'Os programas de inclusão são excludentes'

Na linha de frente dos principais projetos que a Secretaria de Segurança Pública e Social articulou na última década para combater a criminalidade nas periferias de Caxias do Sul, a assistente social Juliana Marcon, 52 , convive com a frustração de ter visto o seu principal "filho' esbarrar na falta de apoio para avançar. As Redes de Pacificação Social, programa que ela coordena desde 2013, são o que ela considera a iniciativa inovadora necessária para inverter a lógica da segurança da punição para a prevenção, envolvendo agentes públicos e a comunidade na busca por soluções para áreas de risco. Segundo Juliana, as redes criaram um eficiente canal de diálogo, mas jamais conseguiram avançar para ações práticas.

— Caxias do Sul mudou muito nos últimos 18 anos, as periferias cresceram demais. Sozinhas, as instituições não dão mais conta. Fizemos um trabalho com foco na comunidade, para que as pessoas se encontrassem e dialogassem com os órgãos de segurança, assistência social, educação e saúde, sobre como se poderia promover segurança em seus bairros. Mas nunca consegui sistematizar o projeto, porque não tinha apoio para oferecer um curso que fosse.

Acredito que, por haver a Justiça Restaurativa, projeto pago pela prefeitura, poderia existir uma concorrência. Vínhamos crescendo, mas perdemos o gás — lamenta.

Servidora do município há duas décadas, Juliana não se exime de criticar gestões passadas da pasta, que muitas vezes privilegiaram ideias de maior vulto e menor resultado. Da mesma forma, denuncia o paradoxo de projetos de inclusão social que, na verdade, promovem mais exclusão:

— Só se promove segurança com inclusão social, a começar pelo jovem. Discutimos muito o que fazer com o jovem que aos 14 anos sai do braço da ONG e até os 16 não pode trabalhar. Ele fica dois anos sem ocupação e sem profissionalização.

Automaticamente, está exposto a fatores de risco, como o tráfico. O problema é que os programas de inclusão são excludentes, pois obrigam que o jovem esteja no ensino médio, ou que até tal idade tenha feito até a 7ª série, e eles não chegam nesse ponto...eles reprovam e evadem da escola. O que fazer com os jovens que são excluídos desses padrões? Essa resposta nós temos que criar. A Zona Norte exige foco em casos de vulnerabilidade social grave.

A secretaria de segurança cumpriu
seu papel?

Nelço Tesser,
presidente da Parceiros Voluntários

— Diria que evoluiu, teve melhoras, mas nada perto da expectativa. Precisamos de um esforço maior para atingir o que comunidade espera. Vê-se que há um padrão no trabalho, a secretaria atuou bastante com ONGs e entidades voltadas para o jovem. Ainda assim, a sociedade e a própria secretaria precisa apoiar mais esse trabalho preventivo desenvolvido por instituições voluntárias.

Paula Ioris,
vereadora e presidente da Comissão Temporária Especial para o Enfrentamento da Violência

— Acompanho o trabalho da secretaria há cincos por um motivo (em 2012, ela perdeu o filho Germano, 13, assassinado ao lado do amigo Vinicius, 14, e do pai de Vinicius, Gilson, 44). Até então, não tinha tão claro o quanto cabe ao município a prevenção. Via programas importantes, mas entendia a falta do olhar no aspecto punitivo. Agora, tenho escutado que a ausência (do município) é grande e a abrangência não é suficiente. Há o trabalho da Cipave, que veio bem junto às crianças, mas em relação ao adolescente vejo uma enorme carência. São jovens abandonando escolas, faltam programas nos bairros.

Yuri Martins,
presidente do Conselho Municipal da Juventude

— É uma questão muito complexa, mas minha avaliação é que a juventude ainda está muito exposta à violência, principalmente pela falta de lugares próprios para o lazer. Nestes 10 anos, a Secretaria de Segurança falhou por não dialogar com a juventude. Isso se acentuou ainda mais com o secretário atual, que é o mais truculento em todo este período. A forma como a guarda municipal atua na Estação Férrea é um exemplo do que ele pensa.

