Para tentar exemplificar como quase nada mudou na violência que mata rapazes e moças em Caxias do Sul, a reportagem percorreu a Zona Norte para conhecer como vivem e o que pensam sua juventude e lideranças.
Entre moradores jovens e antigos, as mazelas da região são consensuais e dialogam: o consumo e o tráfico de drogas; a falta de opções de lazer e cultura; a evasão escolar; o empobrecimento das famílias. No conteúdo, as histórias são de garotos e suas famílias, com baixa perspectiva na Zona Norte. Mais do que tudo: são histórias que espelham também as turmas do Sul, do Oeste e o Leste.
Rodar pelas ruas e becos da Zona Norte na carona do Corsa 2003 de Carlos Alberto Rodrigues é embarcar num passeio guiado pelos últimos 30 anos de violência na região. Com o indicador da mão esquerda, o motorista aponta para o local onde cada crime ocorreu, discorrendo sobre circunstância, motivação, às vezes até a autoria. Morador do Vila Ipê desde o início dos anos 1980, quando o então prefeito Mansueto Serafini criou o loteamento para acomodar o grande número de migrantes que chegavam a Caxias do Sul à procura de emprego, Rodrigues conhece como poucos a dura realidade da Zona Norte. Por isso, não se surpreende que 19 jovens tenham sido assassinados no Vila Ipê apenas em 2016.
Em 1983, Carlos Alberto tinha sete anos quando ouviu de casa o disparo que provocou o primeiro homicídio do Vila Ipê. Curioso, correu para ver o corpo de uma mulher morta com um tiro no olho, em uma parada de ônibus. Ao longo das décadas seguintes, o convívio tão próximo com a violência o fez perder a conta de quantos conhecidos perderam a vida. Até que resolveu esboçar uma lista, no fim do ano passado. Sem forçar muito a memória, chegou a 130 nomes, boa parte de amigos bem próximos de um período em que ele próprio esteve próximo de virar nota de obituário.
— A maioria é de jovens, que se matam entre eles. Uma vez os crimes aconteciam por causa de mulher, depois vieram as gangues que brigavam uma contra a outra, e por último o tráfico de drogas e os roubos. Disputa por pontos de tráfico, ou alguém que rouba e não quer dividir...o fato de eu ter sido viciado em drogas dos 15 aos 33 anos fez com que eu tivesse um envolvimento muito grande e fizesse amizade com esse pessoal — conta Carlos Alberto, hoje com 40 anos.
Entre os amigos que perdeu para o crime, recorda especialmente de um chamado Osni, cujo apelido era Buiú.
— Sinto saudade de vários, mas houve uma morte que me marcou muito porque fui a última pessoa a falar com a vítima. O Buiú esteve na minha casa pedindo ajuda e tivemos uma longa conversa. Quando chegou no portão da casa dele, a mais ou menos 500 metros, atiraram e mataram ele — lastima.
Ter tomado consciência do caminho trágico que levava à prisão ou à morte tantos companheiros de sua geração foi a razão para Rodrigues procurar ajuda em clínicas e centros de reabilitação. Ao retornar da última internação, uma longa estadia em Pelotas, cansou de ouvir que era preciso deixar a Zona Norte para recomeçar. Mas ele queria ser um exemplo de que a mudança é possível.
— Hoje as mães me veem bem e pedem para que eu converse com os filhos que estão entregues ao vício. Como eu conheço os centros de reabilitação, muitas vezes consigo encaminhá-los — orgulha-se.
O motivo para a região ainda perder tantos jovens para a criminalidade, Rodrigues acredita que seja a força da propaganda informal do tráfico, traduzida no modo de vida daqueles que o comandam.
— Ninguém olha para o lado ruim, para o cara que perdeu a casa ou o trabalho para o vício. Tu olha quando ele está bacana, com um carrinho e com uma mulher bonita ao lado. Enquanto o traficante roda de BMW, o trabalhador acorda às 6h e mal consegue ter um Corsinha. São realidades muito desiguais, existindo muito próximas — denuncia.
