra 10 prioridades, boa parte voltadas para a repressão e infraestrutura de combate ao crime, com foco na atuação da Guarda Municipal. Seria uma mudança de perfil? Mallmann diz que não:

— Queremos dar mais corpo à Guarda. A lei garante esse caráter preventivo de ação em conjunto ou isolado. Estamos saindo do papel de coadjuvantes para o protagonismo.

O próximo passo é entender a violência na cidade: quem mata, quem morre, onde vivem e por que? O secretário promete ir aos bairros com mais incidência da criminalidade para ampliar o contato com a população.

— Começamos com o mapeamento, planejamento e inteligência. Nosso foco ainda é a proteção social e direitos humanos. Estamos agindo nas ruas porque é o que a população quer.

Sob a liderança da secretaria, centenas de jovens trilharam caminhos diferentes. Seria ainda pior se não houvesse tal iniciativa. Mas, por outro lado, quando se propõe uma estratégia, quando se gasta recursos públicos, é esperado resultado de impacto. Se a migração de adolescentes e jovens para o crime e, consequentemente, o extermínio dessa juventude, ainda é uma realidade, talvez é o momento de rever a estratégia para evitar um caminho sem volta.

Balanço: onde a secretaria se destacou e onde precisa avançar

Avançou


Integração

Se antes, as secretarias trabalhavam separadamente, a Secretaria de Segurança de Caxias conseguiu estimular a parceria entre diferentes pastas. Isso permitiu a criação do programa Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar (Cipave), em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, a expansão do Primeira Infância Melhor (PIM). O PIM, implementado em Caxias em 2005 (anterior à secretaria) atua junto a gestantes e mães de crianças até seis anos, com acompanhamento através de visitas regulares às famílias, na fase mais importante do desenvolvimento infantil. Mais de 5 mil famílias já foram atendidas. O Cipave, por sua vez, atua em Caxias desde 2012, identificando violência e vulnerabilidade no âmbito escolar.

Pacificação

Um projeto entre a Justiça, a Universidade de Caxias do Sul (UCS) e a Secretaria de Segurança Pública e Proteção Social facilitou a implantação do Núcleo de Justiça Restaurativa em 2014. Facilitadores dos círculos de paz, formados em cursos oferecidos pelo Núcleo, promovem a aproximação entre infratores, vítimas e a comunidade, nas áreas de pequenas causas, violência doméstica e infância e juventude. Ao estimular o senso comunitário, de forma abrangente, os idealizadores pretendem reduzir a indiferença e baixo engajamento da população em relação à violência. A cada ano, em média 500 encontros restaurativos ocorrem em Caxias do Sul. Essa iniciativa foi o embrião para o programa de cooperação interinstitucional Caxias da Paz, que tornou sistemática a formação dos voluntários da paz, num projeto assinado pela Fundação Caxias.

Fome

O entendimento de que problemas sociais estão ligados à violência fundamentou a decisão de colocar sob a direção da Segurança Pública setores como a Diretoria de Segurança Alimentar. O serviço em conjunto com a Fundação de Assistência Social e o Banco de Alimentos, é fundamental para identificar famílias que sequer têm comida em casa. Outro trabalho, em parceria a Eletrosul, é a Horta Comunitária do Loteamento Vila Ipê, que beneficia cerca de 70 famílias de baixa renda. Criada em um terreno de 33 m², por onde passa a linha de transmissão da companhia de energia elétrica, a horta é mantida pelos moradores, que cultivam pêssegos, bergamotas, laranjas, limões e outras frutas, que depois levam os alimentos para suas casas. Implementado em 2006 com cerca de 20 famílias, é um projeto que precisa ser expandido.

Ações conjuntas

Pela primeira vez, responsáveis por diversos setores ligados à segurança pública e proteção social sentaram para debater a insegurança e planejar ações. O Gabinete de Gestão Integrada Municipal (GGI-M) reúne Polícia Civil, Brigada Militar, Conselho Tutelar, Ministério Público, entre outros. Foi por meio desses encontros, estimulados pela Secretaria de Segurança, que nasceu a operação que combateu os bondes (turmas de adolesentes envolvidas em brigas, assaltos, badernas e até morte).

Guarda Municipal

A guarda deixou de ser apenas figurativa em postos de vigilância em prédios da prefeitura e foi às escolas para trabalhar projetos de prevenção. Neste ano, houve nova mudança de postura. Os guardas têm sido usados em operações contra a criminalidade, a exemplo da Operação Cerca Viva, que aborda veículos e suspeitos nos acessos de Caxias do Sul.

Não avançou


Mapeamento da criminalidade

Esse mapeamento foi uma promessa que perdeu-se com o tempo. A ideia era fazer um perfil das vítimas e autores de crimes, bem como o meio onde vivem, para um trabalho mais direcionado. Isso poderia ter sido feito com a utilização de um software para análises estatísticas adquirido ainda em 2006, mas deixado de lado ao fim de 2008. Chamado SPSS (Pacote estatístico para ciências sociais, na sigla traduzida), esta ferramenta permitiria nortear geograficamente as ações da prefeitura, indicando que tipo de vulnerabilidade demanda determinado trabalho em uma área específica.

Foco de atuação

Além de ser pouco presente nos bairros periféricos, a Secretaria de Segurança deveria ajudar a prevenir a violência em relação à questões sociais, mas agora tem exercido cada vez mais o papel de polícia, confundindo-se com órgãos que já atuam na promoção da segurança com viés punitivo. A medida até é positiva, mas para especialistas, não revertará a violência como se imagina.