Delegada SuelyRech,
foi titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) até 2014, onde atuou por 13 anos

— Foi desenvolvido um trabalho muito importante, principalmente na questão da prevenção da violência junto às escolas, em parceira com a SMED. Nos anos em que estive à frente da DPCA, isso sempre me chamou a atenção. Toda ação no sentido de prevenir a violência sempre vai ser relevante. Se os índices de criminalidade não diminuíram, isso pode ser porque aumentaram a intolerância, a desigualdade, o tráfico de drogas. Não dá para julgar o trabalho olhando apenas para o número de homicídios. Diante de toda a crise e problemática social, pode ser que sem o trabalho da Secretaria de Segurança a situação fosse ainda pior — pondera.

Colegiado do Conselho Tutelar em Caxias do Sul

— O trabalho das Cipave e das forças-tarefa da Secretaria de Segurança Pública tornaram as pessoas mais alertas e fizeram aumentar as denúncias que recebemos no Conselho, principalmente quanto a venda de bebida alcoólica para menores e conflitos em escolas. O que ainda percebemos é a defasagem de recursos humanos, que permitiria qualificar o serviço. É um problema semelhante ao que vivemos no Conselho, pois são apenas duas unidades (Norte e Sul) para dar conta de uma cidade enorme.

"A descentralização do atendimento fez muita coisa melhorar"

A presença cobrada por quem vive o dia a dia da Zona Norte se dá por parte da prefeitura em diversas frentes e com focos igualmente diversos. Ao longo da última década, foram instituídos em Caxias programas estaduais como o Primeira Infância Melhor (PIM), que destina visitadores até as casas de gestantes e mães de crianças de até seis anos, e a autoexplicativa Comissão Interna de Prevenção a Acidentes e Violência Escolar (Cipave); também foram criados os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), que tem a unidade Norte no bairro Santa Fé, o Programa Municipal de Justiça Restaurativa — Caxias da Paz, que faz intermediação de conflitos através dos chamados Círculos de Paz, além da Rede de Pacificação Social, que instituiu na cidade a Semana da Paz e promoveu caminhadas.

São movimentos em maioria ligados à Secretaria de Segurança Pública e Proteção Social (SSPPS), criada em 2007 por Roberto Louzada, que se tornou também o primeiro titular da pasta. Procurado pelo Pioneiro, Louzada, que está aposentado, não quis ser entrevistado. Olhando para o futuro, o prefeito Daniel Guerra recorreu nomes importantes do passado para formar o time da Secretaria de Segurança para os próximos quatro anos: José Francisco Mallmann, ex-secretário de Segurança Pública do Estado, para ser titular da pasta, e Maria de Lurdes Grizon, ex-presidente da Fundação de Assistência Social (FAS) para Diretora de Segurança Alimentar e Proteção Social.

Com 30 anos de atuação na área da dependência química, Maria de Lurdes é entusiasta especialmente

dos programas de Justiça Restaurativa e do PIM. Considera que ambos deveriam receber investimentos pesados, pelo poder transformador que possuem. Ao reassumir um cargo na prefeitura, avalia que hoje a violência na Zona Norte está mais controlada, emboa ainda inspire cuidados.

— A Zona Norte já foi mais perigosa do que é hoje, acho que todos pensam assim. A descentralização do atendimento, com a criação dos CRAS, por exemplo, fez muita coisa melhorar. Mas a evasão escolar lá ainda é grande, o conselho tutelar Norte realiza muito mais atendimentos que o Sul. A peculiaridade desta região é o fato de reunir muitas pessoas que vieram outros municípios, que não têm um vínculo com o lugar. Não é uma comunidade que cresceu junta — avalia.

Para os próximos quatro anos em que terá a responsabilidade de responder pela proteção social do jovem caxiense, com o apoio das diretorias da mulher, da diversidade, da juventude e racial, as quais coordenará, Maria de Lurdes sugere que a atuação terá como foco ofertar aos jovens mais e melhores alternativas de lazer e reforçar os vínculos familiares.