Do ex-viciado ao líder comunitário que até o ano passado coordenava o Complexo Esportivo da Zona Norte, Rodrigues critica o que considera o desvio de foco na atuação dos órgãos de segurança para mudar a realidade da juventude entregue ao vício em Caxias, em especial na região que melhor conhece.
— Muitos projetos de segurança pública só servem para as autoridades virem aqui tirar foto e depois virar as costas. Elas nunca desceram essa escada (referindo-se à escadaria do bairro Cânyon). Fazer caminhada da paz não resolve nada. Oferecer cesta básica é importante, mas se há um viciado em casa, ele vende pra comprar droga. Deveria haver uma coordenadoria voltada para a dependência química, com um trabalho que vá até a casa da família, e se a mãe não sabe onde o filho está, que se vá até os becos atrás dele para bater um papo. É como a diferença entre tu fazer uma matéria sobre drogas pesquisando na internet ou vindo até aqui. As autoridades não chegam até aqui — avalia.
Prestes a concluir um curso de Gestão Pública, o ex-viciado sonha em fundar uma ONG que lhe permita formalizar o trabalho que hoje tenta fazer junto às famílias, com foco na recuperação dos jovens.
No final dos anos 1990, uma gurizada boa de bola da Zona Norte chamou a atenção nos campeonatos infantis de Caxias com o time Passos Para o Futuro, que reunia meninos do loteamento Vila Ipê e dos bairros Cânyon e Santa Fé. É com saudade dos jogos e das viagens que hoje Jeferson Pereira, 29 anos, olha para a única foto que restou daquela época, de uma excursão para Venâncio Aires. Para muitos daquela equipe, os passos para o futuro não seguiram o rumo certo.
A imersão nas drogas ainda na adolescência selou o destino de boa parte dos colegas de Jeferson, a começar por aquele que foi seu grande parceiro e também camisa 10 do time, Jussie Laureano Lemos, o Siê. Jeferson e Siê formavam aquela dupla de melhores amigos da qual todo mundo teve uma na infância. Colegas de escola que passavam o dia brincando na rua e posavam um na casa do outro. Assim foi até os 15 anos, quando Siê aparentemente perdeu a capacidade de optar pelo próprio caminho. Ele morreu em janeiro de 2009, aos 19 anos, atingido com três tiros no tórax.
— Ele se envolveu com as drogas e não teve forças para sair, assim como muitos outros. O vício te leva a roubar, a andar com más companhias, a perder o respeito pelos pais, a não querer mais trabalhar...vira tudo uma bagunça que te tira do controle. O Siê chegou a ir embora para a praia para ver se acalmava, mas depois voltou mais perdido ainda. Cheguei a levá-lo para a igreja, para o futebol...mas ele jogava cinco minutos e já saia para se drogar. Eu estava saindo de casa quando ouvi os tiros que mataram ele — lastima o amigo.
Passando os olhos pela fotografia, Jeferson aponta para mais quatro amigos que estão presos por roubo ou afundados nas drogas, internados ou vagando pelas ruas. Outro rapaz da foto, cujo apelido era Negão, foi encontrado enforcado três anos atrás. A polícia tratou o caso como suicídio. O que impediu Jeferson de encontrar destinos semelhantes, ele não sabe ao certo. Mas acredita na responsabilidade dividida entre família e indivíduo.
— No bairro, a gente está sempre a um passo da droga. Cabe a nós querer ou não. Eu cheguei a experimentar maconha, mas não gostei. Também depende da família, mas por aqui a maioria é desestruturada...alguns meninos vivem atirados. Outra parcela da responsabilidade é nossa. Posso ter dinheiro e tudo o que eu quiser e também morrer por droga. Nem tudo é falta de estrutura — pontua.
Dos antigos amigos, Jeferson mantém contato com poucos. Um deles, que mora em São Paulo, quer sempre saber como estão todos, e nem sempre as notícias são as mais positivas. Estudante de Teologia, funcionário de uma metalúrgica e pai de um menino de 9 anos, Jeferson não quer mascarar a realidade da região para o filho. Mas quer ser a referência que muitos de seus contemporâneos não tiveram para trilhar os passos certos.