Diálogo

A aproximação com as comunidades ainda é incipiente em Caxias do Sul, o que dificulta o empoderamento de moradores de áreas mais vulneráveis frente à criminalidade. Encontros entre órgãos da prefeitura e lideranças comunitárias, quando ocorrem, não resultam em ações práticas efetivas, pois os projetos que visam promover segurança são generalistas, pontuais e desconsideram o contexto de cada bairro ou loteamento. Exemplo disso foi o trabalho executado no bairro Cânyon, que enfrentava uma grave migração de adolescentes para o crime e para a mendicância. Houve um trabalho organizado durante alguns meses, mas que acabou sendo cancelado.

Lazer

ainda faltam opções de lazer e cultura para a juventude, uma tarefa que foi assumida pela Coordenadoria da Juventude, também sob o controle da Secretaria de Segurança. É nítido que crianças e adolescentes que dispõem de atividades como capoeira, hip-hop e grafite (apenas para citar manifestações culturais mais presentes em comunidades carentes) reforçam vínculos sociais e se desenvolvem como cidadãos melhores. O outro lado desta moeda é a ociosidade e a desproteção que permite a aproximação com a criminalidade.

Mais violentos

Desde que Caxias do Sul decidiu apostar na prevenção, a cultura da violência juvenil evoluiu. Saiu de cena aquele guri munido de canivete interessado no tênis e no celular alheio e entrou o rapaz idolatrado nas redes sociais porque ostenta pistola de calibre restrito, dinheiro roubado e demonstra apreço ou ligação com grupos criminosos. Para policiais experientes, não há mais ritual de iniciação como os pequenos furtos do passado. O infrator caxiense já migra direto para assaltos e homicídios.

— Além de saberem sobre seus direitos de cor e salteado, os jovens também sabem da impunidade. São fascinados pelas armas e por seus heróis que comandam o tráfico. Por outro lado, esses jovens repudiam as instituições que combatem e previnem essas práticas, no caso, a polícia. São essas características que aproximam eles das facções, que mostram como o perfil mudou _ ressalta o comissário de polícia aposentado Paulo César Garcia Pereira, que atuou na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), de 2002 a 2014.

Ao mesmo tempo, é esse jovem que não tem sido perdoado pelo tribunal do crime. Dos 385 assassinatos em 10 anos, a maioria é de rapazes que estava em dívida com grupos criminosos ou possuía desavença com bandidos, segundo percepção de investigadores e entidades sociais.

São muitas as histórias de execuções, mas o caso de um adolescente de 14 anos, que teve a morte gravada por integrantes de uma facção em Caxias do Sul, é emblemática. A investigação apontou que o rapaz havia furtado drogas de um grupo comandado por um traficante preso. No submundo, esse tipo de atitude geralmente é punida com a morte. A sentença foi cumprida num matagal no interior de Caxias no ano passado: o rapaz levou dois tiros na cabeça e o corpo só foi identificado um mês depois. O executor gravou o assassinato no celular para mostrar aos chefes que o recado estava dado. A Polícia Civil encontrou o vídeo no celular do traficante, que cumpria pena na penitenciária do Apanhador e foi transferido de Caxias. A investigação não está concluída, mas há três suspeitos identificados.

Poderia o poder público ter interferido na trajetória desse rapaz ainda na infância a ponto de impedir que ele se envolvesse com o crime e tivesse a vida preservada? O titular da Secretaria de Segurança, José Francisco Mallmann, é cético e toca em outro ponto: o papel da família.

— Quanto se trata de execução, o jovem já está condenado à morte, principalmente quando ele se envolve com o tráfico. Não há muito o que fazer. Precisamos então é combater o tráfico e isso se faz com o setor de inteligência. Tem uma coisa também que é dever do Estado, mas pais precisam participar, fazer a parte da família. 

O escrivão Juverci Luiz Barbosa de Oliveira ingressou na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) no mesmo ano da fundação da Secretaria de Segurança Pública e Proteção Social. Além de acompanhar a mudança de perfil dos jovens infratores, monitora os números que medem a participação deles na criminalidade. O policial confere ocorrência por ocorrência para separar casos graves dos delitos de menor potencial e insere os dados no sistema da DPCA.

O levantamento causa espanto: entre 2007 e 2016, foram registradas pelo menos 9 mil ocorrências onde adolescentes figuram como autores de roubos, furtos, homicídios e tentativas, tráfico de drogas, brigas em escolas e lesão corporal. O número é alto, mas vem baixando a ano a ano (ver quadro ao lado).

A grande maioria dos citados são rapazes entre 12 e 17 anos — o levantamento indica 9.065 jovens como autores de delitos, sendo que esse número pode incluir um mesmo adolescente como autor de várias ocorrências, o que torna difícil precisar a quantidade exata de infratores identificados na cidade. As moças também aparecem na estatística: seriam ao menos 2,2 mil, geralmente envolvidas em brigas ou furtos. Por outro lado, um número semelhante de ocorrências é de adolescentes vítimas da violência, o que inclui crimes sexuais.

— Hoje, a gurizada anda com pistola, comete crimes maiores. É diferente do passado, mas entendo que é reflexo do crescimento da cidade, da violência como um todo no país — pondera Juverci.

Compare

Fonte: DPCA

As ocorrências registradas na polícia onde adolescentes figuram como autores de delitos variados teve crescimento entre 2013 e 2014, mas vem diminuindo desde então. A grande maioria dos casos é relacionada a assaltos, homicídios, tentativa de homicídios, tráfico de drogas, brigas em escolas e lesão corporal. No levantamento abaixo, é possível notar que há mais autores do que o número de ocorrências num determinado ano. Isso ocorre porque um único caso pode ter a participação de várias pessoas.

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