— Queremos incentivar a ampliação de oficinas de capoeira, de grafite...e que iniciativas como a da canoagem, oferecida pela Smel (refere-se ao projeto Remadas Solidárias), sejam ampliadas. É por aí que iremos pegar os jovens, indo ao encontro do que eles gostam. Não adianta querer impôr. Hoje há poucos lugares oferecendo essas atividades, para alguns fica longe, mas todos os bairros têm centros comunitários ou salões paroquiais e podemos recorrer a esses espaços. Outro ponto é ampliar as hortas comunitárias, porque é um processo que envolve toda a família, desde plantar até comer - destaca.

A presença do frei Emiliano Dantas, cearense de 32 anos que há oito vive em Caxias e há dois na Zona Norte, baseia-se no pedido que o papa Francisco faz a seus pastores ao final de uma missa pascal em 2013, que se tornou célebre: que tenham cheiro de ovelha. Com a figura de linguagem, o papa quis mostrar que, para transformar a realidade dos mais necessitados, é necessário misturar-se a eles nas periferias. Só sente o cheiro do suor quem está ao lado, afinal.

Ao aceitar o desafio de coordenar a congregação Murialdo Santa Fé, o frei que até então só conhecia aquela região de passar de ônibus pela Rota do Sol precisou-se do próprio pré-conceito sobre aquela população. Vivendo como parte dela, em apenas dois anos se tornou uma liderança muito mais do que religiosa, mas também comunitária. Em uma manhã de janeiro, entre um e outro atendimento a moradores que pediam ajuda para conseguir emprego, o frei conversou com o Pioneiro sobre o que a experiência na Zona Norte o fez enxergar que o resto de Caxias ainda não percebeu.

"A secretaria não cumpriu sua proposta"

Entre 2004 e 2008, um grupo de pesquisa em segurança pública da Faculdade da Serra Gaúcha (FSG) desenvolveu um levantamento etnográfico da criminalidade em Caxias do Sul. A pesquisa mapeou as áreas mais perigosas e detalhou demandas específicas para cada região, servindo de fundamento para a criação da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Proteção Social. À época, a prefeitura adquiriu um software de análise de dados sociais, que só foi utilizado nos dois primeiros anos da secretaria. Coordenador do grupo de pesquisa e um dos mentores da criação da pasta, o historiador e cientista social Charles Kieling lamenta que o trabalho tenha sido abandonado com o fim da parceria, em dezembro de 2008.

— Quando a prefeitura deixou de dialogar com as comunidades para entender como a coisa acontece e assim desenvolver uma dinâmica científica, passou a dialogar com o vazio. E para resolver isso, foi criada uma espécie de Brigada Militar a nível municipal, que é a Guarda. Além de não se cumprir a proposta da secretaria, de se fazer o trabalho de prevenção da criminalidade através de estudos científicos e tecnológicos, ainda se gerou gerou um prejuízo para a sociedade. Pois a prefeitura paga para um órgão fazer o mesmo trabalho da Brigada — condena o especialista.

Kieling deixou Caxias em 2008. Hoje, atua como professor de Tecnologia em Segurança Pública da Feevale, em Novo Hamburgo. Do Vale do Sinos, acompanha o cenário do crime na Serra para traçar comparativos em pesquisas que desenvolve naquela região. Uma de suas críticas mais contundentes enquanto especialista em segurança, é quanto ao desconhecimento que o poder público demonstra ao elaborar projetos nesta área.

— Em Caxias, procuramos entender como era a o contexto em que os jovens viviam. A partir disso, pensamos as oficinas e os programas. O governo faz o contrário. Ele cria o programa e o aplica sem considerar o contexto. Dessa forma, não se conhece em que bairro há o problema da sexualidade, onde há o do desemprego, qual grupo criminoso está incomodando... Não adianta falar sobre maconha na escola, se naquele lugar a gurizada toma ecstasy. É preciso conhecer a comunidade e depois desenvolver os projetos — avalia.

Para Caxias do Sul possa apresentar resultados mais significativos em segurança nos próximos 10 anos, o pesquisador acredita que a SSPPS precisa recomeçar do zero:

— A secretaria precisa ser recriada pela perspectiva da ciência, da tecnologia e do trabalho preventivo. Até aqui, faltou uma abordagem pedagógica e cultural com relação ao desenvolvimento dos jovens em situação de vulnerabilidade.  

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