— Mais do que falar, é minha ação que vai fazê-lo refletir. Vai chegar o momento em que vão oferecer drogas pra ele, que vão convidar pra roubar assim como me convidaram. Vou interceder por ele, aconselhar até onde puder. Mas a decisão será dele.
Na penumbra de um casebre em uma área invadida entre o Cânyon e o Santa Fé, um casal conta o drama de tentar salvar o futuro do filho, vítima do vício em drogas. O menino de 20 anos, que na adolescência ajudava o pai como garçom e já adulto tornou-se profissional elogiado pelos patrões, sucumbiu rápida e inexplicavelmente. Está internado há mais de dois meses em um centro de reabilitação em Três Coroas, chamado Desafio Jovem, onde ficará por um ano.
— Eu não queria estar nessa invasão. Mas, com a crise fiquei desempregado e não consegui mais pagar o aluguel da casa onde a gente morava, no Santa Fé. Se tivesse condições, sairia hoje mesmo — emociona-se o pai, engasgado em lágrimas.
Após um histórico de incontáveis internações nos últimos três anos, que fez a família gastar as poucas reservas que dispunha no banco, o casal não sabe se o filho terá ainda muitas chances para retomar o rumo. A cada retorno para casa, o jovem volta também ao convívio com a droga, sempre disponível a poucos quarteirões de distância.
— O problema é que nessa região existe muita droga. Não podemos tapar o sol com a peneira. Ele sai da clínica, volta para o bairro, e aqui...eu não sei se (as autoridades) fazem que não veem ou se só querem pegar os maiores, mas a venda é a céu aberto — reclama o homem, que assim como a mulher prefere preservar a identidade.
Impotentes diante do ímã que representa a oferta de entorpecentes na vizinhança para o viciado, o casal se divide entre a esperança de reunir dinheiro para alugar um imóvel em outra área da cidade e o sonho de que dessa vez o filho volte regenerado para sempre da clínica no Vale do Paranhana.
— Nunca deixei de lutar por ele. O lugar onde ele está é considerado um dos melhores lugares do Estado para reabilitação. Mesmo apesar de toda a sequela que as drogas já provocaram, quero que ele entenda que essa é a chance dele recuperar a vida — acredita a mãe.
A presença do frei Emiliano Dantas, cearense de 32 anos que há oito vive em Caxias e há dois na Zona Norte, baseia-se no pedido que o papa Francisco faz a seus pastores ao final de uma missa pascal em 2013, que se tornou célebre: que tenham cheiro de ovelha. Com a figura de linguagem, o papa quis mostrar que, para transformar a realidade dos mais necessitados, é necessário misturar-se a eles nas periferias. Só sente o cheiro do suor quem está ao lado, afinal.
Ao aceitar o desafio de coordenar a congregação Murialdo Santa Fé, o frei que até então só conhecia aquela região de passar de ônibus pela Rota do Sol precisou-se do próprio pré-conceito sobre aquela população. Vivendo como parte dela, em apenas dois anos se tornou uma liderança muito mais do que religiosa, mas também comunitária. Em uma manhã de janeiro, entre um e outro atendimento a moradores que pediam ajuda para conseguir emprego, o frei conversou com o Pioneiro sobre o que a experiência na Zona Norte o fez enxergar que o resto de Caxias ainda não percebeu.
Frei Emiliano: Encontrei homens e mulheres provenientes de outras cidades e Estados, com muita capacidade e vontade de trabalhar e muito acolhedores. Fui conhecer melhor a realidade me aproximando, dando bom dia, perguntando se a cerveja está gelada para quem está no barzinho, dando a benção ao time de futebol, incentivando a garotada que quer formar um grupo de pagode. É claro que a violência e a drogadição existem. Mas digo para as pessoas que a Zona Norte tem uma qualidade: aqui, os problemas são externados. A gente pode tocar nos problemas. Isso torna mais fácil fazer a remodelagem. Parece que todo problema que a cidade tem mora do lado de cá da faixa. O que não se percebe é que deste lado mora muita gente que mantém o lado de lá nos mais diversos serviços. Aqui tem ser humano, tem gente...e onde tem gente, sempre há desafio. Se no passado aqui teve experiência que não foram as melhores, não deve ser referência para o futuro. É preciso olhar para a frente. Mas, de fato, é uma região carente de lazer, de espaços de humanidade, em que as pessoas se sintam próximas de alguém que quer ouvi-las e viver com elas.
Frei Emiliano: A juventude desse lugar é uma juventude bonita, principalmente no sentido da coragem. Os jovens vivem muitas vezes em situações sociais comprometedoras, e mesmo assim eles não desistem de ser jovens. Tenho muitos alunos e vejo que muito cedo eles me perguntam se sei de algum lugar onde possam trabalhar, fazer um estágio. Ando muito nas ruas e vejo eles com a pastinha plástica embaixo do braço, indo atrás de emprego. Dentro daquela pasta, vai muito mais do que um currículo. Vai todo um sonho. Rezo para que 2017 seja um ano de iniciativas que mostrem o lado bom dessa região. Há aqui um potencial que só precisa de pessoas que animem o povo, que assim ele fará a sua parte. O primeiro passo é sentir o que de fato as pessoas têm e o que precisam. Ouvir o desafio da mãe de dar comida para o seu filho, ir no velório e conhecer a causa daquela morte. E a partir disso lançar ideias e oferecer incentivo
Frei Emiliano: Não podemos cair no pecado de dizer que a Zona Norte é o espaço de toda a drogadição da cidade. Isso existe por todos os lugares. A maior violência vem de não se reconhecer as qualidades do povo que mora aqui. Estigmatizar toda uma região é muito violento. Quando eu aponto que tal grupo é responsável pela morte das pessoas, parece que as coisas se resolvem achando um culpado. É preciso entender as coisas como um todo. Há outras formas de violência muito mais desesperadoras. Já recebi jovens pedindo cesta básica para a mãe, porque a família está passando fome. A maior violência que pode existir é a fome. O resto, se a gente sabe de onde vem, é mais fácil de tratar. Mas um jovem que se vê com 15, 16 anos, querendo sair para uma sorveteria com os amigos ou comprar uma calça, e chega em casa e vê o pai e a mãe desempregados, sem ter nada pra comer...o que se passa na cabeça dele? Em qualquer lugar, o jovem que você educa e acompanha não será o problema de amanhã. A palavra síntese é presença. Sendo uma presença, você vai saber onde está a dificuldade e conseguir construir com o jovem um projeto de vida.
Frei Emiliano: Ainda existe uma grande ausência de participação do poder público quanto à juventude da Zona Norte. Mas acho que os tempos estão mudando por aqui. O perfil da juventude mudou para melhor, mas ela ainda está carente de iniciativas que a tornem protagonista. A juventude tem vitalidade e uma força que deveria ser aproveitada.
O espaço reservado para ser a garagem de um edifício de apartamentos da prefeitura de Caxias tornou-se a animada sede de uma ONG que é referência no trabalho com crianças e adolescentes da Zona Norte. O CAMI São José assumiu o nome em 2004, mas já existia desde o fim dos anos 1990, quando um grupo de mães do Cânyon fundou uma cooperativa para produzir e vender pães e biscoitos. Recebiam a ajuda de um grupo de irmãs do Colégio São José e de uma panificadora, que cedeu os equipamentos. No porão onde se reuniam, também levavam seus filhos, que sofriam com a proximidade de um arroio e também com a sujeira das ruas.
Foi o que levou as irmãs a propor à prefeitura que cedesse um espaço para a sede da cooperativa no recém-construído prédio.
Com o passar dos anos, a cooperativa deixou de existir e o foco voltou-se para a garotada. As atividades do CAMI são oferecidas no contraturno escolar, e incluem aulas de informática, de capoeira, grafite e hip hop. De acordo com a coordenadora da ONG, a assistente social Daiane Batista, a prioridade é estimular que a boa convivência que meninos e meninas desenvolvem entre si e com os educadores transcenda aquele ambiente.
— É um espaço diferenciado na comunidade, que não tem tantos serviços assim. Mescla educação, assistência social, esporte, lazer. Mas o mais bacana é que as oficinas são só o instrumento. A lógica é a convivência e o fortalecimento de vínculos. Da criança com o colega e com o educador, a partir daí propagando para a família, para a comunidade, e assim por diante — explica a assistente social.
Exemplos de que a intenção se confirma na prática não faltam e podem ser ilustrados por três meninas que frequentavam o CAMI quando crianças e hoje ajudam a equipe de trabalho como contratadas ou voluntárias. Maurem de Castilhos, 17, Eduarda Machado, 15 e Camila Cordeiro, 17, têm orgulho de dizer que nasceram na Zona Norte, as duas primeiras no Cânyon e Camila no Vila Ipê. Sabem que não são jovens melhores, nem piores que centenas ou milhares de outros da região, mas valorizam o fato de terem aproveitado a chance que tiveram de escolher o caminho do bem. Aí surge a importância da ONG na vida delas.
— Nós somos a prova de que ter opção provoca a mudança. Não nos deixamos levar pela realidade em que nascemos e fomos tentar construir aquilo que queríamos. E a pessoa que transformou a sua realidade tem o prazer de levar a mudança a quem precisa e quer abrir os olhos para quem não percebe que isso é possível — diz Maurem.
Além de ajudar a traçar caminhos de vida, a presença do CAMI em um bairro que comemora dois anos sem registro de homicídios, o Cânyon, ajuda a lançar uma nova luz sobre a forma como Caxias olha para a zona norte. Com uma clara visão de que pessoas prontas para fazer o bem estão por todas as comunidades, basta que se vá ao encontro delas.
— Aqui se mostra mais a violência porque as pessoas têm uma casinha de madeira e um fusquinha. No bairro chique tem os mesmos problemas, só que não aparecem. Eu tenho orgulho de ser da Zona Norte e dizer que aqui encontrei pessoas que me mostraram o caminho certo. E aqueles que tomaram outro caminho, eu tento em primeiro lugar entender, pois sei o que enfrentam.
Atualmente, o CAMI São José atende a 85 crianças. É uma das quatro ONGs que atuam no fortalecimento de vínculos na zona norte, junto do Murialdo São José, do Centro Assistencial e de Promoção Social Joana Darc e do Centro de Convivência Santo Antônio/Mão Amiga.
É uma esquina do bairro Belo Horizonte, onde a Rua dos Cerzidores encontra a dos Agricultores, mas poderia ser tantas outras em outras tantas áreas onde a gurizada aguarda pela devida atenção em Caxias do Sul. Foi numa quinta-feira que a reportagem topou com cinco meninos em fim de férias da escola. Assistiam a mais uma tarde sem ocupação passar. Quatro deles são da mesma família e moram em casas vizinhas. Elem têm entre 9 e 16 anos. Apenas o mais velho da turma, de 17, não é parente.
Além de caminhar pelo bairro, a principal diversão dessa garotada é o futebol, o que explica os cabelos moicanos e descoloridos e camisetas do Neymar. Mas não há um campo ou uma quadra pela redondeza. No Complexo Esportivo da Zona Norte, é preciso pagar para jogar. Sem dinheiro, resta caminhar até um campinho próximo ao Portal da Maestra, onde sempre há uma equipe adversária a ser encarada. Ir até lá, contudo, é contrariar a vontade da avó, que sempre alerta do perigo. Ela recorda que naquele loteamento, no ano passado, dois adolescentes foram executados: os primos Kelvin Arceno e Vitor Gois, 15 e a14 anos, moradores do bairro Santa Fé. Isso fora os assaltos e as fugas para o mato.
— É longe e é perigoso. A prefeitura devia fazer uma pracinha mais próxima, com a ajuda da comunidade. O mais importante seria uma união em torno dessa criançada, que na rua fica à mercê da violência — opina a avó, Maria Vidal, 64.
A turma concorda que morar no Belo é legal. Foi ali que cresceram e criaram seus vínculos, inclusive entre eles. Só falta mais lazer e segurança. O mais velho, chamado Gabriel, conta que já viu um vizinho ser morto a tiros na sua frente, quando ele saia de casa. Era Patrick Fernando Barp, assassinado na Rua dos Telegrafistas aos 26 anos, em 2012. Gabriel, que terminou o Ensino Fundamental na escola Tancredo Neves e agora estuda na Evaristo de Antoni, além de fazer curso técnico no Senai, observa também que a pobreza fez com que alguns colegas tivessem deixado de estudar para tentar colocar dinheiro em casa, por vezes recorrendo ao tráfico.
— Tive um amigo que a mãe não tinha mais dinheiro pra comprar comida, aí ele começou a vender droga. Mas logo ele começou a usar e a ficar devendo. Não durou seis meses e o mataram. É o que acontece com a maioria — diz Gabriel.
Um dos meninos mais jovens, com 11 anos e já conhecedor da gíria das ruas, complementa.
— O que eles fazem é "chinelear". É querer roubar dos bandidos. Os que não morrem, apanham até perder todos os dentes — conta o menino.
Quanto ao lazer, a turma lamenta não ter opções de atividades que diversifiquem a sua rotina, mesmo que fosse na escola. Um deles sugere capoeira, outro queria oficinas para fazer objetos de madeira. Creem que seriam opções legais para mantê-los fora da rua, nestes dias em que mesmo as tão aguardadas férias às vezes parecem longas demais para a galera da esquina.
Bastou reprovar uma vez no sexto ano da Escola Tancredo Neves para que J. C. desistisse de frequentar o colégio. Afinal, é chato ter de ir pro colégio quando se tem 15 anos e se pode passar a tarde andando de bicicleta e ouvindo música, normalmente funk carioca e hip hop. Para evitar os gritos da avó, que sofre de uma doença que ele não sabe o nome, mas que a faz "falar sozinha e xingar todo mundo", prefere colocar o aparelho de som na frente de casa, onde espalha duas ou três cadeiras para os amigos que chegam de bicicleta para passar a tarde. O restante da turma frequenta a escola, mas está de férias e tem os dias livres para brincar e pedalar pelo Belo Horizonte, onde moram.
O futuro não preocupa J. C. A mãe, que trabalha com reciclagem e cuida da avó doente, pede para que ele volte à escola ou que arrume um emprego, mas nada disso passa pela cabeça do menino.
— Minha mãe até diz pra eu trabalhar, mas nem falo nada, né? Quero ficar de boa mais um pouco, depois vou ver o que eu faço — resume, entre tímido e chateado com perguntas sobre um assunto chato como trabalho.
Jovens como J.C. são os chamados casos de vulnerabilidade social grave: estão fora da escola e do atendimento das instituições assistenciais. No futuro, terão dificuldade de encontrar emprego. No presente, estão próximos demais da criminalidade. A presidente interina da Fundação Assistência Social (FAS), Rosana Menegotto, reconhece como maior desafio intensificar ações integradas com foco em prevenir a perda destes jovens para a criminalidade.
— A gente precisa construir com o adolescente novas possibilidades paras suas vidas, fortalecendo ações preventivas que irão evitar a evasão da escola e evitar problemas de média e alta complexidade. O trabalho precisa ser conjunto, envolvendo a Saúde, a Educação, a Segurança. Porque cada órgão tem o seu limite de atuação — diz Rosana.
O deafio se torna ainda maior, na opinião da assistente social do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) Norte, Heloísa Teles, num cenário em que tanto as famílias quanto a prefeitura sofrem os efeitos da crise financeira que assola o país.
— O cenário econômico faz cortar orçamento da assistência social, enquanto há mais perda de renda formal das famílias e situações de vulnerabilidade que nos obrigam a intensificar ações. Infelizmente, a crise também impacta em nossas ações.
O serviço é gratuito e oferecido de segunda a sexta-feira
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